Orixá Ibeji, Cosme e Damião

Hoje, às quatro horas da manhã, fui acordado por uma grande e ensurdecedora alvorada de foguetes, foguetões, bombas, etc...

Levantei-me da cama um bocado aborrecido devido a ser ainda muito cedo, mesmo assim me preparei, tomei café, terminei de ler um trecho do livro Os velhos marinheiros, do nosso grande amigo Jorge Amado, depois saí para o meu trabalho.

Eram mais ou menos sete horas, quando estava no ponto do ônibus, ouvi uma pessoa dizer:

— A pedra de hoje é 27, hoje é dia de Cosme e Damião.

Daí foi que vim a saber o motivo da alvorada e ter também me lembrado o que abaixo vou contar.

Há vinte e oito anos passados, no dia de hoje, eu estava em São Gonçalo do Retiro, na roça do Opô Afonjá, pois já tinham começado as festas da Água de Oxalá.

À noite eu e vários camaradas que estavam por lá resolvemos brincar de picula e, com uma algazarra danada, começamos a gritar:

— Nêgo fugido, capitão do mato, arreda que lá vai o gato.

Quando a brincadeira estava bem animada, lá por volta das nove horas, minha mãe, juntamente com as dos outros camaradas, nos fizeram acabar com a brincadeira a toque de caixa.

Nisso fomos todos pra sala da casa grande, junto no quarto do Peji de Oxalá, fazer nossas camas para dormir.

Uns choravam, outros resmungavam, até que uma senhora, já bem velhinha, filha de africanos, por nome Caetana, que estava sentada na referida sala fumando seu charutinho, disse pra nós:

— Nun fica ai assim periado, vae tudo deitá, eu vai contá um cazo pra ocê tudo uvir e drumi.

Aí ela perguntou:

— Qui dia é hoji?

Um disse é domingo, outro disse é 27, ela então disse:

— Num é isso que eu qué sabê qui santo é o do dia de

hoji?

Ninguém respondeu.

Ela então foi dizendo:

— Hoji é dia di Orixá Beiji (Cosme e Damião), õcês saibi qui era Cosme e Damião?

Todos responderam por uma boca só:

— Foram dois meninos. Ela disse:

— Tá tudo erádo, Cosme e Damião éra menino cumo ocês tudo é, mai moreu feito. Preste atenção: Cosme e Damião naceu in Larubáwa (Arábia), foi dôs irmão mabáço, todo dôs éra doutô, curava gente, gostava muito do pobre, dava muita esmola e num ligava prá dinheiro, até qui um dia levantarun farço a ele e o Rei daquela téra mandô cortá a cabeça de todo dôs. Dipôs côpo dele tudo foi pra Roma, lá todo dôs virô santo e teve um casa cum nome Igrejá (Ilê Orixá Ibeji - Casa dos Santos Dois Dois). Daí pur diante, no dia de hoji, todu mundu bancu, nêgo, mulatu, todu, raçá de gente faz caruru, cfó, acarajé, abará e chama gente conhecida pra cumê, e diz tá fazendo festa pra minino Cosme e Damião. Só nós Omo Ketu, qui só faz brigação dele dia da festa de Oxun purque mai véiu dizia qui Eledá, o Criador dele, foi Oxun purisso inté hoje se diz qui mãe do orixá Beji é Oxun. Há... só assim esse cambada tudo drumia pra discançá e pintá o sete ameihã di novo.

Nisso a turma gritou:

— Não estamos dormindo ainda, tia Caetana, conte mais...

Ela disse:

— Deita, cambada, vae drumi, num chega qui pinta dia tudo, eu vae cuntá êse só:

— Eu cunhici um homem qui chamava Ambrózo, gustava muito de jogá carta, mai éra muito bom homem; um dia de vespera da festa de Ibeji ele tava cum um mucado de camarado cunversando em porta de seu casa, quano chega um homem chorano dizeno qui seu muié moreu i num tinha dinnêra pra fazê intêro dele.

Tudo ficô cum pena de home, Ambrózo tirô cemirés e deu a ele, home chorô inda mai agradeceu i foi imbora. Num outro dia Ambrózo era costumado paciá incavalo dia di dumingo cun seu camarada tudo, sahiu pra paciá quano paça por um roça viu zuada de festa, chamô camarada tudo prá espiá; quano ele chega perto de casa da festa, viu um muié cantando bonito e quano ele chegô na casa ficou assustado quem tá cantando é muié qui moreu.

Na casa tava mesa posta cum muita comida, muita bebida, cum muita gente dansano e home qui tomô cemirés tava tocano violão fazeno festa, quano viu Ambrózo ficô todo trapaiado sem podê se movê do lugá.

Ambrózo, com a bondade qui tinha, num se zangô, inda judô home qui tinha inganado ele dizeno prus camarado: esse casa é da gente vamo fazê festa pra São Cosme e Damião e difunta qui já moreu e viveu.

Cun essa brincadêra Ambrózo cuns camarada brincô dôs dia nêsa casa e discontô bem cemirés qui deu pra intêro di muié de dona da casa.

Daí por diante não sei contar mais nada, pois só acordei no outro dia, segunda-feira, às seis horas da manhã, com minha mãe me chamando, que estava na hora de me preparar para ir trabalhar.

 

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô. p. 191-194.)