Alegorias da Noite

 

A criança ardia, febre alta, quando a luz acabou. A droga da conta já havia sido paga, mas tratava-se de mais um apagão na cidade que, simplesmente, liderava todas as estatísticas das más ocorrências. Dazinha entrou em parafuso. Auxiliada um tanto pela alta temperatura do álcool que circulava em suas veias, deixando-a totalmente embebedada e com a esquisita sensação de ser um longo e lerdo pavio de lamparina.

Com muito custo, conseguiu acender uma vela. E depois de abafar com beijos o choro da criança, deu uma geral pelos cômodos, até encontrar a Novalgina infantil.

Trapos e trecos ficaram esparramados pelo caminho. Num canto, vestígios de material escolar, “Vixe!”, no meio de um pequeno lixão de brinquedos quebrados e com o ar mal- encarado de doação, após a última possibilidade de uso.

Dazinha turvou-se em seus pensamentos. E teve, então, pela primeira vez, nítida a percepção da miséria que tomara conta de toda a sua existência. Sombras de muitas noites sem lua. E tudo era mesmo capítulos intermináveis de uma trágica novela. Nenhum lance de maior interesse, que valesse a pena ver de novo e um ato somente de heroísmo: não ter ela ainda dado cabo da própria vida. Desanuviou-se ao perceber que o choro de Nayara Estéfanne cedera e dera lugar a um ressonar inquieto. Por sorte, os três maiores, Vinícius Brayan, Suellen Sasha e Alberth Thiago, indiferentes a tudo, roncavam o sono angelical de todos os anjinhos endiabrados.

Estatelou-se diante da chama se perguntando pelo Ditão, aquele chifrudo! Sumira desde a sexta-feira gorda. Quarta já era cinzas e o filho da puta nada! Raberava pelas casas dos compadres? Marcava ponto em todas as bocas-de-golo do conjunto habitacional? Cumprira finalmente a promessa de fugir com aquela umazinha, cabelos esticados, loira à força e mal saída dos cueiros? Andava se arreganhando toda pra ele. Ainda bem que só os dentes. Podres. E ela ainda haveria de quebrá-los todos, um por um, só pra fazer as franguinhas do pedaço entenderem de uma vez por todas que Dazinha do Alto Paraíso ainda tinha muito, mas muito jogo de pernas mesmo pra segurar o seu homem!

Remoía-se em ódios e conjecturas, sem perceber que os efeitos do álcool entorpeciam-na mais e mais. Já sem poder conectar as próprias idéias, concluiu, antes de anoitecer de vez, que o fuzauê ficaria pra quando ela amanhecesse.

Acordou no inferno. Sem reação, por pouco não se salva, não fosse a tenacidade desesperada dos filhos, liderados pelo mais velho. Esgoelavam:

Mãe, a gente vai morrer! Acorda, acorda, Mãe, a neném vai morrer ocês dois!!!

Os vizinhos que nada viram, nada puderam fazer, antes que o pior já tivesse acontecido. O sinistro, qual uma estrela cadente após incendiada fulguração, apagou tudo. O choro da caçula, a vida, o país, o mundo. Dazinha também se apagou num mutismo de sombras indevassáveis. Sem mais “velas acesas sob um céu de chumbo”, no país do Carnaval, abençoado por Deus... e nenhum sequer clarão de esperança.

(Sequer constou o ocorrido das estatísticas oficiais.)

 

(Inédito. Enviado pelo autor)