Espelho

 

Quando o moço abraçou a mulher de cabelos compridos, a menina fechou os olhos e imaginou que também estava sendo abraçada. Ficou assim um tempo enorme e, ao erguer de novo as pálpebras, havia pessoas totalmente diferentes no cubo eletrônico. Andou de um lado para o outro, apertada entre moveis que se erguiam como espectadores incômodos. Caminhava, com as mãos nos quadris e um livro sobre a cabeça, sem parar de olhar para a TV, de onde continuava a jorrar uma cascata de imagens em preto e branco. Sua passarela estreitava-se entre um armário e a cama-beliche que ela dividia com o irmão, pois ali era também o quarto.

Abriu uma porta e o mesmo homem, que antes estivera na televisão, veio-lhe fazer companhia. Imensamente feliz, ela estendeu-lhe a mão e caminhou como se dançassem uma música inaudível para o resto do mundo.

O tapete puído, sua bermuda rasgada, nenhum sinal de pobreza importava. Entravam pela porta artistas de novela, belíssimas mulheres e rapazes musculosos que faziam comerciais. A menina nem ligava para as gargalhadas do irmão. Ele curtia com a sua cara, rindo do seu andar pouco natural, da sua mão estendida no espaço vazio. Isso não a aborrecia.

E o moço da TV a visitava todos os dias. Olhava-a tão diretamente que fazia seu corpo esquentar. Dizia que ela era mesmo uma gatinha. Ensinava a balançar os cabelos, modular a voz com sensualidade, fingir sorrisos quando estava triste ou inventar lágrimas mesmo estando feliz. Ela se dedicava e aprendia com rapidez. Ele confessava jamais ter encontrado outra com seu talento, a sua beleza. A menina perdia a graça, enfiava o rosto entre as mãos, mas corria ao espelho e sorria, chorando ao mesmo tempo, pois via-se bonita e acreditava na felicidade. Nesses momentos, seu irmão parava de rir e ficava olhando para a televisão, como se aquela caixa apresentasse enigmas que ele jamais decifraria.

Uma tarde, a mãe chegou mais cedo do trabalho. Entrou acompanhada por uma vizinha que trazia estridências na voz. Ao vê-las, o moço assustou-se voltou para a TV, fazendo o peito da menina doer. Ela aprendera a amar sua palidez, seus olhos onde habitava um verde estonteante e agora via-o desaparecer em meio a imagens tristemente velozes.

– Tá fazendo o quê, menina? – a mãe olhou com reprovação a casa ainda por limpar. Ela envergonhou-se. Tirou o livro de cima da cabeça sem conseguir disfarçar os tremores. Estirado na beliche, o irmão dedurou:

– A boba quer ser modelo.

Ardeu por dentro, ao mesmo tempo insultada e devassada no seu íntimo.

– É verdade, vou trabalhar na televisão.

– Não pode! – a mãe gritou. Tentou explicar que precisaria trabalhar em alguma coisa séria. Além do mais estava tudo tão caro: comida, roupa, aluguel, remédios do pai. Como iria sustentá-la? Não, não podia. A mãe só rezava para que ela fizesse um bom casamento, um casamento digno. Com um branco, ia dizer, talvez, quando o rosto da vizinha aproximou-se, amarelado e arredondado como um queijo:

– Ah, mas ela é tão engraçadinha. Não tem o cabelo tão ruim. O nariz é bonitinho...

– Bom, isso é mesmo... Já lavou a louça?

– O moço aqui do lado tem o nariz grande, chato, credo! É tão feio... Mas o nariz da sua filha não é tão grande...

A menina sorriu porque lhe parecia ter sido elogiada. Quando, porém, a vizinha sumiu por uma porta, junto com a mãe, ela correu ao espelho, enfiou as unhas nos cristalinos olhos azuis, arrancou os louros cabelos que terminavam numa franja, rasgou a boca com tanta força que chegou a doer. A imagem daquela mulher branca como a neve se fez em pedaços. E seu próprio rosto, preto, luminoso, sulcado por gotas que rolavam sobre as suas faces, surgiu por alguns segundos no espelho. Ela mesma, logo em seguida estilhaçando-se, rompendo-se, transformando-se em cacos, caindo sobre o móvel. O barulho confundia-se com a voz que, na caixa eletrônica anunciava novelas.

Então o irmão levantou-se da beliche e olhou os pedaços da foto da loura apresentadora de programas infantis em meio aos cacos no chão. Pegou as mãos da irmã e viu um pequeno corte feito por um dos fragmentos do espelho. Beijou o filete de sangue, passou álcool e tirou de uma gaveta um pedaço de pano, amarrando-o no machucado. A caixa tonitruante chamou sua atenção. Virou-se com raiva. Pareceu-lhe que os atores riam da sua irmã, como ele mesmo fizera. Envergonhou-se, arrependeu-se.

– Eu gosto do seu cabelo, do seu nariz... e sua pele é bonita.

– Mas não tem modelo preta na TV.

Ela não entendia porque o mundo lhe negava espaços para desejos.

– Então vai ter você!

Durante alguns segundos a menina esboçou um sorriso. De repente, tirou de uma gaveta fotos recortadas de jornais e revistas. Artistas louras. Rasgou. Juntou no chão os cacos do espelho. Maravilhada, recompunha-se. Cada fragmento sugerido numa frase: sim, modelo! Por que não? Por que não atriz ou bailarina? O mundo nada pode quando queremos verdadeiramente alguma coisa! O que consegue destruir o desejo se ele é puro?

O cabelo não balançava e ela imaginou diferentes formas de arrumá-lo. Sorria a cada novidade descoberta. Olhou-se. Tinha um corpo realmente bonito. Imaginou-se em meio a atores, homens e mulheres que a respeitavam. Havia escolhido. Nem ligou quando a mãe apareceu na porta e então esbravejou, ao ver o espelho quebrado:

– Ai, meu Deus, minha filha, o que você fez? A gente vai ter sete anos de azar...

A menina sequer ficou constrangida. Virou-se para a televisão, depois lançou um olhar cúmplice ao irmão. Sentia que, ao contrário, eles ainda teriam muita sorte.

(Cadernos Negros 16, p. 69-73)