Como nascem os mortos
Marujo empurrou com cuidado a porta de ferro, que já estava semiaberta. Um rastro de sangue no chão de pedra confirmava sua suspeita: os garotos se refugiaram ali. Meio que pisando em ovos, o homem foi entrando lentamente com o seu cajado no recinto malcheiroso, iluminado apenas por um feixe de luz. Um amontoado de gente começava a se formar do lado de fora do velho chafariz de Mestre Valentim, no berço da cidade de São Sebastião.
Com a mesma rapidez que surgiam curiosos por todos os lados, diversas versões sobre o que ocorria circulavam de boca em boca. A primeira delas dava conta de que se tratavam de assaltantes de banco. Momentos antes houvera um tiroteio entre a polícia e bandidos na avenida Rio Branco.
Com a confusão, os bandidos conseguiram fugir. A informação de que um PM havia morrido na troca de tiros logo foi desmentida. Na verdade, a polícia só apareceu meia hora depois. O tiroteio teria sido com seguranças particulares.
O zum-zum-zum aumentava na medida em que os minutos se passavam e nada acontecia, além do fato de o velho marinheiro ter sido o primeiro a chegar ao local e ter entrado sem receio algum no chafariz, que, mais do que peça histórica, transformou-se ao longo do tempo em abrigo para a população de rua. Transeuntes do Largo do Paço e comerciantes viram quando os meninos chegaram ali. Eram quatro na realidade. Dois tinham sido feridos: uma garota e um garoto, que foram carregados para dentro pelos outros dois, que saíram rapidamente do local e, antes de fugir, avisaram a Marujo sobre o acontecido.
Senhor dos mares em tempos idos, Marujo, outrora conhecido como Almirante, era um negro respeitado entre os menores que sobreviviam por ali pedindo trocados, cometendo pequenos furtos, cheirando cola. Apoiado sempre num velho cajado – na verdade um pau de jequitibá talhado –, cochilava durante o dia, mas varava as noites sem dormir. Excluído dos mares, foi vendedor de peixes da feira da Praça XV e, com o fim do mercado, passou a viver sob as marquises do Arco dos Teles. Mas era nele que os meninos confiavam.
Marujo ouviu sem espanto o relato do garoto maltrapilho e ofegante: "Mira queria uma camisa da Seleção. A gente pegou uma do cesto da loja e saiu correndo. Os seguranças vieram atrás e largaram o dedo na gente. Deixamos os dois lá no barraco da praça. Tá saindo muito sangue", disse o moleque, que, logo em seguida, sumiu entre os carros com o comparsa. O velho levantou com algum esforço e foi ver o que estava acontecendo.
Após entrar no chafariz, o mendigo sumiu no breu da escuridão. Isso fez com que o burburinho aumentasse entre o povo, que aumentava cada vez mais do lado de fora. As pessoas não entravam com medo de que os bandidos armados as fizessem de refém. E era isso que acreditavam ter acontecido com Marujo. "Fizeram o mendigo de refém", falavam uns aos outros.
Um policial militar de arma em punho foi abrindo caminho no meio da multidão e entrou no abrigo. Todos ficaram em silêncio. Minutos depois ele saiu, meio atordoado, com a arma guardada no coldre e as mãos sujas de sangue. Marujo surgiu logo atrás, com um bebê nas mãos. Mira estava grávida, mas antes de morrer entrou num prematuro trabalho de parto e deu à luz um menino.
O burburinho se desfez rápido, com cada um seguindo para um lado apressadamente. A época era de copa do Mundo, e o Brasil entraria em campo naquela tarde. O Pai do menino também estava morto.
(Circo de pulgas, 2014, p. 71-73).