Recordações do escrivão Isaías Caminha

(fragmentos)

Lima Barreto 

Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que estorciam no meu cérebro.

O flanco que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos ataques dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado...

Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polimórficos...

(Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 23)

 

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O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café o bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como demorassem a trazer-me o troco, reclamei: “Oh! fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!” Ao mesmo tempo, a meu lado, um rapaz alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação.

(Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 26)

 

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O ruído de uma fanfarra militar, enchendo a rua, veio agitar a multidão que passava. As janelas povoaram-se e os grupos arrimaram-se às paredes e às portas das lojas. São os fuzileiros, disse alguém que ouvi. O batalhão começou a passar: na frente os pequenos garotos; depois a música estrugindo a todo pulmão um dobrado canalha. Logo em seguida o comandante, mal disfarçando o azedume que lhe causava aquela inocente exibição militar. Veio por fim o batalhão. Os oficiais muito cheios de si, arrogantes, apurando a sua elegância militar; e as praças bambas, moles e trôpegas arrastando o passo sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente, tendo as carabinas mortíferas com as baionetas caladas, sobre os ombros, como um instrumento de castigo. Os oficiais pareceram-me de um país e as praças de outro. Era como se fosse um batalhão de cipaios ou de atiradores senegaleses.

Era a primeira vez que eu vi a força armada do meu país. Dela, só tinha até então vagas notícias. Uma, quando encontrei, num portal de uma venda, semi-embriagado, vestido escandalosamente de uma maneira hibridamente civil e militar, um velho soldado; a outra, quando vi a viúva do General Bernardes receber na Coletoria um conto e tanto de pensões a vários títulos, que lhe deixara o marido, um plácido general que envelhecera em várias comissões pacíficas e bem retribuídas...

O batalhão passou de todo; e até a própria bandeira que passara, me deixou perfeitamente indiferente...

(Recordações do escrivão Isaías Caminha, p. 68-69)