Zumbi...dos

Daqui de onde estou,
Ouço os primeiros ruídos.
Abafados, subterrâneos,
Como os sussurros cuidadosos,
Por meus avós também ouvidos.
Da nova gente que surge,
Com a coragem de herança,
Legadas por Zumbi,
Quase esquecida pela força,
Quase sangrada pelas alegorias,
Quase morta pelos passos na avenida.
Daqui de onde estou,
Sussurro também cauteloso,
Para despertar outros ouvidos,
E destravar outras bocas,
Para sussurrarmos todos um dia,
E fazermos um barulho,
Que será tal,
Que se transformará,
Em fala!
E das falas virão os gritos,
Não de dor, mas de vitória,
Como são vitoriosos os sussurros,
De nossa gente agora,
Pois estão acordados,
Para dizer,
Com a força de Ganga Zumba
E a altivez de X:
Que somos!
          Faremos!
          Bem alto!
          Como as torres de Palmares.

(O arco-íris negro, p.64)

 

Meu Sonho Não Faz Silêncio

Meu sonho jamais faz silêncio
E a ninguém caberá calá-lo
Trago-o como herança que me mantém desperto
Como esta cor não traduzida em versos
Pois se fariam necessários muitos e tantos versos 

Meu sonho vara madrugadas
Som alto
De timbales que se arrebentam em cânticos
E trago-o como Olorum na crença
Que não me pune em pecados
Mas
Enche-me o peito grávido de esperanças
Como malungos marcando ao sol de novembro
Subindo as serras
Defesa e guerra

Meu sonho jamais faz silêncio
É a lança brilhante de ZumbiA espada de Ogum
É o ê, o rumpi, é o rum
É a fúria sem arreios
Terra farta dos anseios
Desacato, ato, sem freios

 Vôo livre da águia que não cansa
Me faz erê, me faz criança

Meu sonho jamais faz silêncio
É um griot velho que me conta as lendas
De onde fisga tantas lembranças
E com ele invado chats, pages, sites
Na intimidade de corpos em dança
Perpetuando o gosto pelo correto
Meu sonho é pura herança
Rastro
Dos que plantaram, lutaram, construíram
O que não usufruo
Areia que moldada em vaso
Onde não nos cabe culpas
É lúcido ao sol dos trópicos, charqueada ao frio
É como um fio

Grita alto e bom som
Que o seio do amanhã nos pertence
Carregamos toda pressa 
Meu sonho não faz silêncio
E não é apenas promessa
Planta em mim mesmo, na alma
Palmares, Palmares, Palmares
Pelo que de belo, pelo que de farto
Muitos Palmares

Carrega como o vento escritos
Versos de Jônatas, Oliveira, Colina, Semog e Cuti
Alimenta e nutre
Lembrando que esta cor me mantém desperto
E não tenho sustos

Sentinela que tange o eterno quissange
Entende a volúpia do calor que me abriga
Desfaz a mentira, destruindo a intriga

Meu sonho jamais faz silêncio
Como um Ilê Aiyê acordando a liberdade
Descobrindo amante ávido o sexo pulsante da existência
Desejo de navegar todos os mares
Comandando todas as fragatas, naves 

E nos lança em um solo de Miles
Nos recria em um solo de Coltrane
Clássico como Marsalis, Jazz como Marsalis

 E que nem tentem que faça silêncio
Pois voltaria gritando em um texto de Sohiynka
ás que completa a trinca
Torna-se um canto de Ella, Graça, Guiguio, Lecy
Gente negra, gente negra
Jamelão, mangueira
Brilho da mais brilhante estrela
Nunca se estanca, bravo se retraduz em sina

 Só não lhe cabem
Crianças arrancadas da escola
Pela fome que rasga gargantas
E nos promete vê-las
Alimentadas todas, cultas
Meu sonho é uma negra criança
Que luta

Ergue Quilombos, aqui, ali
Em cada mente, em cada face
Impávidos como Palmares, impávidos Ilês
Em todos os lugares

Meu sonho não faz silêncio
Porque feito de lida
Teimoso como esta cor
Para sempre será desperto e certo
Mais que vivo, é a própria vida.

(Negras intenções, p. 65-67)

 

Águas do Paraguassu

As águas do velho Paraguassu
São Abebes, espelhos, luzes profundas
Donde emergem perfeitas, belas
Kayalas e Dandalundas
E vão todas elas ao Rumpayme Ayono Runtoloji
No fim da tarde, quando é mais suave a brisa
Para conversar, sem alarde, com Gaiacu Luíza.

Lembram das velhas de línguas trocadas
Capazes de paralisar jovens,
Estendendo-os nas calçadas, gelados ate os ossos
Pelo desrespeito para com seus lábios grossos.

As águas do velho Paraguassu
Testemunha de tantas magias
Lavam-se de tantas mágoas, águas de alegrias
Fazem renascer em cada um de nós
Guerreiros, Rainhas, Amantes, Feiticeiros
Mães e Filhos de Santos.

São tanto assim de poesia, que nos fazem crer
Cada vez mais nas promessas
Nas lanças, nos cantos das festas
As águas do velho Parágua reconstroem a herança
Perpetuam ensejos, refazem esperanças
Regam Áfricas inteiras permanentes nestas terras
Descartam tênues fronteiras, pretextos e guerras.

As águas porque são águas, fluidos sem tormentas
Dançam entre otás as danças dos ventos
Os ventos aos sopros, todos abraços
Entram pelo ori, chamados pelos toques
Vivos em seus passos de Angola, Ketu, Jeje, Nagô
Inquices de qualquer nação
Voduns, fartos, enchentes
Orixás, vertentes, todos nossos de coração. 

Águas que me fazem retomar as canoas dos acertos
Atrever-me, opondo-me aos preconceitos
Entendendo Iroko, árvore, ele mesmo sua morada
Branca Gameleira.
E cuidar das ferramentas, dormir nas esteiras
Saber de peixes, ouro, estrelas, aconchego e Ojás
Simples como chão de terra batido
Como simples são os sentidos
Como simples são inquices, Voduns e Orixás.

Águas, seculares águas sobre nossas cabeças
Bênçãos, Agôs, Mucuius, Colofés
Como nos cobre de bênçãos nossa Mãe
Quando subimos ou descemos ao mundo
Do alto da Levada
Bênçãos em todas as línguas, todas as estradas
Ewe, Fon, Gun, Quimbundo, Ioruba, Mahi,
Quicongo
Umbundo
E nos faz atrevidos...
Sabemos vodunces, iaôs, muzenzas
Em todos os sentidos
Iansã é oya, Dandalunda é Oxum
Xangô é Sobô, Jeje é Nagô
Angola é Ijexá

Somos, pois, um só povo
Para aprender todos os toques em todos os cantos
E queremos ver-nos dançando
Em todos os terreiros, para todos os santos
E vamos além deste sonho menino
Fazer o mais correto pelas Águas que protegem
Das dores, desatinos, e nos preparam, nos regem
Para viver todo Rito, celebrar o planeta e a vida
Cumprindo nossos destinos.

(Cadernos Negros 25, p. 94-96)