Tanclau 

(Ou de como o negão descolou hospedagem dos Federais)

 

Para início de conversa, o caso que vou contar não será mera coincidência com fatos do real que teimamos em dizer que é vida.

Já se vão alguns anos desde que encontrei no IPCN, numa daquelas reuniões, um rapaz chamado Tanclau. Fiquei pensando qual seria a origem do nome, bem falante, simpático, fizemos amizade e quase fundamos, depois de muito papo sobre afro-blocos, o que não chegou a ser o Afoxé Leí.

Tanclau era compositor e também atendia pelo nome de Armandinho. Naquela época o IPCN, um dos poucos movimentos negros que tinham sede própria, andava muito cheio, inclusive de alguns militantes sem pouso que lá descolavam um teto.

De profissão regular, nosso herói era cozinheiro de um hospital próximo e desenvolvia uma prática de militância legítima, facilitando o almoço da rapaziada que vivia a perigo. Diariamente, nos horários de almoço e jantar, ajeitava as coisas de modo que a moçada entrava na cozinha do hospital (pelos fundos) e defendia a boia.

Na verdade, Tanclau tinha uma solução para cada caso. Polivalente, além de cozinhar, nos feriados e domingos guardava automóveis, lavava e polia por um preço módico, batia um couro na Mangueira, de sobra fazia uns sambinhas que arrendava para blocos do sexto e sétimo grupo. Em suma, era, como diria Gonzaguinha, um malabarista da sorte, equilibrista da dor.

Esse papo todo é para nos situar no que ocorreu em Salvador, segundo confissão do próprio, nos idos de setenta e seis, e que veio resultar no batismo africano.

Naquela época, obscura para o contexto geral, vivia-se o "milagre” (que resultou nas inflações da vida), e o solo pátrio abrigava, com desmedida falta de pudor, torturados, torturadores e presos políticos nos mais diferentes rincões.

Tanclau andava no Mercado Modelo defendendo uns cobres com a venda de fitas do Bonfim, jogando capoeira para turista, dando uma de guia, entre outras malabarices da sorte e equilibrices de sobrevivência. De carteira assinada, só mesmo como compositor de Bloco Afro (a polícia não aceitava), fazia três anos. O Ilê Aiyê tinha nascido e inaugurado a revolução ijexá no carnaval e no comportamento de consciência que podemos ver na Bahia.

Num certo dia, temporada de verão, Salvador pululante de gringos, profetas, vampiros, hippies e poetas, a briosa Polícia Civil resolve "sanear" as áreas em torno do Mercado Modelo, onde os turistas se concentravam e, logicamente, as empresas de turismo recolhiam suas largas divisas.

Imaginem o clima de uma "blitz" na Praça Cairu. Critérios: se não fosse gringo, não tivesse carteira assinada ou terno e gravata, cana!

Nessa, Tanclau, crioulo de muitas convicções, vestido de bata africana e sem carteira nenhuma, dançou!

Tanclau havia trabalhado no Porto, trabalhado, digo, uma calça Lee para lá, um perfuminho para cá, isqueirinhos, radinhos de pilha e toda sorte de bugigangas contrabandeadas que as pessoas compram, às vezes sem saber para quê. Para exercer o nobre ofício de moambeiro, Tanclau, eclético como sempre, aprendeu com os colegas aquele inglês de beira de cais, que praticava com os embarcadiços das mais diferentes nacionalidades, vindo a se tornar até intérprete quando surgia produto novo ou desconhecido do vocabulário da região.

Aí, justo aí, os tiras dançaram!

– Documentos?

– I don't understand you, sir.

– É gringo?

– Pardon?

– Gringo preto? Só pode ser africano!

O chefe da operação, informado da presença, nas proximidades da viatura, de um gringo crioulo e não acreditando na existência de tal fenômeno, estanca em frente de Tanclau, com seu traje afro e ar de quem não está entendendo chongas.

– Africano?

– Yes, sir.

– Passaporte?

– I lost it, sir...

– Putz!

Tanclau explicou, com gestos e pondo os bolsos para fora, que não tinha nada.

– Gringo sem documentos vai para a Polícia Federal!

E assim foi.

Transferido o problema do "africano" sem passaporte para a esfera da Polícia Federal, encontrava-se Tanclau, com todas as honras que no solo pátrio damos aos não falantes da nossa língua (lembram-se do Biggs?), frente ao coronel-chefe da Divisão Baiana dos Federais que, no fundo não era muito versado em inglês, muito menos em iorubá (língua para a qual nosso herói volta e meia apelava).

– Vou chamar o professor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos para localizar a origem desse negão e ver o que fazemos para mandá-lo de volta.

Tanclau, a essa altura, já se via embarcando para qualquer país africano o que, na verdade, sempre foi seu sonho escondido: ver a terra dos avós.

Quando o tal professor chegou, correu-lhe um suor geladinho pela espinha: – E agora?

O professor pergunta:

– Where are you coming from?

– La Kara, sir.

– La Kara?

– Yes, sir, a region of Togo.

– Oh! Togo, beautiful country!

O professor fala ao coronel: – É africano mesmo!

Tanclau não explodiu de rir na hora por motivos óbvios relaxou a tensão. Afinal, sua mentira tinha colado.

Do modo que puderam se entender, Tanclau contou ter sido roubado e que se encontrava sem passaporte, sem dinheiro e, o pior, sem navio. Quase me esquecia a história do navio: havia aportado em Salvador uma embarcação de bandeira togolesa na semana anterior aos fatos agora relatados. De um dos tripulantes da mesma, nosso amigo tinha comprado umas calças para revender. Contou então que perdera a embarcação da qual seria um dos passageiros. Constatado na lista de atracação do porto o tal navio, ficou tudo confirmado e o coronel se deu por satisfeito. O álibi estava perfeito!

E como acomodar o "africano"?

O único jeito era alojá-lo nas instalações do Departamento de Polícia Federal. Afinal, se improvisada uma cela especiais, não chegaria a um apartamento, mas quebraria um galho.

Lá estava Tanclau, casa, comida, algumas roupas gentilmente doadas por agentes e, o melhor, uma possível viagem para a África.

Mas, azar quando ataca não há santo que tire. Azar de crioulo, então, só acaba depois de sete luas. Estava tudo correndo muito bem. Tanclau morando há duas semanas no quartel dos tiras, com livre trânsito de entrada e saída, vizinho de cela de um preso político muito simpático quando numa noite infeliz, depois de comer um mocotó: sono pesado e sonho! Sonhou, e alto! Falou, praguejou, se bateu, berrou, riu, e o pior, tudinho em português, aquele português safado, amalandrado, cheio de gírias e etecéteras! Não deu outra, o vizinho (o tal preso político) ouviu tudo e, entre meio pasmo e gozador, decidiu sacanear os tiras. Não se sabe bem como, mas o tal preso tinha lá seus contatos externos, e foi a conta! No dia seguinte ao miserável sonho, oito da manhã em ponto, nosso herói foi acordado por um batalhão de repórteres e fotógrafos, que tiveram acesso ao departamento calçados na história de entrevistar um possível líder africano.

A Tarde, entre outros diários, deu a manchete, em letras garrafais:

"Polícia Federal cai no 'Conto do Africano"'.

Claro que nosso amigo não resistiu ao tiroteio de perguntas do pessoal da imprensa e entregou tudo tintim por tintim.

Com aquela, o arrogante coronel-diretor da Divisão Baiana não contava! Estava "secretariável" junto governo do Estado, promessa séria do governador, e logo assumiria a pasta da Segurança. Ser enrolado pelo negão? Era demais!

Dar sumiço no tal (na época era muito comum) daria muito na pinta, uma vez que a imprensa em peso interessou-se pela matéria.

Transferiu de imediato seu hóspede para a delegacia de Jogos e Costumes, agora na qualidade de preso especial. Pior a emenda que o soneto!

Diariamente, os noticiários acompanhavam o caso e Tanclau passou até a dar entrevistas coletivas, apurando volta e meia uma grana "a título de algumas declarações exclusivas" de como enrolou a tão competente instituição, de suas artimanhas anteriores, de suas pretensões futuras e tudo mais que causa a sensação num caso assim.

Ficou menos de uma semana na tal delegacia.

“Forças ocultas” contrataram para o agora acusado dois excelentes advogados que impetraram ''habeas corpus" pela condição de primário do nosso amigo. Posteriormente, Tanclau soube ter sido o próprio coronel que queria dar um fim ao caso e garantir sua já comprometida nomeação.

Quando deixou a delegacia, um carro o aguardava e foi levado por três acompanhantes misteriosos à presença do tal coronel:

– Seu crioulo filho de uma digníssima dama, para que lugar do Brasil você quer se pirulitar agora para não levar um couro de ficar manco?

– Bem, doutor, desculpe, para o Rio de Janeiro eu topo ir.

– Mas você vai tear calado, seu sacana?

– Claro, doutor, desculpe, coronel, afinal de contas burro é uma coisa que não sou!

– Muito bem, vou te dar uma passagem agora mesmo e você vai embarcar no próximo ônibus.

Ganhou a tal passagem, chorou mais uma graninha pra viagem, juntou seus panos e se mandou (foi escoltado até a rodoviária!).

Usa o nome de Tanclau até hoje, digo hoje porque não o vejo faz algum tempo, ou melhor, na semana passada cruzei com um negão cheio de terno e colete, em altos papos com um sujeito com pinta de barão. O negão era a cara do Tanclau.

Não é por nada, mas decidi conter esse caso e, volta meia, dar uma olhadinha nas colunas sociais. No meio dessa crise, grana difícil do jeito que anda e se levando em conta a versatilidade de Tanclau, nunca se sabe...

 

Nossos malungos têm artes
que não se aprendem na escola
por isso aprendemos bem cedo
pouquinho depois de nascer
a rir da miséria e do medo
e resistir, sobreviver.

 

(Cadernos Negros: os melhores contos, p. 85-92)