As Pérolas de Cadija

 

Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua mãe havia morrido e agora ela tinha de carregar seu irmãozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e então Cadija ganhou uma madrasta.

Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se lá por que a madrasta não gostou dela. Já tinha uma filha do primeiro casamento e talvez pensasse:

“Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada.”

Daí, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossíveis para a coitada. Acordava-a no meio da noite:

– Anda pegar água. Anda varrer o pátio. Anda cozinhar inhame.

Certa manhã seu ódio pela enteada chegou ao máximo. Tirou Cadija da cama aos berros:

– Vá lavar esta colher! E só serve com água do mar. Não volte aqui com ela suja.

Era um jeito de matar Cadija, pois até Dakar onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noites de horrorosos caminhos.

– Quem vai cuidar de meu irmãozinho? – perguntou a menina.

– Carrega contigo – respondeu a mulher com um sorriso mau. – Ou pensa que aqui você tem criada? Tem cada uma!

Cadija partiu. Atravessou rios e matas.

Só faltava atravessar urna savana para chegar a Dakar. A comida acabara e as duas barrigas, a dela e a do irmãozinho, começavam a roncar.

– As-Salam! (A paz esteja sobre você) – cumprimentou um cameleiro.

– As-SaIam! – respondeu ela.

– Está pensando em atravessar a savana sozinha? – perguntou o homem.

– Estou.

– Não faça isso. Sabe quem mora aí? O Quibungo.

– Quem é? – perguntou Cadija.

– Um monstro com um buraco na parte de trás do pescoço. Te engole. Depois não diz que não te avisei.

– E se eu não encontrar com ele? Sempre fui uma menina de sorte...

– Ah! - falou o cameleiro, atirando o manto para as costas.

– Se não encontrar o Quibungo vai encontrar um monstro pior, o Abutre Mortal, também chamado de Arranca-Corações. Ou um ou outro.

Desanimada, Cadija sentou numa pedra. De repente sentiu uma brisa no rosto e nas mãos. E ouviu uma voz:

– Eu te ajudo. Deixe seu irmãozinho esperando aqui. No lugar dele ponha esta pedra. Se você encontrar o Quibungo, já sabe o que fazer.

Era um iska, o djin que mora no vento.

– E se ao invés do Quibungo eu encontrar o Abutre Mortal?

– Aí não posso fazer nada – respondeu o iska. – Ou um ou outro.

Com o pedregulho nas costas, Cadija entrou na savana. No segundo dia de viagem apareceu um guerreiro lindo. Tinha arco e flecha e falou com toda gentileza:

– Onde vais, flor do meu encanto?

– A Dakar, lavar esta colher, que minha madrasta me mandou.

– E essa criança que você leva aí? Deixa ver.

O guerreiro se abaixou para fazer gracinha. No seu pescoço apareceu o buraco escuro que não tinha fim. Cadija rapidamente levou as mãos às costas e virou o pedregulho lá dentro.

O Quibungo mastigou e morreu.

Em Dakar, um mendigo que estava na porta da mesquita pediu:

– Me ajude, pelas barbas do profeta...

– Se eu pudesse... – respondeu ela.

– Só tenho esta colher.

– Eu sei – disse o mendigo. – Espere anoitecer. Só lave a colher quando aparecer a lua. Você vai ver.

Cadlja assim fez. Foi meter a colher na água e ela voltar cheia de pérolas. E assim muitas vezes, até encher a canga. Estava rica.

Ao passar de volta pela savana, ouviu um ronco vindo de uma caverna. Devia ser o Abutre Mortal, o Arranca-Corações.

Pegou o irmãozinho e foi para casa. Tinham se passado oito dias e a madrasta, feliz, achava que ela não voltaria.

Abrindo o saco de pérolas, Cadija fez a divisão. A madrasta queria mais. Puxou a menina para o quarto:

– Onde foi que você arranjou esta riqueza? Temos bruxa aqui em casa e eu não sabia!

– Foi no mar – respondeu. – Meti a colher e foi só.

A mulher fingiu agradecer. E falou para a sua filha verdadeira:

– Se essa boboca ficou rica, também ficarei. Posso carregar mais pérolas que vinte Cadijas juntas.

Pegou um camelo e partiu. Ordenou aos criados que preparassem uma festa para quando voltasse. Mandou os cozinheiros fazerem cuscuz, seu prato preferido. Na manhã do décimo dia, porém, ela não voltou. De tarde, também não. Quando foi de noitinha e os convidados já iam embora, a filha verdadeira decidiu:

– Minha mãe já deve estar chegando. Vamos comer ou o cuscuz estraga.

Quando ela abriu o panelão, ficou branca de susto. Dentro do cuscuz havia um coração. Ainda estava batendo e ela desmaiou, pois sabia de quem era.

Quanto a Cadija, pegou seu irmãozinho e foi morar bem longe dali.

Esta é a história de Cadija, uma menina negra e muçulmana do Senegal. Uma história semelhante a outras, de outros povos, em que há fadas e madrinhas más. Só que, aqui, a fada existe na forma de um anjo da guarda, o djin, e os perigos que a menina enfrenta suscitam os mistérios das culturas milenares que sobreviveram apesar da colonização.
                                                                                                                                                                 (Gosto de África, histórias de lá e daqui, p. 3-8).