O escravizado que tocava piano
Para começar, era uma vez uma palavra chamado escravo, com a qual as pessoas brincavam e brincavam e ficavam brincando. Bem, até hoje brincam em mortal irreverência a respeito da natureza humana, como se a mágica da vida produzisse seres acorrentados ou como se na terra dos meus ancestrais alguma coisa anormal tivesse ocorrido com a civilização, e fosse por uma inexplicável falha cultural, produtora de escravos. Era uma vez uma possível palavra chamada escravo, mas a palavra que uma vez existiu, ganhou vida na imaginação da irracionalidade de alguns. Tomou forma, proliferou e tornou-se triste e real irrealidade, na qual mentes ingênuas ou perversas têm credo. Tendo credo, acreditam. Acreditando, agem como se fosse real. Tornando-se real, a irrealidade transforma-se em natural e acetiavel. Uma nova verdade por seculares segundos imutáveis. É difícil olhar em volta e ver que o mundo é uma imensidão, que milhares e milhares de séculos se seguem, dos quais a nossa imaginação em o curto e instantâneo prazer de ousar imaginar diferente.
A história é apenas isto: o escravo, tocando a transitoriedade das forças, deixa de ser escravo para se reconhecer apenas como escravizado. Recupera a realidade primordial que credos irracionais transformam.
Sopra a brisa indiferente às pessoas. Sopra refrescando a si própria na sua indiferença. Sopra sem dar importância às cenas. Sopra pelo simples e singelo ato de soprar. Assiste a tudo e sopra nos nossos ouvidos a história real e sussurra verdades para quem as quer ouvir.
Estamos em finais do século dezoito, em pleno sertão mineiro, nas serras onde a riqueza do ouro e da prata, das terras, das mãos e do conhecimento africano fizeram abundância da distante Portugal.
O frescor do clima produz manhãs de névoas úmidas e calmas e tardes de esplendor do sol dourando a entrada da noite, onde vez ou outra o Batacotô revive a vida. Bate tembor e soa longe para que o povo ouça. Bate e bate mais, até que o som seja ruidoso prazer de harmonia e conte na sua batida uma história.
Estamos diante de uma propriedade dita colonial, no centro de uma sociedade de imigrantes forçados vindos dos solos Mandingas, Vai e Yoruba, aprisionados em seu corpo e livres em sua mente, em difícil diálogo com imigrantes, não menos forçados, vindos das terras de Portugal e Espanha. Os mais recentes, em sua maioria dignos representantes da escória social, às vezes embarcados à força, às vezes fugitivos, quase sempre rejeitados por seu próprio povo, aqui movidos por um mesmo ideal, à procura de fortuna e lugar social que crimes aqui cometidos pudessem conferir. Uma estrada, às vezes ou quase sempre, ignorante massa criminosa que a história nos fez acreditar como elegante corte. Corte de ilustres e educados seres.
Pois é diante da propriedade, um patamar da casa aberto para o espaço livre do campo, discretamente balançando com a brisa que passa, num vaivém elegante, chacoalha deselegante a impaciência de uma senhorinha. Tem os olhos no caminho e a atenção voltada para o que se passa no interior da casa. Aflita, acaba de vir da sala onde alisava o instrumento de som agudo e metálico vindo de Portugal. Vai até a varanda, volta e interroga ríspida:
– Onde está o professor de canto? Quem vai tocar piano para eu cantar?
Na outra sala, alguns viajantes chegados da corte, maltratados pelo tempo e pelas dificuldades do caminho, tratam de negócios. A senhorinha tinha visto na visitante presença platéia para seus dotes aristocráticos.
Nascida na região, conhece o mundo de leituras e conversas repetidas cotidianamente no jantar como preâmbulo para a longa noite de sonha mergulhada na escuridão da noite, interrompida apenas pela lamparina a óleo de banha animal. Filha de imigrantes: a mãe, expulsa pela severidade de um pároco com relação à prostituição. O pai, um mercenário transformado em mercador. Ambos sem nenhuma instrução ou título de nobreza, nem mesmo algum ofício que os fizesse portadores do respeito e futuro assegurados na metrópole. Sonhadores de que, um dia, talvez a filha os pudesse resgatar o passado, derma a ela tudo que não tiveram, certamente após se estabelecerem no interior mineiro e tornarem-se proprietários à custa de diversos crimes, dentro dos quais a escravidão de todos que eram escravizáveis: africanos, oficialmente, índios e europeus não-oficialmente. O poder apoiado pelas armas e por bandoleiros que conseguiam organizar. A menina, um dia, deveria brilhar na corte, portanto, era treinada para a corte. Desta ilusão fazia parte o treino solitário da música sem platéia, sem corte, sem príncipes e nem meso sapos.
Um rapazola fazia o polimento de peças ao longo do caminho e observava a impaciência explosiva da senhorinha. Sem que ela imaginasse que ele fosse mesmo capaz de entender o que se passava. Sim, ela não imaginava entendimento possível. Bem, teremos que explicar antes de concluir ou seguir eu o escravo para ela era um móvel, um ser movente, sem capacidade de compreensão, a menos que o mestre pensasse por ele. Criada repetindo a inteligência do branco português e acreditando na nossa imbecilidade africana, se acercava da verdade em cada inverdade criada naquele miniespaço da propriedade, onde a violência domesticava os espíritos e imbecilizava a inteligência humana, do dominado e do dominador.
Numa das idas e vindas à varanda pragueja e pergunta a senhorinha:
– Quem vai tocar piano para eu cantar? Este imbecil que nunca aparece – referindo-se ao ausente professor.
Repentinamente, um dos imóveis, um dos seres moventes ali presente, impensável para ela ou para alcance possível dela, e para surpresa própria se manifesta.
– Se quiser, eu posso tocar o piano.
De súbito, o relho canta na mão da senhorinha:
– Isto pra aprender a não mentir.
O relho soa novamente:
– Isto pra aprender a não ser insolente e meter as orelhas em assuntos de brancos.
Ela então sai em direção ao mesmo espaço da entrada resmungando:
– Onde já se viu um negro tocando piano. Lá sabe ele o que é piano?
O tempo passa, a impaciência aumenta e a raiva também. Era preciso extravasar, culpar alguém, portanto, o ser movente tornara-se a desculpa mais oportuna.
– Diz saber tocar, como pode? Onde aprendei?
– Antes da nossa cidade ser invadida e destruída, meu pai usava tocar muitos instrumentos. Quando os portugueses chegaram trouxeram um padre com uma caixa de música diferente de todos os nossos instrumentos musicais – tinha corda dentro e os nossos por fora. Meu pai aprendeu a tocar este instrumento musical e ensinou a todos nós.
– Sabe tocar? – um sorriso de desdenho brilhou no rosto da senhorinha.
O relho se aprumou, mandante e reinante na tonalidade de relho ameaçador.
– Pois toque!
O rapaz olha com olhar cruzado, vai ao instrumento, espia em torno, prepara e toca. Mal começa a tocar, um grito interrompe a mal começada audição.
– Diabo! Coisa do Diabo! Somente o diabo pode fazer um negro tocar piano!
A senhorinha sai correndo à procura da ajuda, de crucifixo, e sempre gritando:
– Diabo! Diabo! Diabo! Somente o diabo pode fazer o negro tocar piano. Só pode ser coisa do diabo!
Dois dias depois, o Sebastião, que antes se chamava Diolofe, era enviado par outra propriedade, vendido como quem poderia incorporar o diabo. A senhorinha ficava enfiada na sua ilusão de ter visto o diabo.
A depressão e a paranóia aumentavam. Dia a dia a senhorinha parecia mais assustada com a idéia de o negro tocar o piano. Confirmava que o diabo de fato existia. Ela o vira.
Praga, pura praga desses negros. Padres eram trazidos para espantar o diabo e nada. A senhorinha só piorava e a paranóia aumentava.
Dois anos mais tarde, a senhorinha morreu louca, sempre repetindo:
– Um negro não pode tocar piano. Foi o diabo, o diabo.
Dezesseis anos mais tarde, o Dialofe morreu lutando contra os portugueses. Antes de morrer disse:
– Como pode este povo primitivo, cruel e violento pretender ser civilizado, pretender nos escravizar? Nascemos livres, vivemos livres e morremos livres. Como pode gente tão ignorante querer nos dominar?
(In: Tear africano: contos afrodescendentes. p p. 35-40)