Paulista

Paulista foi meu pai de rua em BH. Me ajudou, me acolheu e até me chamava de “fio”. Eu vim subindo pela Afonso Arinos de besteira, recém-chegado ainda, quando senti o cheiro da ganja forte e prensada do Paraguai que eles usam por lá. Encostei no cara, fumava ele e um pivete que eu já vira no sinal da Afonso Pena, pedindo dinheiro pra as madames nos carros. Foi só chegar: – São meus fios esses aí – ele me disse apontando o outro neguinho que se achegou na roda: – nós somos uma famía ... e parou sugando o cigarro de erva, olhando com o rosto inclinado, pralgum nada profundo (Eu ia me acostumar com isso, sempre que sua filosofia pedia alguma reflexão mais demorada): – é fio, nós somos uma famía, repetiu olhando ainda algum ponto atrás da minha cabeça: - Só falta uma mãe, não é? Mas isso eu arranjo essa semana, pode contar! Era seu jeito: o que tinha de ser, tinha de ser!

Desse jeito eu entrei pra família, nesse movimento . Meu destino era São Paulo, mas Belô é uma passagem que sempre emperra o cara uns dois meses até seguir na viagem. Sem pressão, eu tava dormindo num albergue lá na Lagoinha, em vista de uma passagem com a assistente social da prefeitura. Buscar trabalho, fazer dinheiro, comprar um barraco numa dessas favelas que a gente ouve os nomes nas letras de Rap. Paulista que me ensinou das ruas do Centro: – Olhe Fio, eu posso te ajudar, e tal, uma mão lava outra e tal. Eu tenho um trabalho aí, que eu faço e tal, uns barco de papelão com palito de fósforo. Cê é bem chegado na nossa famía, cê ajuda nóis que nóis ajuda ocê.

Paulista devia ter seus trinta anos, gordo não, forte. Preto como um africano, cabeça raspada sob um boné do Corinthians que não saía pra nada. Sempre de bermuda e tênis, camisa de futebol. Tinha o Gui, seu mais velho, de dez anos, que guardava carros na praça, e o Ivan, que ele só chamava por “neguinho”, e era o que pedia no sinal.

– Tem esse cachorro aí fio, que é da famía também, tá ligado, fica com nóis e não pega nada pra ele, que de noite no coió, é ele que avisa de movimento.

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– Fio, uma garrafa de 51 pra nóis, e olhe fio, veja no jornal que time daqui que ganhou no domingo, pra saber de que cor nóis faz os barcos hoje, branco e preto, ou azul e branco. Eu ia e olhava os resultados dos jogos do Atlético e do Cruzeiro.

[...]

– É fio, ele dizia, eles pensam que nóis bebemos (ele tinha mesmo uns de repente de concordância verbal) pra ficar chapado, e não botam fé que nóis bebemos é pra ficar careta. Eles não sabem que na rua, se ficar de cara, o homem pira o cabeção, então nossa caninha é que segura a gente de cara!

(Salvador negro rancor, p. 29-31).