Por acaso

Por acaso acordou com a porra da frenologia na cabeça. A lombra de Lombroso que Nina Rodrigues abraçou. Nem que tivesse lido recentemente alguma coisa sobre isso, a frenologia se grudou em seu cérebro como assombração matinal, foi com ele o dia todo e noite já se ia e a coisa ainda martelando.

Sábado de noite, estava indo pra casa da tia mais velha, que chamou a parentada toda pra bater laje no domingo, cortar cana dura com os primos e comer aquela feijoada de elite que a negona preparava. Conseguiu pegar o último São Marcos antes da madrugada, nem cheio nem vazio, um lugarzinho só, como se lhe esperando. Sentou inocente, na moral, mas percebeu de imediato que a mulher ao lado protegeu a bolsa no colo, instintivamente, com medo.

Puta que o pariu, isso era das coisas que mais odiava, ser tirado de ladrão, aguçou os sentidos. Também, a mulher a maior alienígena, loira como a mulher da novela, seus trinta anos, lá dela, sapato de salto, vestido preto parecendo roupa de grife, de desfile mesmo, parecia ficção, se alguma coisa ainda fosse ficção hoje em dia. Não ousou olhar diretamente, e nem ela, os dois se investigavam com o canto dos olhos, pretensa vítima e possível predador, medindo, inquirindo.

Tentou disfarçar a tensão, olhar pro lado, o estômago já embrulhado, mas sua presença era imperativa, e forçava o olhar pro seu lado.

E se Lombroso estivesse certo, e sua mente guardasse um animal assassino perdido lá em alguma selva africana de um filme de Tarzan? E se Nina Rodrigues estivesse certo, e sua mente guardasse um sociopata latente, pronto a cometer um crime, seu crânio de ladrão lhe empurrando pra o desvio, o mal?

Pensou nisso, o ônibus já vinha cá pela Brasilgás, a oitenta por hora, que o motorista, também homem delinquente, perde muito a noção a essa hora da noite. Em verdade, a mulher com esse corpinho de modelo, não aguentava um tranco, veja só: bolsinha de carregar no braço, um puxão mais forte e levava braço com tudo. Como tremia, a moça, dava quase pra sentir o cheiro do seu medo, no nervosismo com que se movia na cadeira, na respiração parada de bicho acuado, as mãos apertadas na bolsa preta de couro. Podia lhe dominar com uma mão só, sem muita violência, e na certa esse medo era por alguma coisa que tinha ali dentro. Talvez o salário do mês, ou o dinheiro de algum empréstimo, o celular novo, uma jóia, que ela tinha mesmo jeito de usar. Era puxar e correr, daqui pro final de linha de São Marcos, polícia não tem pra ver nada, era só fazer e correr, conhecia tudo por ali, nascido e criado no Pau da Lima, se descesse em uma viela, só lhe achavam se quisesse.

Mas, e se fosse também um desviante sexual, um perverso, que somente sentisse prazer submetendo sua vítima à dor? Nada que não estivesse na lombra de Lombroso, em verdade, era tudo previsível, no tamanho e formato de seu crânio. Tudo deserto essa hora, era puxar a loirinha pra um canto qualquer e fazer do jeito que quisesse. Um murro na nuca, se necessário calar sua boca. Pressentia que esse medinho de puta tinha muito era de excitação reprimida, de vontade de dar prum macho mais forte, másculo, imoral, do pau grande e grosso. Se esse era o seu estereótipo, por que não imaginá-la lasciva, gritando não, enquanto queria mais, mexendo os quadris e mordendo os lábios enquanto chamava a polícia pra destruir o corpo daquele amante violento?

Queria dar um fim naquele turbilhão de bobagens, Lombroso que se fodesse mais Nina Rodrigues e o diabo no inferno. Aquilo parecia era coisa de obsessor, mas a tia velha sabia uns banhos bons pra afastar espírito perdido, e já estava chegando.

Por acaso, no entanto, tremeu quando a mulher pediu licença da poltrona, pra saltar no mesmo ponto e tomou sua frente no corredor do ônibus. Desceu na rua vazia, nem cachorro se aventurava aquele horário. A branca ia na frente, bolsa balançando, com seu rebolado de branca nos passos de modelo desfilando. Era mesmo uma coisa bonita de se ver, contra luz de mercúrio da Paracaíma. Parecia uma visagem, a diaba, uma personagem de novela caída do nada em meio ao gueto, e aliás, que zorra é que essa figura ia fazer por ali, àquela hora? Ser assaltada, é lógico, será que não sabia do risco que corria? Qualquer menino podia roubar sua bolsa, lhe agredir, lhe violentar e desaparecer como saci.

Quando ela lhe percebeu vindo logo atrás, voltou a segurar a bolsa no colo, nervosa, e apressou os passos em direção à baixada. A tensão então retornou. Se ela continuasse se fazendo de presa fácil, ele ia pirar de vez, sabia disso, e fazer alguma merda: era um passo só, fazer e correr! Era o que ela esperava, era o que ela previa, era o que o cenário pedia, era o que a hora alta ansiava. Por acaso, no entanto, tremeu ao divisar, na virada da curva uma viatura da Rotamo, subindo a rua a vinte por hora, escopetas pra fora das janelas, dentes afiados, e se sentiu como uma hiena, diante de um grupo de leões. A veadinha fazia sinal, desesperada, e apressava ainda mais o passo. O carro fúnebre parou e ele gelou. Sabia bem das cenas dos próximos capítulos: vigiar e punir era o lema. Entregou a Deus e continuou andando, com medo, é verdade, mas a culpa mesmo era de Lombroso, que acordou com ele e passou o dia todo lhe atazanando o juízo. Não tinha nada a ver com isso. Se aproximava dos homens. Ela já ia na direção deles. Um dos guardas já vinha em sua direção, de doze na mão e gritando pra ele parar, colocar a mão na cabeça e se ajoelhar. Execução era assim, sabia disso muito bem. Entregou de novo a Deus, e dessa vez a um Deus em particular, seu pai de cabeça, rezou, pediu, e esperou.

O homem mau se aproximava, seria ele também uma vítima de Lombroso? O que esperar dele, ao mesmo tempo delinquente e agente da lei e da ordem, um claro contra senso, por conta de seu crânio simiesco e sua pele preta, cheio da lombra de Lornbroso na cabeça. Juiz e executor?

Ouviu o estalar da escopeta, estava pronta. O som dos coturnos no asfalto se aproximavam, dois, três pares de coturno soando na madrugada que se silenciara mais profundamente.

Ouviu a voz da tia velha cortar a rua: Rominho, Rominho meu filho, pelo amor de Deus, levante daí menino, que você não é vagabundo! Levante daí meu filho! - a voz sempre firme e autoritária da coroa, não escondia nenhuma tensão. Ouviu o policial então retrucar: A senhora conhece esse homem, Dona Miralva? E a velha respondeu: é meu sobrinho, pelo amor de Deus! É o mais novo de Teresa, sargento, pelo amor de Deus, me entregue meu menino! E o guarda respondeu de novo: Calma Dona Miralva, a gente ia só averiguar uma suspeita, tenha calma pra senhora não se sentir mal de repente.

Mandaram levantar, meio atordoado sentiu o abraço violento da tia lhe arrebatar, menino, menino, eu não falei pra você vir cedo menino? O buraco aqui tá quente menino sem juízo, isso é hora? Seus primos já tão tudo dormindo!!

E você minha senhora, o que está fazendo por aqui essa hora, a senhora mora por aqui, ou tá procurando alguém? É mulher de traficante, por acaso? - Ouviu o policial se dirigir à loira, que sumira completamente do foco de sua atenção: Entre aí na viatura, que a gente vai te levar no seu destino, depois de averiguar de onde vem e pra onde vai...

Foi andando com a tia, sem nem olhar pra trás. Pobre moça, pensou, entregue sozinha a cinco lormbrosianos lombrados, em plena madrugada. Dormir cedo, que bater laje é trabalho duro. O que seria dela, coitada, ou estaria realmente imaginado coisas?

(Salvador negro rancor, p. 50-55).