Pipoca

Barulho ensurdecedor ferindo os ouvidos. Tensão. A multidão em polvorosa nas ruas noturnas. Helicópteros. Medo. Tropas de choque. Um homem negro caído imóvel no chão deságua um rio de sangue: é carnaval em Salvador!

Minha missão é atravessar meu corpo negro em segurança até o Garcia, passando por toda a Avenida Sete, onde a festa corre solta. Eu já trabalhei o dia todo, vendendo cerveja e batida de maracujá. Desde de manhã cedo na luta, comprando gelo, arrumando isopor, descarregando caixas e mais caixas de refrigerante e cerveja. Tudo amarrado, trânsito lento, a paciência no limite em que um tombo mal dado ou um olhar mal cruzado podem estourar um assassinato. Os pretos subindo e descendo a Ladeira da Montanha com sacas de gelo na cabeça, mulheres e meninas fortes trazem até quatro caixas de refrigerantes nos braços.

Eu se não tirar o meu agora no carnaval, passo o semestre todo no osso, e aí a vida não corre. A onda é essa mermo: correr na frente que atrás vem gente!

Agora, noite de terça-feira de carnaval, última noite da putaria, a galera tá na sede da loucura, na ponta da faca da maldade.

Quem não bateu em ninguém, tem que bater, quem apanhou tem que descontar, quem tem conta pra acertar, a hora é essa, quem não se armou com ninguém, tem que arrumar uma figura pra namorar hoje! Porque se não, já sabe, é o ano todo sendo comediado pelos camaradas da rua, e ficar só afinando os dentes pro carnaval que vem. “Os Home” então nem se fala, tem polícia que trabalha até de graça, pede pra trocar o dia, pra poder dar plantão na terça-feira.

Eu não vou mentir, já gostei, mas hoje em dia mano, na moral, pra mim é só trabalho, quero é ver minha nega, minha filha que tá me esperando, juntar “o bom” pra passar os próximos meses que o bicho tá pegando é no meu bolso.

Logo na Rua Chile o pau já comeu. Esse cara tomou um murro de algema na fonte, e taí no asfalto se batendo e sangrando. O motivo quem sabe são eles, o Choque que tá passando o rádio chamando a viatura. Eu tô só de passagem, só de passagem, e que meu Deus e Xangô me protejam.

Se descer pela Barroquinha é viola, os sacizeiros tiram meu escalpo e roubam até minha cueca. A Baixa dos Sapateiros já virou a cidade fantasma do crack, e só quem não tem nada a perder é que correria o risco. A Avenida Contorno, do outro lado, é outra conversa: choque descendo, P.E. subindo e agente da civil dando bote de paisano. Até eu explicar o dinheiro guardado no tênis, ia eu no rodão da 1ª e só quinta-feira tava solto. O jeito é mesmo atravessar a muvuca, seguir na levada, pronto pra tudo e entregar a Deus.

Desde a Praça Castro Alves é terra de ninguém. Eu fiquei nessa de pensar na vida e só percebi quando o trio tinha já começado a tocar. Sorte minha que era Baby Consuelo sem pecado e sem juízo, aí dá pra subir até a Carlos Gomes no vácuo de um cordão da PM que atravessou a praça. No começo da avenida eu já pego Margareth botando o chão pra tremer. Sua voz potente atravessa os corpos em milhares de decibéis, a percussão come no centro, o couro das congas é que marca o ritmo, a massa se agita ao som de Dandalunda, e eu sigo a minha estratégia: dançar junto com a música, cuidando pra não levar pancada, e avançar uns cem metros a cada intervalo.

O trio de Margareth é de pipoca, só o povão é quem vai atrás mesmo. Viola de um lado, biriba do outro, playboy nem pensa em colar. Desvio dos grupinhos, é onde mora a covardia. Um que pare de vacilo no meio de uma barca dessa: eu que já sou macaco velho, sempre na levada. Minha mulher me esperando em casa, ó praí, eu colei foi numa pretinha que me deu um sorriso e fui grudado nela até o outro trio. Ainda dançou pra mim, alegria da cidade, e enfiou a língua quente em minha boca, dançou e me soltou de volta no fluxo de gente. Mais à frente rolou uma briga grande, eu conheço uns caras de Castelo Branco, mano, os caras treinam o ano todo pra barbarizar no carnaval. Mistura com cravinho, duas gramas de pó, o peão parece o satanás, cada músculo definido brilhando de suor, superagilidade, maldade pura, ginga que ninguém nem entende a velocidade dos murros que derrubam o outro preto em sua frente. Cara pisada no asfalto, barriga chutada, dente quebrado. Os pivetes fazem os halteres com latas de leite cheias de cimento, cabos de vassoura, e vão se inchando de fevereiro a fevereiro. Corta perna de calça, costura um saco de boxe e vai calejando a mão até ficar parecendo uma soqueira, um murro, uma queda.

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(Salvador negro rancor, p. 43-46).