Cauterizai o meu umbigo, Oh, mãe!

 

 

"Vejo ao longe um dragão. As narinas em fogo, a bocarra aberta; o rabo longo, coriáceo, como fosse um jacaré. Logo abaixo uma larga lesma branca. Encimada pelos mastros carbonizados das caravelas lusitanas...

Meu navio se aproxima da praia-lesma.

Sim, era uma praia, as altas dunas espalhando sua claridade brilhante sobre o oceano, espelho azul. Coqueiros e cajueiros, eis os mastros e velas entrevistos. Ao alto o dragão-nuvem se esfumaçara... Algumas miragens, creiamos; podem se tomar estranhamente reais ... “

 

 

Foi quando Limpunda chamou-me para comer em sua casa. Afirmou que sua mulher gostaria de conhecer-me, que há muitos dias todos aguardavam minha visita ... Tanto falou que resolvi ir.

Era ele extremamente alto, e quando lhe falei que sua figura destoava dali, daquela região, respondeu-me que era mongo, e todos os bamongos eram altos e fortes. Lembrei-lhe que Wyombo também era mongo e, no entanto, bem pequenininho. Deu uma resposta qualquer, que não convenceu.

Viemos à sua casa.

A mulher não estava, e nem havia almoço preparado.

Procurou uma garrafa de uísque que, dizia, deixara sobre a cômoda. Não a encontrou. Ficou ali a remexer as gavetas. Pouco à vontade, meio deslocado. Pareceu-me que há semanas não entrava naquele lugar. Soube depois que aquela casa era da concubina, que nem sabia da minha existência e nem fora informada da visita.

Singular indivíduo, esse Limpunda.

Falava alto, lançando perdigotos, literalmente cuspindo sobre o interlocutor. Estava sempre excitado, permanentemente com um problema familiar grave. As pernas longas se mexendo inquietas, mal cabendo nos sofás e cadeiras.

Nem sinal da comida E a bebida não vinha. Nada de movimento de panelas na cozinha. Em pouco chegou Wyombo, também convidado de limpunda. Terminamos os dois por nos cotizarmos e mandamos um garoto à venda comprar cerveja.

Limpunda apontou para uma arma pendurada na parede.

Algo como se fosse uma espada, o cabo de madeira. Possuía na ponta da lâmina, cuja maior porção era serrilhada, um grande dente pontudo, oposto às serras, à feição de uma machadinha de folha estreita. Perguntei-lhe de quem era aquilo. "Pertenceu aos meus ancestrais" - respondeu. "Nas guerras que fizemos, há vários séculos, vencemos muitas tribos, fizemos numerosos escravos e expulsamos vários inimigos para o litoral. Só restamos aqui nós, os mais fortes, os mais bravos, os mais inteligentes."

Olhei-o curioso, a ver se realmente acreditava no que estava dizendo. Meu pensamento, em volutas irrefreadas, retornou no tempo. Fiquei pensando de onde poderia ter vindo aqueIa poderosa maça de guerra ...

Dizem que já no século XV os grandes fornos do Mali produziam aço que rivalizavam, em dutibilidade e dureza, com aqueles fabricados, na mesma época, em Toledo e Milão.

Por esse tempo Diogo Cão subia o Oceano Atlântico, dobrava o Cabo das Tormentas, e fincava a bandeira portuguesa na foz do rio ao qual chamou Nzadi em suas anotações. Quatro séculos depois, o belga Stanley, aportando no mesmo local, arrancou a bandeira portuguesa e rebatizou o rio de Rio Congo. Iludido, dizem, pela resposta nativa à sua pergunta: "qual é o nome deste rio'!" Responderam: "Nzadi Ne Kongo" (este rio pertence ao rei do Kongo).

Mais um século se passou até que o rio e o país correspondente recebessem de volta uma variação de nome primitivos: Zaire

Stanley subiu até Kissangani que, na época, denominou Thysville e, próximo ao "Lac Edouard" (hoje lago Idi Amim Dada), encontrou Livingstone, o célebre pesquisador inglês, que chegava de cima, vindo pelo Egito.

É uma história simples e recente, esta do Zaire, mas dentro dela repousam todos os enigmas da humanidade.

 

"Sim, lembro-me bem, Limpunda. Éramos felizes. Éramos um povo guerreiro, e também de artistas, na paz. Nossas guerras eram ferozes, sangrentas, e faziam muitos prisioneiros, que se tornavam escravos. Sim, Limpunda! Vários de vocês, bamongos, foram nossos servos. E quando o potentado, nosso sábio e bravo chefe morria; de velhice, e sempre muito velho, que muitas vezes fomos vencedores; seus servos eram também enterrados - vivos - junto a ele e a toda sua fortuna. Também costumávamos fazê-Io partir acompanhado de suas mulheres. Mas a estas dávamos morte digna antes de serem recolhidas à tumba. Pois eram de nossa própria raça e, como vocês, também nos julgávamos superiores, os Homens, os Ndombe. Mas as próprias mulheres recusavam a indulgência da morte. Caminhavam serenas para debaixo da terra. Enquanto vocês, Limpunda, lembro-me, choramingavam, pediam clemência, apegavam-se às suas vidas fracas, sem valor. Às vezes os perdoávamos. E não os enterrávamos, e ninguém mais os queria como servos que, sabíamos, a fraqueza se transmite de pessoa a pessoa. Quando perdemos a guerra, Limpunda, lembro-me ainda - Diogo Cão já era um velho, e se arrastava em Lisbona, esmolando em nome de glórias passadas -, pensei que seríamos tratados da mesma forma. Escolhi um amo jovem, pois pensei, quando ele morrer eu também serei já um velho, e tudo farei para que não adoeça. Então, ajoelhei-me, quebrei minha lança, entreguei-lhe minha maça de guerra; sim!; ESTA, LIMPUNDA, QUE AGORA ME ESFREGAS À FACE COMO TUA! E não pude compreender quando amarraram-nos cangas ao pescoço, e ajojados como bois fomos sendo tangidos através da floresta, em direção ao litoral. Pensávamos que era porque vocês nunca tinham ganho uma guerra. E não nos davam comida. E não podíamos caçar, pois estávamos presos. E, Limpunda, sempre fomos melhores caçadores que teu povo. Olhávamos, orgulhosos, o que era tua comida. Preás, macacos; boa, a lerda serpente do rio. Onde estavam as carnes nobres? das gazelas, da deliciosa barriga de Gimla, O jacaré?, O tutano das patas dos elefantes? Tangeram-nos até a praia. Escutavam o grito irado dos brancos, mantendo a cabeça baixa. Ficamos estarrecidos. Então os brancos te gritavam aos ouvidos? Na tua terra? Compreendemos.Compreendemos quando vocês passaram a nos dar a melhor comida, a água decantada, a mais pura. Compreendemos quando o branco lhes deu miçangas e adereços. E por que estávamos no cercado. Éramos como porcos. Sim, como porcos, e como porcos tínhamos que ser engordados. Pois é, Limpunda, compreendemos: estávamos sendo vendidos. Muitos começaram a se lamentar, a bater com a cabeça na paliçada; as mulheres a escavar o chão, procurando enfiar a cabeça, se sufocarem e aos filhos pequenos.

Olhei-te nos olhos. O tempo todo olhei-te nos olhos. Bamongo, hein? Eu voltarei, bamongo!"

 

 

Wyombo desistiu da comida. Preparava-se já para ir embora quando chegou Séia. Exatamente, o simpático Séia.

Ao ser informado de que discutíamos sobre a maça de guerra dos mongo abriu um sorriso sardônico:

Ih!, precisa ver na minha terra; na minha terra a gente tem na parede é pedaço de gente, é, pedaço de gente; mão, dedos qual é minha tribo? - Sou Malele, Ma-Ie-Ie. Vê estas duas marcas na minha testa? Todos na minha tribo a têm; é, Rodrigues, "je suis malele". Ah! Ah! Ah! Limpunda, conheço vocês, os mongo. Sabe o que fazemos na nossa tribo? Quando um chefe começa a dar mole pros brancos, a gente deixa. Dá um tempo. Vai ano entra ano. O branco roubando da gente; a gente quieto. O branco bate na gente; tudo bem. A gente foge, o chefe manda buscar de volta e dá porrada. A coisa vai. Até que a vingança amadurece:

A tarde caindo, dois caras, ar inocente, vêm convidar o chefe para a festa rio abaixo, no Village. Então, pela noite morta, a lua brilhando pálida, descendo próximo à margem ladeada de árvores grossas e cipós, lá vem o barco.

O chefe gordo, barrigudo, cabeceando, olhos semicerrados a antegozar a festa que vem.

Os dois ali, remando para o chefe na noite clara: plaf, pIaf. .. plaf, plaf ...

Aí, chega no Village. Todo mundo reunido, baixam a cabeça cumprimentando' o chefe. Vamos todos para o salão. As moças dançando, o chefe assentado ao centro da sala. Bêbado e comendo, aguardando o clímax da festa.

Súbito se levanta um, pede licença, avança, tira a camisa e diz para o chefe:

- Tá vendo estas marcas ,em minhas costas? Está? Que o seu amigo branco me fez com sua autorização?

- Bem ...

Outro:

- Sabe por que estou mancando? Olha o meu tornozelo.

Me cortaram o tendão para que eu não fugisse. Trabalho mancando, imagina como sofro, o retorno à cubata para mim é mais longo. À noite sonho que estou a correr pelos campos. E acordo, o tornozelo doendo, doendo. Acha certo isso, Ó Aquele Que Nunca Teve Compaixão?

O chefe entende, enfim, o objetivo da festa. Às vezes reclamam, choram, pedem pela vida. Prometem regenerar-se. Outras vezes pedem apenas mais um copo de vinho de palmeira.

O resultado é sempre o mesmo.

Um ou dois homens se levantam. Quase sempre os da sua guarda, os mais leais: aqueles nos quais depositou toda a sua confiança. Puxam o facão e avançam. As mulheres começam a gritar, a bater com os punhos no chão. As crianças a cantar e pular.

Decepam-lhe a cabeça, os membros ... Os cozinheiros se adiantam.

É, é, Rodrigues. Preparam-no igual a um leitão. Com azeite de dendê, pimentão, tomate. E cada um come um pedacinho, por menor que seja. As crianças recebem os dedos dos pés, para brincar; ninguém gosta de comer os dedos, muito osso e pouca carne.

Costumam fazer isto com o branco também, quando este se mostra arrogante, metido a bravo, a chamar todo mundo de ignorante e preguiçoso. A gente fica ali, olhando, pensando: "vai, continua assim que nós vamos, ó! te comer!. .. ".

Finalmente, o que matou, o que deu a traulitada inicial, tem direito de ficar com a mão direita do chefe. Embalsama ela e pendura em casa, no meio da parede da sala.

Até hoje, na minha cidade, Kissangani, quando vem um branco na casa da gente propor negócio - que eles vêm mansos no princípio, depois é que acham que são donos, da terra e das pessoas -, levamos ele para a sala e mostramos a mão na parede; que depois de um tempo ninguém sabe se é de branco ou se é de preto. Faz-se o negócio, leva-se adiante, mas antes mostramos pra ele: "olha aí, Ó, se fizer sacanagem sua mão vai pra parede".

Eles fingem que não sabem, sorriem contrafeitos, mas lá em Kissangani, Limpunda, não tem desse negócio não. Cadê a cerveja? Traz mais aí para a gente. E o uísque que você ganhou dos americanos? O quê? Já acabou? Olha, Limpunda (e sorri candidamente, um sorriso branca, branco. Este Séia é um doce), cuidado com esta sua mão direita ...

 

"Sim, Limpunda. Eu não conseguia compreender o código dos Brancos. Alguns deles havia que também trabalhavam como escravos. Mas mesmo assim não se sentiam iguais a nós. Tratavam-nos como se fôssemos animais. E os outros brancos também não os tratavam como se fossem gente. Tinham oportunidade de fugir e não fugiam. Nas paradas, nos vários portos do litoral, onde novas levas de escravos africanos entravam, eles podiam se internar na floresta e não o faziam. Auto-escravos, é o que eram. Ficavam na escravidão por própria escolha.

O mar nos amedronta. Tanto tempo sobre as águas, os monstros marinhos, o final do mundo, onde estariam? Muitos dos nossos pularam no mar, ou esfacelaram as cabeças contra as paredes; mulheres estrangulavam os próprios filhos ao temor de um sofrimento maior: O Desconhecido.

Eu não compreendia. E ainda hoje perscruto-lhes os' olhos e as faces. Por que precisam de alguém que lhes adestre e leve o cão para as caçadas, se o limpar e conduzir a arma também fazem parte do disparo [mal? Por que seus olhos nos olhavam sempre com ódio, se nada lhes fizéramos a não ser perder uma guerra, que nem contra eles fora? E por que seu sono era cheio de remorsos, se vencera uma guerra em nome de Deus e do seu Rei? que, diziam, era justo e bom? E cheguei do outro lado da terra cheio de confusões.

Por que não podia um homem sustentar várias mulheres, e, ao contrário, tinham elas que rolar pelas ruas vendendo seus corpos e sendo humilhadas, tendo chamado de sórdido o comércio do amor? E o pão e o teto davam para todos. E a maioria dormia ao relento e com fome.

Ah!, Limpunda, para que mundo me enviaste!"

 

 

Após a narrativa da Séia permanecemos, eu e Wyombo, na esperança de que Limpunda se mancasse e algo de sólido pintasse para comer.

Perguntei-Ihes sobre os malês, que região habitavam. No meu país, disse-lhes, deixaram sólida tradição histórica e cultural. Excelentes artesãos, muitos deles se notabilizaram Como ferreiros, seleiros, alfaiates e, mais tarde, até como advogados. E tenazes guerreiros. Após a rebelião de 1835, na Bahia, quase um terço da população malê do estado foi dizimada. A política chegava num reduto de negros que, apesar dos massacres que estavam ocorrendo, ainda se julgava vitorioso: as mulheres, homens e crianças lá estavam cantando e dançando, comemorando a liberdade recém-conquistada. Quando começavam a prender os cabeças o pau quebrava; todos, indistintamente, entravam numa luta de morte. Houve choques em que morreram mais de mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, batalhas de uma guerra obscura, de parâmetros indefinidos, de parte a parte. Um massacre selvagem, sem lei, sem crônica.

- Não sabiam, Wyombo, Séia ou Limpunda, onde estaria hoje o povo malê?

Não sabiam.

- Talvez no Kivu - aventava Séia -, lá estiveram os mulçumanos.

- Não - era Wyombo -. Lá estão também os Rutu, que são de origem Bantu. Pois não fazem no Brasil esculturas de madeira? Escultores, trabalhadores em madeira, são os Angola e os Rutu. E não têm vocês uma dança de saltar e bater com um porrete no chão e no do adversário, cantando e pulando? Isso não é do Leste, é do Sudeste africano, deve ser Bantu _ refletia judiciosamente.

 

Ah! Limpunda, -quanta dificuldade tive para sobreviver. ver. Baixei a cabeça, olhei de soslaio. Comi os restos do porco, com o feijão que nascia entre os cafezais. Plantei o milho escondido, vivi de saka-saka, a folha da mandioca brava.

Quantas vezes eu divertia o seu amigo branco, cantando histórias, contando sons e toadas.

Anos e anos se passaram, Limpunda, até que consegui descobrir quem eram vocês; você e o seu amigo branco. Centenas de anos se passaram, Limpunda. Centenas de braços, centenas de ventres se abriram, e eu surgi, afinal. Cruzei livros e máquinas, ventos e pensamentos, mares e ódios, amores e covardias. Mas aqui estou, Limpunda, a ouvir suas baboseiras. Agora eu a quero, Limpunda. Quero de volta minha maça de guerra, roubada ao tempo de Diogo Cão!'"

 

Passou um garoto, filho de Limpunda, Séia puxou-o pelos ombros, arrastou-o para si, através dos sofás: "Vem cá, guri! Cadê a garrafa de uísque? Onde seu pai a escondeu?" O menino se escafedeu. Voltou com a garrafa aberta, segura com cuidado pelas duas mãos. Séia pegou-a satisfeito, "traga os copos!", e pra mim, num meio sorriso, "viu só? He!, He! ".

- Guri! - ainda Séia.

- Sim senhor.

- Vai lá e diz pra sua mãe que Rodrigues, o "Noir Americain", chegou. Que pode tirar a comida do forno, esquentar e servir. E manda ela trazer mulheres para cá, que isto aqui está muito triste.

Limpunda sorriu, contrafeito. Não reclamou, porém.

A mulher veio, perguntou se era para trazer também as cervejas da geladeira.

"Ah! Limpunda, continuas o mesmo."

Só para provocar, engrenei com Séia nosso plano de comer o capataz americano, amigo de Limpunda, que lhe fizera presente da garrafa de uísque.

Limpunda começou a babar, nervoso. Ficava assim, quando preocupado. Parece que perdia o controle da saliva.

- É melhor nem brincar com isso - ponderou. - Depois o cara aparece morto e vão dizer que foi a gente.

- Não vai aparecer - interveio Séia, com ar sério. Nós vamos comer ele todinho.

Fomos para a mesa. Perguntei a Limpunda se queria vender-me aquela maça de guerra, herança guerreira dos seus antepassados. Ficou de pensar.

Ao fim do almoço perguntou-me: quanto? - Três mil zaires.

- Cinco mil!

- Quatro mil.

- Ok.

 

Saí meio bêbado da sua casa, sobraçando a espada. Agora, olhando-a melhor, parecia-me mais uma foice.

Afixá-Ia-ia na sala do meu apartamento, no Rio.

Porém, à medida que os dias foram-se passando, cada vez que eu olhava para aquela tramôndega sentia-me, mais e mais, distanciado da pulsão inicial.

Na véspera da minha volta ao Brasil, chegando meio de porre, tropecei e caí com o joelho na parte aguda da machadinha. A lesão foi pequena, que a ponta já estava um pouco rombuda. Ainda meio puto da vida tentei colocá-Ia na mala. Não cabia. Parecia-me agora um troféu sem tanto valor quanto o que eu lhe atribuíra até a compra.

Expliquei então a mim mesmo que um porrete na parede não é fundamental que se mantenha acesa uma chama. Não deve ser. Não pode ser:

E esqueci-a no quarto do alojamento, ao partir apressado para pegar o avião que me conduziria a Bruxelas.

(Sepetiba 24.11.84.

Cauterizai o meu umbigo, 1986.)