Madrugada me Proteja!
(Monólogo em um ato)

 
 Cuti
Personagem
 
CELSO
 
Rapaz negro. Idade entre 30 e 40 anos. Usa terno e gravata.
 
Cenário
 
Uma rua de bairro grã-fino. Um muro alto guarnecido com grades.
 
QUADRO ÚNICO
 
É madrugada.
 
CELSO
(Em off)
 
Não se preocupa não, rapaz!... Eu tomo um táxi. Vai dormir... Não, não estou de porre, poxa! Tchau! Até segunda. Vai descansar que você bebeu demais... Isso!... Tá bem... Não se preocupa com isso... Não, não precisa chamar... Vou indo. Toma um café amargo que passa... Bom descanso! Tchau, tchau, tchau...
 
Pausa. Celso surge, o paletó sobre o ombro, tentando, com
dificuldade, afrouxar a gravata. Ouve-se o barulho de um
automóvel que se aproxima. Celso dando sinal.
 
Táxi! . . . Táxi! . . . Táxi! . . .
 
O som do veículo se afasta.
Merda! Vaziozinho... Esse aí tem a mãe na zona. Corno do cacete! Só pode ser um chifrudo um cara desse. Porra! Vê uma pessoa na rua a uma hora dessa... (Olha no relógio) Três e meia! É um canalha. Eu não estou mal arrumado nem nada?! Pô, quando o cara tá todo esculachado, aí vá lá... Dá pra pensar que é marginal, de noite, rua deserta... Mas, um crioulo na maior estica...? Terno em cima, cabelo cortado, barba feita, desodorante do mais caro, grana no bolso... Vem um safado com uma lata velha caindo aos pedaços – que o meu vale 100 daquela porcaria – vem, precisando ganhar o leite das crianças, eu dou sinal, a figura não para!? (Indignado) E deve ser um fodido... Porque um cara pra pegar um carro e ficar à noite toda atrás de freguesia só pode estar na pior. Ou então é ganancioso. Trabalha num emprego de dia, dá uma cochilada à noitinha e sai à luta de novo pra ver se enriquece. Enriquece porra nenhuma! Tá mais fácil dormir no volante, dar uma porrada com o carro e pronto... Era uma vez! (Pausa) Esses caras... Vai ver que aquele viado não gosta de preto. Será que não me viu? Viu!... Olhou pra minha cara e virou o rosto, como quem diz: "Te vira, negrão!" É... Viu sim. Acho que... É, ele passou debaixo da luz do poste. Sou capaz de adivinhar: tem trauma de infância. Vai ver que algum crioulinho enrabou ele quando era pequeno. (Pausa. Resignado, mas com certa mágoa) Não tem nada... (Descontraído) Mas que vai furar o pneu na próxima esquina, vai!... (Ri)
 
Barulho de outro automóvel se aproximando. Celso dando
sinal.
 
Táxi! Táxi!...
 
O barulho se afasta.
 
Ocupado!... Por que não apaga a luz, pô?!... Deixa rolar... Fazer o quê? (Dá uns tapinhas sobre a própria cabeça) Você também, viu, Celso!... Ir na onda do Osmar dá nisso. (Imitando) "Deixa teu carro, Celsão. Te levo em casa depois..." O cara toma todas, dá vexame na festa, você ainda traz ele em casa... Babá de bêbado. O cara não pode ver garrafa de uísque, pô! Parece criança em mamadeira. Bebe até babar. Hum!... Ficou bebinho da Silva. Silva nada! Bebinho pra Matarazzo! Tem grana. Só não sabe aproveitar. Trabalha na fábrica porque quer. O pai mesmo nem obriga. Fica lá inventando moda, querendo dar uma de gerente... Nem sei porque saio com um cara desses... (Pausa. Tenta avistar um táxi) Ah, o Osmar que se foda! Lei de Murici, cada um cuida de si.
 
Som de passos apressados. Celso assusta-se. Barulho de arma
sendo engatilhada. Celso encosta-se no muro com as mãos para
cima. Expressa muito medo.
 
Certo... Certo... Eu já entendi... Não precisa atirar... Tá certo... Grana?... Tem, tem grana sim. Fica frio, meu irmão!... Eu... Eu vou te dar a carteira sim... Mas, pode baixar a arma, meu irmão. Eu tô descoberto e não sou de briga... (Mais nervoso) Certo, certo... Eu vou pegar... Eu vou pegar... Fica frio...
 
Celso, com dificuldade, retira do bolso de trás das calças a
carteira e estende-a.
 
Toma aí... Pode pegar... Eu sou de boa paz, meu chapa. Ahn?... Certo, certo... Vou jogar, mas não precisa atirar, hein!...
 
Com muito jeito lança a carteira.
 
Certo? Tá até meia forrada; legal?... Pode pegar, sem susto... Não sou de briga não? (Pausa) Não... Quê isso?!... Eu sou crioulo, mas não sou manhoso não... Já pensou?... Eu, aqui de mão vazia, vou dar uma de valente, você com um trabuco desse? Ahn? Certo, certo, eu encosto.
 
Celso encosta-se no muro com as mãos para cima. Tentando
relaxar um pouco, descendo os braços.
 
Já valeu a noite, certo companheiro? Meu pagamento. Hein?... Pô, meu?! Mais grana? Se eu tiver mais algum são uns pichulé no bolso. Dinheiro de cigarro... Nem vale a pena!
 
Assustado, recuando como se fosse subir de costas no muro.
 
Certo, certo!
 
Levanta as mãos de novo.
 
Não leva a mal. Tô só trocando uma idéia com você... Vou pegar. Mas... (Apelativo) Dá pra abaixar a arma, meu irmão? Eu sou de paz.
 
Celso coloca a mão no bolso direito – mantendo o braço
esquerdo levantado – retira umas notas amassadas e joga.
Depois – levantado o braço direito – retira uns papéis do bolso
esquerdo e joga também em direção ao "ladrão", o público.
Em seguida retira do bolso traseiro um lenço e lança-o na
mesma direção.
 
É... Eu te falei... Agora não tenho mais nada... Joguei o lenço porque tá limpinho... Se quiser aproveitar... Ahn?... Não, não tenho. Pode ver, ó...
 
Celso tira a gravata e exibe o peito e o pescoço.
 
Não uso... Aliás nunca gostei de correntinha... (Tenta ganhar confiança do ladrão) Minha mulher me deu uma, mas... Nem usei, acho até que perdi.
 
Intimidado, mas sem pavor, volta a levantar os braços.
 
Que isso!? Você acha que eu vou rebentar correntinha diante dum trinta e oito desse?... Tá certo, tá certo!...
 
Até este momento, Celso está se ajeitando com o paletó nas
mãos. Vai tirar a camisa social pra fora da calça,
o paletó cai. Ele termina
de tirar a camisa fora da calça e sacode-a bem.
 
Olha aí, não te falei? Não tô escondendo jogo não... Ahn? Ah, sim, o paletó, você quer o paletó... Tá, tá certo... Posso chutar?
 
Celso chuta o paletó. Não consegue deslocá-lo muito.
Assustado.
 
Tá, tá, tá... Calma, calma, calma... Eu vou jogar, legal?... Fica tranquilo... Não tô armando treta não...
 
Celso vai, com muito receio em direção ao paletó. Agacha-se,
sempre olhando em direção à suposta arma, dobra o paletó,
bem dobrado e atira-o, com cuidado, mas com força, em dire-
ção ao ladrão. Relaxando um pouco.
 
É, o que tem aí é só documento... Tá certo, mas se você tivesse falado em cheque eu tinha entregado o talão... Você tá no seu direito... Não é papo furado, não. Mas eu entendo... Eu também já tive dificuldade na vida e eu sei como é que é... Essa recessão... (Procurando relaxar) Na falta de emprego, cada um tem que se virar como pode, certo? (Intimidado) Ah, claro, claro... Se você não gosta... Bem, aí tem mais é que não trabalhar mesmo... (Pausa) É, eu ponho algum documento na carteira. (Queixoso) É difícil, né, rapaz, tirar documento, não é?... Hein? Ah, essa daí... Bem, é... é a minha noiva... Ah, sim, quer dizer, é a minha mulher... (Encabulado) É... Não, que isso?... É que deu certo. Sabe como é que é, gostou do crioulo, a família não pôs areia, a gente chegou junto... Não, não, também não é assim... Eu acho que não tem nada a ver. Ela é uma branca decente... Mas você também é loiro e eu não posso dizer... (Assustado) Não, não, não quis te ofender... Só falei que não tem nada a ver. Pra mim todo mundo é igual. Preto, branco, amarelo... Como? Eu? Não, não acho não... Eu não sou melhor que você. É que... Bem, eu dei mais sorte no emprego... Isso não tem nada a ver. Cor não tem nada a ver. (Ri tentando descarregar tensão) Ah, isso aí eu não sei... É, é isso mesmo: Celso Branco de Souza. Meu nome é esse mesmo. Sei lá o que meu pai arrumou... Bem, tem cara por aí que tem sobrenome "Negrão," vai ver tem olho azul, é branco... Esse negócio de nome é um rolo... (Ri amarelo) Tem Coelho, Carneiro, Leitão... É... (Pausa) Como? Não. Eu, racista? Não, que isso!? Meu melhor amigo é um branco. Só que não tem o cabelo loiro igual o teu. O cabelo dele é preto, liso... Acabei de deixar ele em casa... Pra mim não tem diferença. (Acuado) Ahn?... Ah, sim... O "bobo". Ah, certo. Tudo bem, tudo bem...
 
Retira o relógio com certo tremor nas mãos.
 
Posso jogar? Não vai quebrar não? Ah, pô, assim...! Se você não segurar você me dá um tiro, pô!?... À toa... Eu não tô nem aí com relógio. É teu, meu chapa! (Pausa) Tá legal!... Tá legal... Mas, pô, segura... Não vai deixar cair... Você vê, eu entrego tudo, na manha, sem reagir... Aí, segura, hein!...
 
Celso lança o relógio com muita cautela. Não há barulho de queda.
Celso respira aliviado. Descontrai-se.
 
É, é bom sim. Comprei de contrabando... Não, não sou entendido do assunto, mas a gente... Podendo, a gente faz um negócio bom, é ou não é?... Um amigo lá do serviço que faz uns trambiques. Chega lá na Baixada Santista e "descola" uma muambazinha... Não, eu não sou chegado... Só comprei dele esse "bobo" e uma caneta que eu dei de presente pro meu filho... Você viu a foto dele aí na carteira... E taí... Um garotão!... Oito anos... (Pausa) Mas... E aí, tô liberado?
 
Sem jeito. Desapontado. Indignação profunda.
 
Pô, meu irmão, aqui na rua?... (Tenta ganhar tempo) Sabe como é que é... Iiii, rapaz, vem vindo um carro aí... Certo, certo...
 
Som de automóvel num crescendo. Celso deita e se encolhe.
O ruído de motor se distancia. Ainda no chão, expressa seu
temor.
 
Certo... Certo... Certo... Mas não atira... Não atira...
 
Levanta-se. Prensado contra o muro, como se quisesse
escalá-lo de costas mais uma vez, vai despindo-se.
Atrapalha-se para tirar a gravata, camisa e os sapatos. Toda
esta operação vai sendo realizada de pé.
 
Tudo bem! Eu vou tirar... Dá só um tempo... Tá, tá, tá... Tô terminando...
 
Enrola, por fim, toda a roupa e joga para o "assaltante". Está
preocupado em não ser visto seminu, apenas de cueca. Olha
para os lados. Treme. Humilhado.
 
Pô, mano, vai me deixar na pior, pô!... Vou ficar pelado, aqui?... O que que tu vai fazer com uma cueca, pô?... (Intimidado) Tá certo, tá certo... Mas, pô, não vai atirar, né?... Eu tô fazendo tudo direitinho... Pô!...
 
Assustado, vai tirando a cueca, olhando para os lados e para
o ladrão.
 
Tudo bem... Tudo bem...
 
Amassa a cueca e lança-a. Cobre a genitália com as mãos.
 
Tá tudo O.K!... Não vai atirar, hein, pô... (Implora) Abaixa a arma aí, vai... Eu não tenho mais nada, poxa!... Não vou caguetar pra ninguém...
 
Encosta-se no muro.
 
Certo, certo...
 
Vai agachando-se, encolhendo-se. Relaxa um pouco. Passos se
afastando. Celso vai se levantando. Entre os dentes.
 
Filho da puta...
 
Ouve-se um estampido e os passos de alguém correndo. Celso
cai e fica imóvel. Pausa. Som de sirene de rádio patrulha.
Celso levanta-se em pânico. Tenta se cobrir com as mãos, mas
termina optando pela fuga. Corre pelo palco. Um foco de luz
agita-se na perseguição. Ouvem-se mais tiros. Quando o som
da sirene aproxima-se ao máximo, Celso já está acuado, sob o
foco de luz.
 
VOZ
(Off)
Documento!...
 
Celso, derrotado, cobre a genitália. Expressa profunda
indignação. Por fim, começa a rir, num crescendo. Traduz
indignação e graça. Chega à gargalhada de pura gozação,
mantendo sempre as mãos sobre a genitália. Súbito,
petrifica-se. Vira estátua. A luz vai amortecendo.
Simultaneamente, ouve-se um hino cívico assobiado.
 
Fim desta peça. 

(In: Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro, p.103-112).