Para ela, que perdeu o filho

Eu não moro no gueto
mas dentro de mim
um gueto se estilhaça
de sangue
tiros drogas álcool e morte.
Por isso eu canto
a dor do outro tão pele de mim.

Eu não moro no gueto
onde a sobrevivência sempre foi
alvo de morte
para eles

Histórias
que ouvimos
num rap
que até o lado rico
da cidade cantarola

Eu não moro no gueto
onde a violência réptil
transpassa nos olhos
policialescos
dos capitães de mato fardados
dizimando jovens que se
aventuram pelo outro lado
do Sonho.
A nossa pele é um gueto
charqueada
eu sei
Masmorra da qual
eu não
renuncio
nem pelo
prazer de não ter
mais dor.
A dor de cantar
a impotência
da mãe ao ver o filho
que morreu pelo desafio de respirar
um outro sol
sem amarras de ódio
e de muros que nos ferem
a vista e a vida humana, nossas.
Mas porque me sinto
ilhado pelo medo de sempre
que passa raivoso com as
viaturas a alvejarem
nossos jovens em seus sonhos
eu combato esse medo
com um poema
mesmo

que não o leia, mãe.
Eu sei que ele não te aliviará
nesta dor maior do que
a dor
do próprio parto, dele.
e que o seu mundo despedaçado
será, agora, um
rezar rezar rezar
até as lágrimas secarem
e outras vierem
salobras
num ódio de impotência a
rondar teu viver.

É isso que nos une:
esse gueto imenso
Atlântica Dor
sem bússola
rondando
nossa alma
sofrida de silêncios

Eu, agora,
mais velho,
entendo os nossos antigos
poetas que bateavam
palavras de apagar
nossa dor
enquanto sobreviviam
nesse mar
imorredouro
de angústias
nesse muro que nos detém
à mercê de um tempo
que continua nosso inimigo. 

Eu moro num
gueto qualquer
deste país varonil:
O meu é
uma estrada longa
de desafios e mortos
que buscam a paz
além
dos cemitérios
e bondades coloniais.

Meu gueto:
minha alma
incrustada nas palavras
de ordem da minha poesiaminha forma dolorosa
de abater
o silêncio comparsa
que nos rodeia.

(Memória da noite revisitada & outros poemas, p. 96.)