Legbas, Exus e Jararacumbah blues (trechos)

Para muitos brancos Farrique era uma espécie de memória coletiva que não sabiam mais reconhecer e, por isso, recorriam a ele quando um fato estranho exigia uma explicação mais consistente. Entre nós, os negros, este papel de vate cabia à minha bisa. A seu modo, Farrique desvendou nosso passado estrangeiro na Verde Vale e no Jararacumbah, auscultou as entranhas do rio tempestuoso para revelar o exato momento das cheias. Desvendou os mistérios do ventre de jararacas albinas para encontrar neles a psique dos seus irmãos brancos. Montou capivaras gigantes, muitas vezes na companhia da minha bisa. Ele conheceu o nosso presente e pôde prever, o futuro que nos aguardava. A idade que seu corpo carregava ninguém poderia precisar, Como minha bisa, devia ter passado dos cem e, como o corpo dela, o dele ainda conservava uma energia extraordinária que dava inveja em muita gente. Poesia rejuvenesce, pensavam alguns na presença do Farrique. Outros concordavam e adicionavam: muita poesia rejuvenesce muito mais. Muitos atribuíam este papel à loucura, sem chegarem a uma posição conclusiva sobre o que fazia do Farrique este vate venturoso que habitava entre nós. De tempos em tempos, corria a informação de que, em função da idade centenária que seu corpo acumulara, o Farrique não só havia privado do convívio do nosso Fundador, mas também havia sido auxiliar do Cientista que viveu por aqui. Podia ter fundado cidades, podia até ter catalogado insetos, plantas e animais mas não realizou nada daquilo que fez a história de vida dos dois amigos porque tinha a alma das letras. Em seus encontros, arengava com o Fundador e o Cientista a respeito da superioridade do poema sobre as cIdades e as plantas. O homem não precisa de mais cidades fundadas, ou de mais plantas catalogadas. A humanidade necessita de mais poesia vivida, emendava quando queria encerrar uma discussão com os dois amigos. É um louco, os dois sentenciavam, em sua ausência. Até que, um dia, o baniram do seu convívio. Na intimidade, no interior do seu esconderijo que ninguém sabia onde ficava, a mscnçao na parede esclarecia a respeito dos limites que ele próprio atribuía à arte: a poesia é uma longa caminhada que quase sempre dá em nada. Irônico, Farrique era um realista utópico.

Estes pensamentos me acompanhavam enquanto me afastava do poeta. Essa loucura quero– a para mim, pensava. Um dia, será minha, também. Atraía– me a precariedade da poesia. Saí dali saltitando de alegria, não pela morte que fluía do poema, mas pela poesia que se valia da morte para se comunicar. Mesmo falando da morte, a poesia do Farrique me encheu de satisfação.

Da metade do caminho, podia ver a nossa casa. Ela ficava no fim da rua. Era a última casa. Atrás dela se levantava o verde paredão da mata fechada. Era a moradia da única família negra do Jararacumbah. A única casa construída fora do modelo enxaimel que os alemães adotavam. Este detalhe sempre chamava atenção, atraía olhares e atiçava a curiosidade maldosa dos moradores. Também destoava do modelo italiano já que a madeira não era pintada. Gostava de um pensamento do meu irmão: viver entre brancos pode ser a salvação ou a perdição de um negro. Sempre vivi entre brancos e achava o desafio estimulante, um equilíbrio precário que exigia precisão quase cientifica para não quebrá-lo, para mantê-lo. Diariamente, quando saía de casa para a escola, a Imagem que se apresentava era a nossa casa no topo do morro, sem pintura. Descendo a rua coberta de macadame para esconder a lama dos dias de chuva, me via ameaçada percorrendo um corredor polonês. Viam-se do lado direito as casas enxaimel das famílias alemãs; do esquerdo, as moradias de madeira, coloridas, dos italianos. Anos de trabalho como babá de crianças brancas me ensinaram a dizer guten morgen, frau Braun ou buongiorno, signora Dalfovo. A estrutura do Jararacumbah não deixava dúvidas: os Weidgenants, os Mass, os Ruedgers e os Brauns à direita do macadame; os Canottos, os Dalfovos, os Rampelotis e os Ganzanigas, à esquerda. Entre eles se infiltravam os mesmos navios negreiros que salvaram alemães e italianos da mesma fome e da mesma miséria na distante Alemanha ou na longínqua Itália que eles abandonaram para recriá-las, primeiro na Verde Vale; depois no Jararacumbah. Nunca entendi porque, em vez de uni-los, a mesma origem sofrida os separava tão desesperadamente, ali, sobre as pedras do macadame do nosso Jararacumbah. O ódio recíproco parecia algo atávico que ia além da capacidade de compreensão de uma negrinha como eu. Só me cabia aceitar que entre eles se instalara o ódio autonutrido pelo Fundador que proibiu a partilha das terras entre as duas etnias imigrantes. Para a única babá negra disponível, a sabedoria residia em combinar o doce da apfelkuchen com o salgado da polenta con formaggio. Uma pitada a mais de sal ou de açúcar, ou seja, um deslize qualquer naquela instável estabilidade, por menor que fosse, seria a minha dupla danação: me expulsariam de suas casas para sempre.

– Bisa, bisa, o Farrique me disse um poema – gritei do portão, correndo na direção da porta da frente.

A porta da casa se abriu, minha mãe surgiu e correu na minha direção, e me abraçou. O abraço me pôs em alerta.

– Que foi, mãe? – perguntei.

– A tua bisa ... – ela só teve tempo dizer.

Não escutei mais nada. Corri para dentro e me dirigi, o coração apertado, para o quarto da bisa. Estava vazio.

– Mãe, mãe – gritei.

Minha mãe me alcançou no quarto, me agarrou de novo e me apertou forte. Ficou grudada em mim.

– Coragem, Bertília – disse. – Você vai precisar de muita força nesta hora – prosseguiu, me conduzindo, devagar, sempre me amparando, para sala onde se encontrava minha bisa. Quando vi o caixão desabei, desmaiei. Não sei quando tempo durou minha inconsciência. Só sei que meu corpo vagava por uma longa estrada iluminada por uma claridade que apenas deixava ver um cortejo de seres quase imperceptíveis carregando um corpo. O grupo chegava até onde a estrada se bifurcava e, então, desaparecia. Depois a procissão começava de novo, do mesmo ponto de partida até a bifurcação. Quando desapareciam, o mesmo grupo e o mesmo corpo reapareciam no ponto inicial da caminhada. E tudo recomeçava outra vez. Eu queria fazer parte daquele cortejo de luz, mas uma voz me dizia: ainda não, Bertília, ainda não. Esforçava– me para associar aquela voz a alguma pessoa conhecida, a um ente querido, a minha bisa, mas em vão. Não era a voz do Farrique declamando; não era a da minha bisa falando sobre o seu santo de devoção; também não parecia a da minha mãe, nem a do meu pai ou a do meu irmão. Era uma voz nova, irreconhecível, que entrava no meu mundo estranho. Gostaria de reconhecê-la, algum dia. Só me recomendava que eu assistisse ao espetáculo de luzes. Que imaginasse quem eram aquelas pessoas diáfanas em, procissão recorrente e quem elas conduziam em suas costas invisíveis.

Acordei algum tempo depois. Estava na minha cama e a minha mãe se encontrava ao meu lado.

– Mãe, que bom, tu estás aí – eu disse, aliviada por encontra-la velando por mim.

– Estou bem aqui, filha – ela falou e para que eu me convencesse da sua presença passou a mão pelo meu rosto e enxugou as gotas de suor da minha testa. – Tu deste um baita de um susto na gente, Bertília.

– O que aconteceu, mãe? – perguntei e esperei, mas ela, não disse mais nada. Segurava minhas mãos trêmulas, apenas. – Só sei que desmaiei, e não me lembro mais de nada.

– Agora, está tudo bem, filha. Vai te vestir para te despedires da tua bisa.

Ela me deixou sozinha. Minha bisavó havia falecido. O cortejo dos seres invisíveis do meu devaneio, carregando o corpo, havia sido varrido da minha memória. Isso até foi bom porque pude me concentrar no que vestiria para o velório da bisa. Coloquei o vestido de que mais gostava, cheio de cores, um presente da bisa no meu aniversário de 10 anos. Com ela aprendi a gostar de roupa colorida. O meu Santo adora o colorido das coisas, ela me dizia sempre que falávamos dele. Ele acha que a vida não é apenas o preto ou o branco, continuava. Minha mãe certamente viraria o nariz quando eu aparecesse vestida daquele jeito, na sala do velório. Acharia um desrespeito e me expulsaria. Calcei as meias, os sapatos e amarrei as tranças com duas fitas vermelhas. Olhei– me no espelho antes de abrir a porta do quarto. Mesmo negra, aos dez anos, sempre se é linda, disse para a Bertília refletida no espelho. Enquanto me enfeitava, ouvia as vozes que vinham da sala onde a bisa jazia deitada e imóvel.

(Legbas, Exus e Jararacumbah blues, p. 26-29)

 

****

 

Nos meus primeiros anos no seminário, atraía os seminaristas brancos como abelhas no mel. Atraídos, por meu futebol, meu inglês e meus textos, eles vinham para meu lado. Queriam jogar no meu time, estudar no meu grupo e coassinar as minhas histórias. Eu aceitava aquela aproximação interesseira porque me lisonjeava, me dava orgulho e realizava minha ânsia de popularidade e aceitação. Eu colocava alguns deles na minha equipe, ensinava a língua de Shakespeare a outros e coescrevia algumas narrativas com muitos. Em troca, recebia alguns presentes: mangas frescas e maduras, a liberação de alguns trabalhos chatos, ou favorecimentos no comparecimento a vários atos religiosos. Durante algum tempo, um sênior chegou a me dispensar das primeiras orações da manhã para que eu pudesse ficar na cama um pouco mais em troca de umas traduções do Inglês para o Português. Fariam o que eu quisesse em troca de algum favor.

Podia jurar que até lamberiam meu rabo preto se eu baixasse as calças.

Tudo ia muito bem com o nosso escambo esportivo, intelectual e religioso, até o dia em que uns invejosos descobriram o esquema e me entregaram ao Padre Prefeito.

Ele me chamou para uma conversa. – O que foi, Frei – perguntei.

– Me contaram que você é o cabeça de um esquema de favorecimentos na segunda ala.

– Favorecimento, Frei, aqui neste mundo de pobreza?

– A verdadeira pobreza vem de São Francisco – o meu superior religioso ensaiou uma aula sobre a visão que o padroeiro dos franciscanos tinha sobre ser pobre.

– A verdadeira pobreza, Frei – eu falei – a pobreza realmente pobre tem uma única cor: negra. Nem vocês padres, nem São Francisco, sabem o que é ser pobre ou ser negro.

– O hábito pesado que vestimos é a demonstração da nossa pobreza – ele explicou. – A comida simples que comemos e a cama dura sobre a qual dormimos, também.

– Desculpa, Frei, mas os franciscanos deste seminário não sabem o que é pobreza – eu disse com firmeza. – Pobreza, pobreza mesmo é dormir, durante anos, no chão frio, sobre um pedaço esteira de palha. Só fui conhecer uma cama, com travesseiro, lençol, coberta e tudo o mais muito tempo depois de nascer.

Aquela minha insistência em que a pobreza negra da minha família era mais verdadeira do que a pobreza franciscana começava irritar o Frei. Ele andava para lá e para cá antes de dizer mais alguma coisa para me convencer de que eu devia baixar a crista e aceitar a palavra dele com a palavra de São Francisco ou de Deus.

Eu, porém, resistia.

– Você é um insolente – ele me jogou na cara. – Desrespeita nossa Ordem com esta maneira de pensar. Vou dar um jeito nisso.

O frei era um alemão extremamente forte, um grandalhão, que havia lutado na Segunda Guerra Mundial. Entre nós era conhecido como um neurótico de guerra e, por isso, sempre que possível procurávamos evitar contatos com ele. Quando alguém era chamado à sua sala nunca saía de lá como havia entrado.

Virava um zumbi por alguns dias.

Com uma agilidade extraordinária para o corpo pesadão que era obrigado a carregar todos os dias das cinco da manhã quando acordava as dez da noite quando se recolhia, ele me agarrou pelo braço e me arrastou para perto da sua mesa, abriu uma gaveta e, de dentro, retirou um lata de talco. Eu me debatia para me soltar daquele tentáculo em que se transformara a manzorra dele grudada no meu braço raquítico.

– Me larga, Frei – eu pedi, os olhos já cheios de lágrimas.

– Ainda não, seu malcriado – gritou. – ainda não acabei contigo, moleque insolente.

Ele acabou comigo, realmente.

Isso aconteceu quando o talco se espalhou sobre o meu pixaco negro e o deixou coberto de uma camada branca. Ele despejou a lata inteira de uma vez só, mas como eu balançava a cabeça para evitar que o pó caísse sobre ela, metade se espalhou pelo assoalho da sala. Ver todo aquele branco do talco ali no chão o irritou ainda mais. Ele suava e eu chorava. Passei a mão solta sobre a minha cabeça e, sentindo a camada espessa de talco sobre o meu cabelo, me desesperei ainda mais. Foi aí que tive a ideia que piorou ainda mais as coisas pro meu lado. Reuni toda força que consegui e balancei a cabeça com tanta violência que o talco voou sobre o hábito do Frei, bem no meio da barriga de chopp da qual ele sempre se orgulhava nos dias de festa.

– Seu desgraçado infeliz – ele gritou, exasperado. Tu acabaste com o meu hábito e a minha sala.

Soltou o meu braço e instintivamente corri para a porta, mas ele se adiantou. Chegou antes de mim, trancou-a e colocou a chave num dos bolsos do hábito. Senti que estava perdido e que as coisas iam piorar ainda mais para o meu lado. O Frei começou a limpar com a mão o talco que tinha grudado na roupa dele. Parece que o pó branco havia se impregnado no hábito e, por mais que ele passasse a mão, não conseguia remove-lo. Foi até o armário, pegou uma toalha de rosto. Depois se dirigiu a uma bacia com água que estava sobre uma mesa pequena ao lado da cama e mergulhou a toalha. Em seguida, veio até onde eu me encontrava com a mão estendida e a toalha pingando no chão.

– Toma e limpa essa sujeira da minha roupa – ordenou, os olhos injetados de ódio.

Em silêncio, peguei a toalha da mão dele e comecei a passá-la na região onde a camada de talco era mais espessa. Demorou algum tempo até que boa parte do pó branco fosse removida e a sua brancura se tornasse visível somente para quem fixasse o olhar atento sobre a barriga do Frei. Mas quem ousaria fazer aquilo? Acho que imaginando que ninguém entre os outros religiosos muito menos entre os seminaristas ousaria um olhar tão sacrílego e desrespeitoso sobre o ventre avantajado de um Padre Prefeito, o Frei se deu por satisfeito.

– Chega – disse e esboçou um sorriso. Aproveitei o momento e perguntei:

– Posso ir agora?

– Claro que não – ele respondeu e o semblante dele cobriu novamente de uma sombra perversa. – Claro que não, tu te esqueceste do chão? – Empurro-me com violência até o local atrás da mesa de trabalho onde a mancha branca se encontrava. – Eu devia te fazer lamber todo esse pó com a língua, seu moleque. Limpa tudo isso já. – Depois com a força hercúlea do braço me forçou a vergar o meu corpo franzino até eu me ajoelhar, – Agora, a toalha e deixa tudo isso bem limpinho.

Limpei com rapidez, mas não foi mais fácil do que limpar o hábito. Esfreguei o chão com raiva e com força. Chorava, sem dizer palavra. Continuei esfregando e chorando sem parar. A medida esfregava balançava a cabeça e dela caia mais pó branco. Se continuasse a balançar a cabeça ficaria ali, esfregando até o fim do. Parei, então, de balançar a cabeça e comecei a passar a toalha, tendo a cabeça parada, e o olhar fixo num ponto da parede acima para que nem um pingo de talco voasse do meu pixaim o chão. O chão já brilhava novamente, mas eu não parava de esfregar. Não tinha coragem de parar, muito menos de levantar a para ver se o meu trabalho estava agradando ao desgraçado do Frei carrasco.

– Pode parar – ouvi-o dizer, mas não ousei levantar a cabeça confirmar. – A limpeza está boa. Acho que realizei um bom trabalho de humildade contigo. Não creio que tu vás querer desafiar as minhas ordens e desobedecer às sagradas regras que regem a nossa vida franciscana neste seminário. – O Frei se dirigiu a porta, retirou a chave do interior do hábito e destrancou-a. – Agora, vai ele ordenou. – E me deixa em paz. Ah, ia esquecendo, três dias de silêncio.

Três dias de silêncio. O pai e a mãe de todos os castigos.

Envergonhado e humilhado saí dali, correndo. Passei pelos seminaristas que conversavam nos longos corredores e desconsiderei os gracejos que jogavam na minha cara à minha passagem. Fui direto para o dormitório, sem olhar para ninguém, em silêncio. Peguei uma toalha no armário e saí correndo para o banheiro. Queria me livrar logo do pó branco, por isso, na primeira coloquei a cabeça debaixo da torneira fria e deixei que a água escorresse com abundância sobre o meu pixaco e lavasse aquela brancura emprestada, pegajosa. Enxuguei o cabelo e voltei para o dormitório para guardar a toalha. Quando deixei o dormitório me misturei aos outros seminaristas, mas me neguei a dar explicações o ocorrido. Nos três dias que se seguiram, tomei o café da manhã, almocei e jantei em pé no refeitório, como era o costume entre os insubordinados punidos com dias de silêncio. Era necessário que todos soubessem que eu havia aprontado umas das minhas e não incorressem no mesmo erro. Nos dias seguintes, enquanto todos jogavam ou participavam de alguma atividade de lazer, eu permanecia na biblioteca em silêncio, estudando ou lendo. Tudo aquilo era horrível e, então, tomei uma decisão prática: eu jurei a mim mesmo que nunca mais seria pego numa saia justa daquelas. A decisão foi a melhor possível e nunca mais tive problemas no seminário.

Havia me tornado um Bento diferente.

Era um outro Bento que surgia, diametralmente oposto àquele menino que havia deixado o Jararacumbah há alguns anos atrás. Daquele dia em diante, eu iria fazer o jogo dos brancos, dentro e fora do seminário. Iria me colar a eles, chupar a sua essência e me deixar contaminar pelo seu espírito. Eu canibalizaria a brancura tudo o que ela representasse. Morria naquele momento o Bento do Saci e nascia o Bento que os brancos queriam que eu fosse. Era a sobrevivência possível e eu tinha que sobreviver.

A responsabilidade do escravo é a sobrevivência.

(Legbas, Exus e Jararacumbah blues, p. 112-117)

 

****

 

Depois da visita aos pais, Francesca volta ao apartamento de Bento para viver com ele definitivamente. O boneco Pinóquio e o gato siamês Pinocchio chegam com ela. Bento abre a porta e a beija. Ela havia ficado fora durante uma semana, mas agora está de volta. O coração em trevas que teve que carregar para lá e para cá, durante a ausência da amada, agora se enche de luz.

"Segura o boneco”, ela pede e passa o Pinóquio de madeira para as mãos de Bento.

Enquanto Bento examina o italianinho de madeira, Francesca abre a caixa onde se encontra o siamês e o deixa sair.

"Vieni, Pinocchio”, ela chama, em italiano. "Venite a mamma”. O bichano sai da caixa, mas em vez se aninhar nos braços de Francesca que se abaixa para segurá-lo, sai correndo à procura de um lugar mais seguro para se esconder naquele ambiente desconhecido. Enquanto o gato se debate atrás de um esconderijo, Bento tem tempo de examiná-lo. Ele vê um gato grande, o pescoço bem claro, quase branco, mas o dorso coberto por um pelo compacto marrom escuro. Chama-o pelo nome, mas o gato o ignora. "Ele só entende italiano”, Francesca diz quando o gato encontra aberta a porta de um cômodo e entra, para se proteger. "Bento, vais ter que aprender italiano”.

"Vai ser um prazer”, ele reage. "Uma língua a mais, uma língua a menos, não vai me matar. Se for preciso para me dar bem com o teu Pinocchio, aprendo italiano”.

Acompanha Francesca até o quarto. Ela retira as roupas da mala e as deposita sobre a cama. Depois, alisa cada uma das peças com suavidade antes de coloca-las, uma a uma, no guardarroupa, cuidadosamente.

"Conta como estão as coisas com o sogrão e a sogrona?”

"Tudo bem, mas eles estão te esperando lá."

"Também tenho uma novidade para você," ele diz para se desviar da direção que a conversa poderia tomar. Não se sente nada preparado para enfrentar a família dela. "Vem comigo," fala e a toma pela mão, interrompendo o que ela estava fazendo. "Deixe isso aí e me acompanha."

"Quero terminar de arrumar minhas coisas."

"Depois."

Bento arrasta Francesca para o outro quarto do apartamento. A porta está fechada e ele bate. Uma voz de mulher aparentando cansaço responde "pode entrar" e, então, ele abre a porta. Da entrada, Francesca vê, surpresa, seu Pinocchio nos braços de uma senhora de idade avançada, entregue ao afago carinhoso das mãos da negra, despreocupadamente.

"Bertília!" Francesca grita de surpresa, correndo na direção cama.

"Vocês já se conhecem?" Bento pergunta, o olhar indo da negra para a branca.

“A gente se conheceu quando tu estavas no seminário," Bertília fala.

Elas se abraçam por sobre o corpo delicado do Pinocchio que mal consegue escapar. Quando elas se afastam, afrouxando o abraço ele aproveita para pular para o outro lado da cama. Fica por ali, a cabeça levantada para Francesca, esperando alguma atenção da dona. Ela dá a volta na cama e se aproxima do bichano.

"Vem com a mãe, vem" ela pede e ele permite que ela ponha no colo.

"Ouvi vozes e quando abri a porta para ver quem era," a velha negra explica, "este gatinho lindo entrou correndo. Já somos amigos. Como é o nome dele?"

"Pinocchio," Francesca responde.

"Ela era a novidade que tinha para te apresentar, Francesca," Bento fala "mas como vocês já se conhecem a novidade perdeu a graça. Bertília é uma amiga, um exemplo de vida, desde criança."

"Por tua causa Francesca não saía lá de casa..." Bertília conta, "nem da casa da tua mãe”. Queria saber tudo sobre você, mas como tu não me escrevias e não tendo o que contar a ela ficávamos conversando sobre outras coisas também, quando o assunto sobre ti acabava. Tudo o que eu sabia ensinei a ela.

"Buscava o leite na casa da Frau Ruedger, como tu fazias. Era coisa que mais gostava de fazer. Assim tinha alguma coisa que era tua, na tua ausência. Em agradecimento, ela contava sobre a vida dos negros no Jararacumbah."

Os três se sentam na cama, a branca Francesca entre os dois Pinocchio salta para os braços de Bertília, se aninhando confortavelmente no colo da anciã. Os três permanecem em silêncio durante alguns segundos, alisando o pelo suave do bichano indiferente àquela ausência de sons humanos dizendo-lhe o que fazer, sente um leve torpor, cerra os olhos lentamente e se ausenta completamente, transportando– se para o mundo dos gatos onde humano algum consegue penetrar.

"Ele dormiu no teu colo, Bertília," Francesca fala, uma pontinha de ciúme se insinuando na voz. "O traidor dormiu em colo estranho."

"Dormiu," Bertília concorda. "É um sinal de que ele já encontrou seu mundo aqui."

A voz da anciã é suave e envolve Francesca numa atmosfera de calma, a mesma tranquilidade que o seu Pinocchio deve ter experimentado quando o desespero de encontrar um canto seguro naquele apartamento desconhecido o levou ao encontro dela. Francesca examina o quarto e seu olhar cai sobre a imagem grande de um guerreiro negro e uma menor de Saci. As duas imagens estão lado a lado, numa espécie de santuário. Uma vela, branca, pequena, suavemente perfumada, queima diante do guerreiro. Bento se levanta e se afasta.

"O que foi, querido?" Francesca pergunta. "Já volto," ele explica.

E sai do quarto, voltando em seguida com o Pinóquio nos braços. Coloca o menino italiano de Francesca do lado do guerreiro.

"Teu Pinóquio vai ficar bem aqui, junto com Saci e Exu", Bento explica.

Com uma das mãos que seguram o siamês da amiga, Bertília faz um sinal de que concorda com Bento.

"Exu, Saci e Pinóquio," Francesca diz, deixando a cama e se aproximando do santuário. Uma trindade extraordinária, pensa. "É bom estarmos aqui, nós três," Francesca exulta.

Volta para a cama e abraça o marido e a mentora da sua juventude.

No sonho daquela noite, a capivara e o cavaleiro de boné indefinível voltam. Bento parece ouvir o cavalheiro dizer-lhe alguma coisa, mas não consegue entender o significado das palavras sussurradas, misteriosas. Pela manhã, durante o café, ele fala do sonho superficialmente, mas promete que um dia vai contá-lo às duas mulheres. E vai querer que Francesca entalhe na madeira o sonho que o visita com aquela frequência tão angustiante.

As semanas passam. Depois dos dias passados na UJ e das noites de trabalho no abrigo perto de onde moram, eles se dedicam a este trabalho conjunto, artístico. Da narrativa de Bento brotam os detalhes do sonho que a madeira de Francesca vai transformando, com beleza, na imagem, cada vez mais nítida, de uma capivara, um cavaleiro e um boné de duas cores. Além disso, a presença de Bertília entre eles deixa mais evidente a relação harmoniosa que existe entre Bento e Francesca. É por Bertília, com ela e através dela, que aquele amor se solidifica em uma união interracial, como O negro e o branco no prato de feijão e arroz. Como na minestra, entre o macarrão e o feijão.

"Bertília, quero te mostrar o trabalho artístico da Francesca," Bento fala, conduzindo a velha negra pela mão até a biblioteca. "Olha isto aqui, Bertilia," e passa a escultura em madeira à amiga.

"É Exu," ela grita. "É o meu orixá," ela exulta, exultação que lhe enche os olhos de alegria incontida, de euforia.

Francesca, Bento e Bertília dão inicio, então, a uma conversa sobre Pinóquio, Saci e Exu. Cada um deles, a seu modo, relata a maneira como estas figuras entraram em suas vidas e transformam tudo, tornando amplas e reveladoras as redes de afetividade com que as enxurradas teceram suas vidas e as juntaram no passado de forma enviesada, e prosseguem em sua tessitura silenciosa. Bertília fala da bisavó Benedita e do orixá que a bisa havia introduzido em sua vida quando ela só tinha cinco anos, e que nunca mais a deixara. Fala da promessa que havia fei to à bisa de dar continuidade ao culto ao orixá e difundi-lo no Jararacumbah. Promessa que vem cumprindo até o momento, mas que, agora, precisa encontrar alguém que a leve adiante no tempo.

"Meu orixá não pode ficar na biblioteca," Bertília conclui.

"Ele não precisa de conhecimento, mas de vida. Ele precisa da vida no meio do povo. Exu gosta da encruzilhada, onde o alcance da visibilidade é maior. precisa de uma casa só para ele, onde possa receber os que o amam e o respeitam." Bertília fala como mãe. Mãe de Santo, Bento pensa.

(Legbas, Exus e Jararacumbah blues, p. 64-67).

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