Triste sorte a do cativo
Seja filho, ou seja pai, Ai!
É triste como o ribeiro
Que sempre rolando vai,
E se espedaça na grota
Porém das bordas não sai, Ai!
A tia Balbina, mais do que nenhum outro', deixava transluzir no semblante o júbilo que lhe ia nalma. Duas vezes vitoriosa elevava-se ante o ex-feitor e isto firmava cada vez mais os seus créditos de invencível.
Às horas do jantar, contentes como bons amigos que se banqueteiam, os infelizes riam alegremente diante das cuias, e adubavam a refeição com lisonjeiras observações.
— A tia Balbina matou dois coelhos de uma só paulada.
— Tem mão certa.
— Quando ela diz uma cousa acontece por força.
A feiticeira recebia prazenteira as manifestações amistosas dos parceiros, preconizando a proteção dos céus para os inocentes, e a sua punição para os injustos.
A refeição ia já no fim, quando chegou ao lugar o novo feitor, o destemido Fidélis, tipo completo do negro de fazenda, com todas as suas virtudes e defeitos; trabalhador e intrigante, supersticioso e vingativo.
Não tinha-lhe favoneado a vaidade a inopinada distinção que mereceu ao senhor, odiava os brancos e sabia que, distinguindo ou castigando, o senhor só tem em vista tirar o maior proveito possível de seu escravo.
Recebeu a investidura de feitor pela mesma razão por que levantava-se de madrugada para a revista, e em seguida trabalhava do sol nascente ao sol posto; recebeu-a porque era escravo e para este só há uma lei - obedecer.
No mais era uma criatura da tia Balbina, que o considerava a ponto de rir-se para ele.
Por isso mesmo a sua nomeação foi recebida com entusiasmo pela gente de roça, convencida de que ia melhorar de sorte. Assim é que foram cordialmente recebidas as primeiras palavras da nova autoridade, pondo em exercício as suas funções. Mandando recomeçar o trabalho, Fidélis disse com lhanura a seus parceiros.
— Vamos, rapazes! é preciso mostrar que não é necessário chicote para se fazer o serviço; o negro não é boi, que.precisa de carreiro e ferrão.
E os escravos voltaram alegremente aos seus cantos, e a manejo das suas enxadas operando verdadeiros prodígios de trabalho.
O fazendeiro atendeu.
— É assim que se botam a perder os negros, resmungou Manuel João; mas eu hei de mostrar.
Motta Coqueiro ouviu o resmungar do feitor e resolveu examinar com os próprios olhos a causa que motivava tanto azedume contra Balbina.
O sol era ardente, o calor abrasava. Era a hora em que o canavial inclina as folhas como as penas de um cocar enorme; em que a cigarra chilra tanto quanto fala um energúmeno, sem pausa, sem termo; em que a araponga branca, à semelhança de um soluço de espuma sobre o verde-mar do oceano, tine entre a folhagem do ipê vestido de novo os seus cantos agudos e tristonhos.
Voam as nuvens de tiés e guaxás piando, tontos de calor, e as tiribas gárrulas coçam as asas de esmeralda entre a sombra rarefeita das embaúbas.
Sob a copa das grandes árvores do descampado, o chão acolchoado de folhas assemelha-se a uma praia coberta de conchas de ouro, mas conchas sonoras, como pequenas marimbas cujas cordas dedilhasse o ténue sopro da aragem. É a multidão dos canários que aí se abriga da crueldade da canícula.
No meio da floresta ouvem-se todos os sons conhecidos; desde o uivo soturno da turubina em atividade, imitado pela cachoeira que ao longe se despenha na grota, até o tilintar do martelo na bigorna imitado pela araponga; desde o som do cornetim tocado ao de leve, fingido pela alegria curiosa dos galos-da-serra, até o gemido profundo, soluçado pelas juritis.
É a glorificação da sombra pelo mais harmonioso dos coros, e a mais cadenciada das orquestras, regidos pela natureza.
Os escravos de eito não se abrigavam, porém, senão sob a copa rendada das sambabaias*, e as alas de cafezeiros.
Manejando as enxadas polidas, como o sacristão maneja a campainha na hora da elevação da hóstia, ofereciam aos céus, entre os cantos monótonos, o maior de todos os sacrifícios, o grande sacrifício do trabalho.
O eito subia rápido e já estava em mais de meio. Lavada em suor Balbina encostou a enxada a um cafezeiro e dirigiu-se ao feitor participando-lhe que ia beber água.
Dentro de alguns minutos a cabinda estava de volta, para não dar pretexto à explosão da raiva de Manuel João.
— Oh! tia, bradou ele, a água tinha espinhas?
— Balbina não demorou, respondeu a preta; o eito ainda não andou nem o cabo de uma enxada. A carreira de café que Balbina limpa, ficou sem adjutório, porque ela pediu aos seus parceiros. Balbina há de chegar com eles ao fim do eito.
— Vamos! continue com o seu palavreado; eu estou ouvindo.
__Vosmecê perguntou, eu respondi.
Manuel João incumbiu ao seu rebenque a contradita à lógica da escrava, mas ainda não tinha descarregado a segunda lambada, quando foi sustado por um grito.
Motta Coqueiro tinha acompanhado a distância a gente e, escondido, seguia todos os movimentos do feitor e da preta Balbina.
Certo de que uma injustiça era a motora do castigo, o homem que só se inspirava na retidão e que só por ela era severo, indignou-se e fulminou na mesma hora o culpado.
- Sr. Manuel João, está desobrigado da feitoria do meu sítio; eu quero castigos mas não vinganças.
O miserável rapaz ficou por muito tempo estatelado sem poder pronunciar uma única sílaba.
- Mas, meu amo, observou ele por fim; eu não posso sair hoje daqui; não tenho para onde ir. Se meu amo não está satisfeito comigo como feitor, deixe-me ficar por enquanto como trabalhador.
Motta Coqueiro tinha-se voltado para os escravos e caminhava para eles, simulando não ter ouvido ao confuso Manuel João.
- Oh! lá, vocês ficam por ora às ordens do Fidélis; é com ele que têm de se entender.
Olhando, porém, para o ex-feitor, Motta Coqueiro fraqueou na resolução de fazê-lo sair imediatamente do sítio.
O homem, que por vezes tinha-lhe feito emboscadas, cujo rancor pelo fazendeiro era extraordinário, quedava covardemente após tão grande desfeita na mais humilde posição.
Tinha o chapéu de lebre sobre o cabo do rebenque e os braços cruzados sobre este.
O rosto exprimia simplesmente o vexame que o acabrunhava, mas nem de leve um indício de cólera; parecia resignado a cumprir a pena, que a sua imprudência havia provocado.
Completamente desarmado pela atitude inesperada do ex-feitor, Motta Coqueiro, querendo dissimular a própria falta de energia, dirigiu-se a ele, dizendo:
- Eu preciso de trabalhadores; se quer ficar, faça o que entender; mas lembro-lhe que o sítio está a cargo do Fidélis.
Era a melhor evasiva encontrada de pronto pelo explosivo, e ao mesmo tempo bondoso coração do fazendeiro.
Em rápido raciocínio convencera-se de que Manuel João não se decidiria a submeter-se à autoridade de um escravo sobre o qual ainda havia pouco tinha poderes discricionários.
A proposta, pensou Motta Coqueiro, irritá-lo-á e assim evitarei que ele continue. Mas a baixeza de caráter do ex-feitor excedia todos os limites imagináveis.
(Motta Coqueiro ou a pena de morte, p. 109-111).