Os juizes chegam ao tribunal com os estômagos cheios e os corações afagados pêlos carinhos da família; riram ao almoço satisfeitos com a graciosidade dos brincos dos seus caçulas; riram à entrada do tribunal, alegrados pela jocosidade dos amigos; aplaudiram os tropos ardentes da acusação e da defesa e entusiasmaram-se com a arte revelada pêlos juristas na elaboração do libelo e do contralibelo, e depois retirados para a sala secreta, submetem os quesitos, não ao critério formado pela sensata apreciação do entrecho do processo, mas aos preconceitos que em suas mentes de burgueses honestos foram arraigados pelos comentários e legendas abortados da ignorância popular, tão oficiosa em cooperar para o mal do próximo, quanto remissa para fazer-lhe bem.

O sentenciado chegara junto ao patíbulo.

Para juntar a ironia à malvadeza, uma bandeja com alguns pratos cheios de confeituras, um cálice e uma garrafa de vinho generoso foram apresentados ao preso, como símbolo da solicitude social, e da máxima e indizível piedade que vem cevar a vítima antes de imolá-la.

O réu voltou nobremente o rosto à injúria açucarada dos seus matadores, e, ou fosse pela dor que esta afronta lhe causasse, ou fosse pelo terror inspirado pela vizinhança do patíbulo, os joelhos vergaram-lhe, e teria baqueado se não fosse arrimado pelo sacerdote.

Não longe deste grupo uma face negra de mulher banhava-se em pranto copioso. Era o protesto de uma raça contra o procedimento de um de seus membros, por que ao passo que a boa da preta chorava, o carrasco esvaziava um cálice do vinho rejeitado pelo condenado, e apreciava-lhe o sabor dando estalinhos com a língua.

Despertado da prestação, revivido do desânimo pelos soluços da comiseração espontânea daquela mulher, o réu cobrou de novo forças, e voltou-se para a lacrimosa, dizendo-lhe:

- Chora, minha filha, porque eu morro inocente.

Para abafar a voz do condenado as caixas marciais rufaram prolongadamente, e fez-se sinal ao carrasco para começar a sua missão.

O monstro apertou então ainda mais o braço do lívido padecente; puxou-o para si em direção à escada, e colocando-se depois por detrás dele, fê-lo subir os degraus da forca.

Embaixo, os irmãos da Misericórdia e os sacerdotes, reunidos em torno da cruz, puseram o seu estandarte em posição de cobrir o sentenciado, caso arrebentasse a corda.

(Motta Coqueiro ou a pena de morte, p. 38)

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