A Ladeira de Gererê

O sacrifício - O geógrafo dava aula também ali, naquela quebrada problemática, juntando cifras pra casa própria. Um esforço, a repulsa. Chegava muito próximo, talvez demais pra higiene de um formado, daquela cuca raspada do muleque municipal que adorava sentar na primeira fila. Lendas de lêndeas.

 

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Filho put@ - No alto da ladeira, Gererê chorou seu finado filho, lapado entre tacos e giz de sinuca.

- Neném nasceu solando. Manhoso e mamante, dedinhos (pensava Gererê: o que segurarão esses dedos?). Seus repuxes, seu sonho todo de gestos. Gererê e o peito inflamado. O neném e seus olhos abertos da primeira vez, seu desenvolvimento de equilíbrio, a primeira vez que sentou sozinho em sua barriga, aprumando a coluna.

- Neném com 12 anos. Rua noturna, todo becos madrugueiros. Voltado pra casa da ladeira, ainda com os fiapos de cola seca ao redor dos lábios. Amarelas marcas drogadas na bochecha, orelha ainda alucinada num baculejo, olhos num tuim de cometas. Com 12 anos, travestido na Estação da Luz, ladino triste. Peruca loura. Perguntado do risco, das criacas de dar e dar, sem proteção: “Ê tio, esquenta não, se morrer enterra!”. Preta Marilyn Monroe da Luz mirim. Chapado no sonho da injeção de silicone.

- Neném com 18: chapado de tiner. Garantia pra quem lhe emprestasse ouvido: “Sou o dono do vale, tio. Eu que encomendo os espírito, eu que ponteio e porteio pra deus. Eu que azulejo o Anhangabaú, eu que ponho verde no jardim de lixo desse centro, tio. Visto de verde de erva daninha. Função Cósmica. Verdade memo”. Estricnado, na rua, aprendendo a costurar nuvens com relampo, dar rasteira em formiga.

- Com 21, Macho. Arrancou no canivete e na mandinga as duas mamas que amontoou nele mesmo, sem sutiã, aos 13 anos. Silicone dividido nos peitos por um cabo de vassoura, pra não estufar peito de pombo. E com 21, macho, duro. E brechoso com a rapa, devedor, espetaculoso saliente na patota. Noite em que só ele não bebeu, lhe bateu na mente um revertério nervoso. Deitou no verde do bilhar, plantou o berreiro na mesa. “Vêm, cacete!!! Vêêêêm chupar minha chama!” e acarinhava, dentro da nuvem de chilique, o jeans boludo apertado entre zíper e virilha. Ali, na mesa de jogo, sua orelha foi estojo prum revide coletivo, caçapa pra bola 5 que a rapa descolou e deixou enxertada, envelopada na cara dele. Sua orelha recipiente de treta.

Gererê, depois do funeral, amarrava toalha de medo na cintura, banhava a cara na bacia da vergonha, saía no portão pedindo bença, descrente.

 

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A laje, o piso - Um vazamento que vem pelas sarjetas mina do teto, escorrência pra dentro da laje e das escoras. Começa formando uma gota, uma giletinha, que já já vira navalha. Crescente, a gota rapidinho mostra uns dentes de serra, é faca de pão. Mais uns segundos e já é um punhal. Pra adiante, pendente do teto, a goteira se completou, tá no fiapo de um talinho pra cair: é uma peixeira, zerada. Vaza na queda e o MininuZú, matreiro, nessa hora se esquiva da lâmina que pingou. Enquanto assiste a tv e mastiga eletrônico às vezes nem sabe o quê, ele alonga a vista pro piso de tacos do cômodo, repleto de faconas fincadas. Bem espetadas. Mas nenhuma delas se mergulhou numa piscininha que mareia entre a cadeira torta de MininuZú e a caixa de imagens estéreo. Esse oceano rasinho, prainha de poça, na fundura do chão no meio da sala, se formou pelos transbordamentos de lágrimas que desceram pela ladeira da rua. Lágrimas de Gererê, habitante de mais tempo lá do cume do morro. Iniciante véio do bairro.

O muleque na tv, babá quadrada luminosa, que só carecia mexer com a palha de aço na ponta da orelha de antena, pra ela ficar nítida e falar claro. MininuZú acostumado a sozinho emborrachar o pão com margarina, comemorado com café cinza. Já se infectava de manhã com as notícias dos maiôs das passarelas, dos congestionamentos de avenidas que mal sabia pra onde levavam. Já desembrulhava o dia com especialistas comentindo os rumos da guilhotina da economia. Já suspendia as pálpebras com a sapiência dos flertes dos astros, com a captura dos helicópteros sobrevoando arames farpados criminais. Porque tudo aquilo era muito necessário, essencial espiritual, né?, pra ele começar a sentir o dia, pra ele pisar humano no terreno do pensamento e flechar suas vontades, no ventão do bairro livre. O distrito do Jardim Maxixe.

 

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Ojeriza - Aula de geografia: aquele muleque lhe recorda a cracolândia, urinas secas no nariz do viaduto.

 

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Morada morosa fagulhada - Ó mãe Poesia, sacode essa roleta. 11 da manhã no Jardim Maxixe: as motocas de trovão descansando da noite, acorrentadas. Adolescência estagnada nas mesas desmontáveis, à espera de passar em concurso militar ou de encontrar a promoção da boca, achar do mais pirante a preço de paçoca.

MininuZú na sala da goteira de canivete. No chão do cubículo um buraco de Atlântico, chorado, entre uma robótica cadeira e a tv, sua caixa de filosofia via satélite. De um lado o muleque come tédio, de outro o tédio come ele. Do beiral da janela de tramela, o panorama: porta de boteco, só ideinha de crime. E a Vida milagrosa, sublime de riscos, mofando.

 

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Onde se cuida do rabo alheio - Anos pra trás: foi pro alto do Jardim Maxixe o rapaz da fundação gringa, de apoio infantil, na missão de convencer Gererê a respeitar a opção do filho em fazer o que quisesse com a testa, a bunda, ou o cotovelo. Foi pra falar de advogado e boxeador homossexual, de engenheiro, padeiro e médico gay. Dar ou não dar o raio que quisesse não ia esfolar o caminho do filho. Mas seu currículo, de palestras em vernissages premiadas e babados pós-modernos, não lhe havia dado o traquejo pra colar ali no Jardim Maxixe, onde o muro da passagem era diferente e o crânio era duro nessa queda. Há tempos escamoso tabuleiro do tabu.

 

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Colheita - Cai o chapéu do professor, engastado na cadeira, cai quando o mestre arrasta seu assento pra centrar nas correções de prova. O MininuZú vê, mas não vê nada. Não sei de nada. Desconversa as retinas. Deixa empoeirar debaixo do banco do regente, que se dane. De tarde recorda, repensa, ressente, talvez pudesse ter avisado, até catado o chapéu e entregue pro professor. Não, não. Deixa quieto. Entregar nada, não. Mór fuleiro, fica tirando a gente.

 

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Na tapera de Gererê - Correu, o muleque não entrou no lar, no cafofo do pé da ladeira. Jardim Maxixe chicote estrala.

A estagiária de magistério avançava algumas quadras na periferia, a fazer pesquisa de campo, monografia. Daí, MininuZú ser a simpatia da perfeita. Na avenida, polícias da viatura lá na outra faixa, caso de farol fardado, perguntando à moça pilota se tava tudo bem. E esse guri do lado? "Tem certeza?" Puliça sem identificação, tarja escondida porque nela bordada e lambuzada tava o nome Frustração, o sobrenome Sangria, o apelido Despreparo. Eis os batismos do soldado fundido na corporação.

No centro do Jd. Maxixe correm os vinténs das transas comerciais. A estagiária pede pilhas pra gravar entrevista de favelado. "MininuZú, pode comprar ali?" Cortês e furtivo, face fria treinada, um balconista atende o neguinho no estabelecimento. Antes de qualquer pergunta já solta que ali não tem. NÃO TEM O QUÊ? NÃO SEI, NÃO TEM! telefone-bola-bala-balança-banheiro­nada. Não tem.

MininuZú volta pro carro e diz que não tem.

 

Jardim Maxixe, quatro da tarde: Um estranho de lá, dando goela, sem saber segurar o borbulho do álcool na mente, chamou seu novo melhor amigo de Zé Ruela. Aí foi na fronte que explodiu a garrafa. Voaram cometas de vidro marrom quebrados na testa, engradado sangrado. MininuZú escapuliu, se empinou na ladeira íngreme esticada, na contramão de onde fluem águas pela sarjeta e descem lágrimas de morro. Foi parar lá no alto, medido no medo, adentrando a cozinha de Gererê repleta de jarros de barro cozido, onde um café-com-Ieite na xicrinha de plástico lhe recebeu pra ficar.

(Mundo ácido, mundo ácido da zorra. Mente rajada na subida da ladeira, desembocada na porta de feijão cheirando, da casa de Gererê. O MininuZú do eterno pão com margarina conhecia vapores culinários da panela de pressão)

Casa de Gererê, casa dos vasos: MininuZú estudando entre cafunés e exigências de capricho. Gererê, na técnica não tá pra oferecer, diplomacia de diploma não tem. Mas na didática do ninho, na festa do afeto, sente que a cabeça do bichinho acende. Acende e também refresca na sombra do teu colo.

Aprender. Pro incentivo do beabá, cada frase dominada era desenhada em um doce e comida pelo MininuZú: pra garganta ler, pras unhas, veias, o espírito e a digestão letrêra. Um empoeirado campo de futebol-de-botão da casa virou uma lousa, coberta de letras de giz de cheiro, que o rapazinho ia lamber no fim da aula. Perguntava: "De quem é essa mesa de botão?”. Recebia siIêncio.

 

As legendas dos mapas eram escritas e iam pro iam pro miolo daquele bolinho de chuva, simples, que Gererê fazia pra MininuZú mastigar sorridente o conhecimento.

 

MininuZú paixonava pelas letras. De madruga ele acampava na cama, dentro da barraca de cobertor apoiada nos joelhos erguidos. Uma mão segurava a cartilha, outra um isqueiro que luzia o dendê de aprender. Travesseiro nas costas, traquinas privacidade/ periculoso incendiário invisível do mundo, erótica leva de um livro pra cama.

Gererê adula e acolhe, alumeia uma simpatia que pensava já caducada. MininuZú ali estuda, concentra , dedilha detalha cartografia, trabalho de escola, convicção, dedicação prometida, raivas da classe, do professor que ele ainda quer harmonia.

 

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Chama de segredo e crescença - Veia véia de Gererê: seu sorriso já tava cheio de barata. Os dentes antes de felicidade, de Sim, já tavam apinhados de teia de aranha.

Gererê: um desejo quase coçando vergonha íntima.

MininuZú pode ser aquele que decifrará suas cerâmicas guardadas? Aquele que estudará suas entrelinhas de expressão na argila e nas gamelonas de barro? Afinal, de que vale um segredo se não pra dividi-lo com alguém? Qual a ganha e a instiga de um mistério, sem partilha?

"Queria cursar arqueologia, nas entranhas da terra. Mas com minha rinite, se eu colasse naquelas pirâmides morria de espirrar, estrondava as alas das múmias, esfinges, faraós." - pensava Gererê.

No abandono de se querer, na largação da saúde, o espelho de Gererê oxidou ferrugens, gaguejantes fins de caminho, repetidos nunca mais e nunca mais e nunca mais, que sempre recomeçavam com as feridas que colecionava nas estátuas e vasos de argila. Mas com MininuZú colando ali no barraco, não havia mais pranto pra umedecer massinhas de modelar.

E chora? Não, só derrama saliva. De felicidade, baba risonha, solta das regras de ziquizira nas lembranças.

Lá na sala das goteiras de facão, na casa da tv do menino, a poça de lágrimas secava. Lá no baixo da ladeira, se cancelava a praia de choro. Sem ondas, sem maré, nada de farofa nem camarãozinho no espeto, nada de peruas caiçaras negociando biquinis e cangas, sem o infinito grandioso imenso azul: greve de oceano na poça da sala, entre a tv chiante e a cadeira cativa.

- PLÁ! PLÁ! - Barulho retirou Gererê da sua transa em bolar gamelas de argila.

"Não é tiro não, é a tampa e o assento da privada caindo, com tudo no vaso, eu sei" Mas, e se for pipoco? Correndo vai Gererê, mancando chega e acaricia o intacto muleque concentrado no papel vegetal.

 

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Representatividade - Mininuzú foi comprar tubaína e ouviu a notícia, lhe bateu furor e expectativa. Apareceu um canal negro: a TV MNÓÇA.

Largou um pouco o tição do mapa em papel vegetal, o tesão de subir a ladeirona com o Sol cromando nos ombros, a canetinha de contornar. Largou, numa volta pra vida espectadora corcunda, avisado que vai estrear um transistor preto de assistir. Pulou a poça que tava minguando miúda (evaporada? falta de abastecimento?). Dispensou controle remoto, tal a instiga de calar na tv, apalpar teclinha de volume, sentir perto a eletricidade maneira da telecolor. Mas só fuleiragem: fofocas áfricas. Malhação aeróbica pixaim. Auditório de palmas comandadas. Vedete vídeo corrente de ouro, novelhas patifarias nas gravatas e na maquiagem, ornamentados de efeitos especiais: mais do mesmo, mais da lesma leseira laser. Fuchicos, fuchicos, quem deita com quem, quantos pelúcia tem quem divorciou. Mas fofoca é uma lagarta que só zarpa quando acaba a última folhinha do gaio. E garganta enrugada só existe porque há quem abrace de orelha a fuchicage. Quem já ouviu a quadrinha do São Bento Grande? De trairage caiu/O quilombo dos Palmares/Mas se a fofoca fecha um rio/Não abre os sete mares.

Nessas, muchou a promessa, chochinha. Voltou a subir ladeira, pra tomar caldo e aprumar na miração do forno onde Gererê cozia argilas.

 

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Desligou, saiu e perdeu o programa da tarde. Broches de gravata e cartões de visita. Coluna social black. Luxo empinado, feliz diamante importado, exemplo ceelestial da classe, nesse país miserento. Espelho de querer? Antes dos chapinhas dos alisamentos, esticantes capilares em suas varianças líquidas, em pó ou supersônicas, inda dá tempo de ouvir a african socialite na beira de holofotes da piscina: "Se a gente hoje tem condição, conforto ... é porque lutamos mais, trabalhamos muito, batalhamos.” Daí é perguntar então pros manos que tão nas esquinas vendendo binóculo, mixirica e alçapão: por que vocês não batalham mais? E pros caminhoneiros que caem na estrada às cinco da manhã, oito dias por semana: por que não vão pra batalha? Têm medalha? As moças em cubículo sufocado, nalgum treme-treme do centrão, na produção em série de artesanatorturas. Por que vocês não batalham? Por que não dá certo?

 

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Trema na trama do trauma – No estudo, Mininu-Zù saía do Dia, pra se embrenhar mais na escorregança do Tempo. Era ele o sábio que traçava quinas de pirâmides; era ele o jangadeiro que chamava a madeira no tempo certo pra ser canoa; o médico milenar que pra sutura cutucava formigas, esperando as mordida de ferrão atá a pele operada, médico indiano baiano moçambicano cabano. O MininuZú ia pareado na família das ciências de eras distantes. E fez seu singelo trabalho, entregou a linha bela da canetinha no papel vegetal, a margem sem Lanho de erro.

(A imaginação é irmã da eternidade. MininuZú decidiu fazer dois mapas: um, capricho sem máculas, pra entregar na data pra avaliação. Outro, de linhas de desejo, invenção contemplada em sério brinquedo, adequada pra sorrir em quintal de sol, pra colorir e legendar sempre de novo.)

O professor apreciou a perfeição do trabalho em segundos meticulosos. E vociferando desdém, deitou em vermelho maiúsculo a sua avaliação: DUVIDO!

MininuZú segurou a lágrima na beira, como quem segura vômito.

 

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Zuado - Gererê é cama, tudo na vida em cãibras, Ievantar pra acender chá ou abajur é torteira demasia. Febre dentro e inchaço fora. Solidão é o que dói menos hoje, no corpo todo ... menos no peito. Espera o Mininu-Zú. Nas preces sem carne, sussurra em pragas a palavra gratidão, olheiras cuspindo repelência.

Viúvo Gererê: lhe estilhaçava a saudade de sua dona Muita, que faleceu num teco só. Via no canto a lousa, o campo de botão, onde deixava Neném ganhar de goleada. Campo que sua Dona Muita comprou à vista num bazar, com primeiro salário de vigia.

Jardim Alcachofra é a vila de quarteirões da burguesia, banda de barão colada nas ladeiras do Jardim Maxixe. Ali, Dona Muita era olho noturno, motoca de apitar: “Pirriu, pirriu”. O matutino Seo Gererê lavava nuvens no tanque, espremia e pingava o algodão doce na cachola quente da Dona Muita, chegada já na aurora cansada. Numa noite, um muleque escalava lanças de portão pra namorar uma pipa enganchada. Dona Muita, na nóia vigilante ou na infecção de se crescer de Poder, disparou uns quinze apitos. “Pirriu, pirriu, pirriu, pirriu...”. Mas era em outro porão, que um mordido e cheirado larápio se assustou: “Xiii... delatado catado, eu?" Engatilhou um sopro só na zarabatana, fatal, um teco um furo, na testa de guarda de Dona Muita.

Gererê lembrava, recordava tanta treta besta... as vontades de agrado, de amenizar, sempre deixadas pra depois, pra um dia. Vaidade casando de ranço com o ressentimento, parindo incompreensão. Aí Muita se foi e ele nunca disse a ela o que queria, só dispois, quando rezava na confecção dos potes de argila. Cerâmicas de Gererê dedilhando a Terra-mãe, que provê e frutifica, que cobra a volta, embebida de sangue, que enterra no abismo de seu útero. Cafuné e cadáver. Gererê modelava vaso pra receber as sementes e guardar o leite. Labirintos nos veios da modelagem, barro tirado em lua apropriada.

 

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Tomba em tumba - MininuZú se sentia um ki-suco de pimenta numa ampulheta furada. DUVIDO! DUVIDO!, vermelho retumbando na mente. MininuZú era um pneu, pneu de confiança Nível Aço, que passou por cima de uma tampinha enferrujada e se estourou.

MininuZú volta pra casa mais homem, aprendeu paisagens do mundão, mas desaprendeu muito também, perdeu pra não ter mais, dessas matérias que não se come duas vezes, perdeu horizontes puros de dentro, crença em Justiça, blábláblá. Volta pra sala de sempre: a antena ligada, um programa de pergunta e resposta automática interroga quem estrelou o papel do galã no penúltimo seriado de sucesso. Enquanto as giras do mundo corriam, permanecia a brotação de goteira e o chão repleto de espadas espetadas.

MininuZú volta e percebe que ali na cuia de chão, naquela bacia de piso, praia de poça, recomeça a minar água. Água com cheiro de Gererê, lembrança que voa rápido. Cabeça tonelada, cata o controle remoto e desviando das centenas de faconas se encosta na cadeira, liga num repórter. É um negão engomado que braveia e, espuma, arranca e recoloca a cartola no cucuruto, enquanto exclama os absurdos dos bandidos que sequestraram a sobrinha de um empresário, ressalta que aquela quebrada do cativeiro é notório formigueiro de larápios, hediondas doenças da sociedade. Abre fôlego de sorriso pra chamar a Patrícia do Crédito, que anunciará bolsas de couro de jacaré e condomínios seguros e luxuosos no futuro do Jardim Alcachofra, Zona Sul purgada. Pra adquirir é só ligar no 0800 da TV MNÓÇA.

Mas MininuZú mergulha, se arremessa pro mar, empoçado. A Patrícia se arregala na perda do negócio e pula, atrás, decidida. O comandante do programa saca a cartola e se joga também, transborda pra fora da tela. Per-seguindo, cai de ponta um facão, no sal da sala. No epicentro do marzinho.

 

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Agonia sem plateia - Gererê: úlcera bagaceira destroço. Qual que é o pé da solidão, no molho da pontada horrenda da costela? Variava em seu bagaço, entre os lençóis amarfanhados, a sanha de se finar logo, já que era total dispensável na sala de estar da ladeira da vida.

(Cadernos Negros 30: contos afro-brasileiros.)