Estória no Telespelho

Falemos de nós agora
Contemos nos dedos o que fomos nós
Lembra da inocência!
Pra onde foram aqueles meninos danados?
Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas
Nos pés descalços, na bola de capotão
Éramos perfeitos atores, às vezes
Representando uma realidade que víamos
Com a consciência lambusada de doces
E auto-rejeição
Lembra dos planos!
Pra onde foram aqueles rapazes e garotas?
Nossas fantasias ficaram nas esquinas
Nas idas ao cinema, nos papos de madrugada
Éramos personagens inexpressivos, às vezes
Vivendo uma realidade que víamos
Com a consciência incrustada de chicletes
E pastas de alisar cabelo

Lembra das decepções!
Onde estão os nossos velhos amigos agora?
Nossas fantasias estão na cabeça
No dia-a-dia, nas visões de futuro
Somos protagonistas vulneráveis
A espera de um perfil

(“Estória no telespelho”, p. 37.)

 

Lembrança da dança

E pensar que nossos gestos
Derramamento de braços
Corredeira de olhares
Ondulações corporais enfim
Eram nada mais que manifestação gritada 

E pensar que nem pensávamos no feio das coisas
Porém tínhamos as veias já saltadas
Dilatadas pelos sons universais da euforia

E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas
Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos
Entre os dedos como líquido viscoso e quente
O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas
Canções encontros rastros descobertos

Atrás de nós alguns amores sólidos
Outros mortos
Outros simplesmente adormecidos
Todos espalhados no caminho afunilado que -
Fincado no tempo -
Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança

(“Lembrança da dança”, p. 36.)

 

Noite

janela aberta
pra eu ver a noite
e deixar que ela me veja
tudo o que ela despeja –
a canção que se houve de longe
a luz dolorida da lua
a brisa leve e ardida
os gritos de dor
as gargalhadas iludidas –
no meu coração
janela aberta
para eu ver a noite
e deixa que Lea me veja.

(“Noite”, p. 54.)

 

Rio

Chorei

Pela morte do rio
A morte do rio
me deu pena de mim
Chorei
A espuma fedorenta sobre o rio
O rio coberto de branco – de luto
A morte do rio me deu pena de mim
Chorei
De ódio do branco que mata o rio

(“Rio”, p. 21.)

 

Saga

é uma onda que sufoca
e estoura o peito
dilata as veias tapa os olhos
na sei se vai explodir numa lágrima
soco grito ou beijo
ah! Nem sei se os pedaços de mim vão fundir
nas saliências pequeninas duniverso.

(“Saga”, p.19.)

 

Tambores

Canto

Rufam os tambores
E a índole fundida em mim
Comove e move as imagens que já vi
Os odores são assim – invisíveis
Mas pregados no ar
                          a ameaçar
as pedras
do mesmo modo vivem as cores
que em silêncio
vão marcando uma presença nobre
nos espaços pobres que há (...)

(“Tambores”, p. 11.)