Tem gente com fome
Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...
Piiiiii!
Estação de Caxias,
De novo a correr,
De novo a dizer:
Tem gente com fome;
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...
Vigário Geral,
Lucas, Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular,
Estação da Penha,
Olaria, Ramos,
Bom Sucesso,
Carlos Chagas
Triagem, Mauá,
Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...
Tantas caras tristes,
Querendo chegar
Em algum destino
Em algum lugar...
Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome.
Só nas estações,
Quando vai parando,
Lentamente,
Começa a dizer:
Se tem gente com fome,
Dai de comer...
Se tem gente com fome,
dai de comer...
Mas o freio de ar,
Todo autoritário,
Manda o trem calar:
Pisiuuuuuuuuu...
(Cantares ao meu povo, 1961)
Navio Negreiro
Lá vem o navio negreiro
Lá vem ele sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...
Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...
(O poeta do povo, p. 45)
Quem tá gemendo?
Quem tá gemendo
Negro ou carro de Boi?
Carro de boi geme quando quer
Negro não
Negro geme porque apanha
Apanha pra não gemer
Gemido de negro é cantiga
Gemido de negro é poema
Geme na min'halma,
A alma do Congo,
Do Níger da Guiné,
De toda África enfim
A alma da América
A alma Universal
Quem tá gemendo
Negro ou carro de Boi?
(Cantares ao meu povo, 1961)
Velho atabaque
Velho atabaque
quantas coisas você falou para mim
quantos poemas você anunciou
Quantas poesias você me inspirou
às vezes cheio de banzo
às vezes com alegria
diamba rítmica
cachaça melódica
repetição telúrica
maracatu triste
mas gostoso como mulher...
Triste maracatu
escravo vestido de rei
loanda distante do corpo
e pertinho da alma
negras sem desodorante
com cheiro gostoso
de mulher africana
zabumba batucando
na alma de eu...
Velho atabaque
madeira de lei
couro de animais
mãos negras lhe batem
e o seu choro é música
e com sua música
dançam os homens
inspirados de luxúria
e procriação
Velho atabaque
gerador de humanidade...
(O poeta do povo, p. 73)
Bolinhas de gude
Jorginho foi preso
quando jogava bolinha de gude
não usou arma de fogo
nem fez brilhar sua navalha
Jorginho era criança igual às outras
queria brincar
O brinquedo poderia ser um revólver
uma navalha
um pandeiro
quem sabe um cavalinho de pau
Jorginho queria brincar
Jorginho viu um filme americano
no outro dia
fez uma quadrilha de mentirinha
sempre brincando
a quadrilha foi ficando de verdade
Jorginho ficou grande como Pelé
todos os dias saía no jornal...
Televisionado
só não deu autógrafo
porque estava algemado
Ele era o facínora
que brincava com bolinhas de gude.
(Cantares ao meu povo, 1961)
Sou negro
A Dione Silva
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou
como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.
Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação.
(Cantares ao meu povo, 1961)
Gravata colorida
Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada...
(Cantares ao meu povo, 1961)
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