Estrelas nos passos
 
a bandeira estava lá
erguida
era janela
cortina e porta da favela
era a bandeira nacional
o globo balançava
era o que pude ver do asfalto
a lua jogava estrelas nos passos
nos sonhos
no madeirit do quarto
e era tanto pipoco
tanto estouro
que parecia festa
parecia alegria
mas era o fogo que consumia
o disputado metro quadrado
da favela que ardia 
           (Enquanto o tambor não chama,, p. 29)
 
Fique sabendo
 
porque me viu passar
pensa que sabe do não
e do meu sim
do soco na face do qual escapei
do pente fino que não cabe em mim
e se me ouviu cantar, ah!
pensa que meu molejo é bamba
mão é pandeiro; rosto, fino tamborim
cetim de malandro, passo de arlequim
pois fique sabendo
o meu sonho é louco, pulo alto
nunca conhecerá a tristeza deste palhaço
fique certo, nunca me dirá: - pobre coitado!
                 (Enquanto o tambor não chama, p. 35)
 
Centelhas esvoaçadas
 
sou filho
que não engole o grito
enquanto é véspera
o meu grito não é choro
é sorriso no tempo preciso
não para no tempo
não passa com tapa
mas tem ardor multiplicado
meu grito
tá na consciência
na virulência contaminada
na alegria, na capoeira
ah, o meu grito!
escorre no eco interno
vai de tirolesa viajando nas mentes
de franca amizade
meu grito
entope coronárias
letras quatrocentonas
vai, meu grito
virar centenas
centelhas esvoaçadas
pousando
em páginas pólvoras
grito dos meus ancestrais
dos que virão atrás
vai, meu grito, vai 
           (Enquanto o tambor não chama, p. 54)
 
Parte esquecida
 
eu quero ver
quando essa parte preta do seu ser
quando esse lábio grosso saltar da boca
quando cantarem esse exagero de bunda
quando saltar esse cabelo de mola
quando a sola sufocar de negrume
                                  seus pés
eu quero ver
quando seus olhos se colorirem de preto
e toda sua família voltar a escurecer
e toda percepção mudar à sua volta
quanta explicação a seus amigos da escola
eu quero ver
aquela parte esquecida
no cantinho da cozinha
que você acreditava ser finda
essa parte preta voltar
e no meio da rua te chamar:
- Que neguinha tão linda! 
         (Enquanto o tambor não chama, p. 65)
 
Enquanto o tambor não chama
 
enquanto o tambor não chama
estou em outro lugar
no rodopio de mãos trançadas
corpos treinados, pés floreados
peripécia de samba-rock na alma
enquanto o tambor não chama ...
encontrem-me entre cheiros
esfregando arruda entre os dedos
mascando alecrim, colhendo pariparoba
e flores de jasmim
enquanto o tambor não chama
com incenso de palavras do peito da África
com som de lembranças sob pele retinta
com zunido na cabeça e tremor nas pernas ...
ah, mas quando o tambor chama!
é só alegria, festa, euforia no catimbozeiro
é vovó abençoando, de passo inusitado
no centro do terreiro
e a roda grandiosa em festa
é Exu Giramundo ou é mundo que gira?
arrasta a menina que tremelica em ancas servidas
em sinfonia de adjá chamando pra chegar
aí é que eu quero ver
aí é que eu quero ver
quando o tambor chama
                 (Enquanto o tambor não chama, p. 71)
 
A vontade de todos
 
todo mundo quer ir da teoria à prática
só que antes tem um mundo
um travesseiro no meio
e esse monte de palavras 
                 (Enquanto o tambor não chama, p. 31)
 
Figa na mão
 
para o menino que sonha
com as lendas do nosso povo
deitado no berço
eu, na esteira
um conto dentro de outro
girafas e elefantes saltam da parede
seres da África
forças de além do Atlântico...
do brinquedo que chacoalha
emana o som do gigante elo
a criança entende
e parece repetir a canção:
"menino com figa na mão
já nasce com a proteção
com a força de nossos pais e ancestrais
lachera, kaô
meu pai" 
               (Enquanto o tambor não chama, p. 21)