Filho da dor pai do prazer

Uma vez um negro velho contou-me que no tempo da escravidão os homens dormiam acorrentados nas barras de ferro que havia nas paredes das senzalas. Depois de trabalhar exaustivamente e maltratados tinham que se ajeitar para descansar de qualquer maneira naquele lugar sujo e fétido. Viviam sem higiene alguma e ainda eram proibidos de lamentar, chorar ou gemer. Apanhavam por qualquer coisa. Eles usavam como banco, assento, uns toros de madeiras roliças e rústicas. Para mostrar que ainda estavam vivos, furavam os toros, (pedaços dos troncos de madeira) e colocavam couro bem esticado. Batiam emitindo sons, tocavam com as mãos ou baquetas. Sufocavam o choro e o lamento no batido do grande tambor, atabaque ou bumbo. Ainda não sei se naquele tempo eram esses mesmos nomes... Hoje conhecemos como Surdo, Atabaque, Bombo, Bumbo, Zabumba, que em latim significa Bombu. A pancada era no compasso do coração para mostrar que ainda restava vida naquele corpo e que a alma ainda resistia. Assim foi o começo. O samba nasceu de parto natural. “Apesar de ser filho da dor, agora é pai do prazer.”

O repinique foi criado também em tamanho médio para ser transportado e ter outra finalidade. Quando os negros fugiam em grupo levavam esse instrumento. Um dos refugiados era destacado para subir numa árvore para avisar a distancia e quantos inimigos vinham na perseguição. Através do toque os parceiros sabiam se podiam ou não realizar a emboscada. Para os capitães do mato aquilo era apenas canto de pássaros, enquanto para os outros era um toque de guerra. Esse instrumento é mais usado em escolas de samba. Entre uma batida e outra do Bumbo, ele vai repicando no meio, cobrindo o vazio.

O tamborim surgiu dos pingos de chuva na senzala. No meio da noite batia a saudade dos ente queridos, da terra distante e de tudo. Aqueles pingos de chuva caindo insistentemente, aumentavam a saudade, a angústia e a dor. Aliás, esses pingos caindo como se surgissem do infinito, traziam lembranças até para quem não tinha do que se lembrar. No dia seguinte o homem fez o tamborim do couro do gato, ou de outro animal. Não sei ao certo. O tamborim é um pequeno tambor. Sei que esse instrumento é afinado no timbre do cavaquinho. Parece-me o instrumento mais alegre do samba, apesar de se originar na tristeza e na melancolia.

A cuíca é um instrumento construído de um tamborim de uma só pele, em cujo centro se prende uma varinha que, atritada com a palma da mão, faz vibrar o instrumento, produzindo uma espécie de mugido prolongado e triste. Foi inspirada num pequeno mamífero chamado marsupial, malhado de branco e preto, também conhecido como goiacuica. Sem alimento os escravos tinham que se virar para saciar a fome. A saída era caçar em grupo também. Quando encontravam algum animal, se juntavam, faziam um círculo e pegavam à mão. Através do desespero do bichinho que emitia um som diferente e esse grunhido foi transmitido para o instrumento que recebeu o nome de cuíca e virou samba. Um samba sem cuíca nem parece samba. Esse instrumento desafia a própria física. Onde ele é tocado sempre há uma panela cheia de água para molhar o pano que ajuda a tirar o som. Atualmente é usado para todo tipo de música e dá uma ilustração toda especial. Com tristeza e alegria ele enfeita e enche a música de encantos.

Os negros em fuga tinham que pensar em tudo. Nada podia dar errado. Um detalhe qualquer poderia significar o fim da vida ou a tortura por longos anos. Tudo tinha que ser pensado e repensado. Na fuga eles, os negros, usavam todos os artifícios para desviar a atenção dos perseguidores. Quando se encontravam numa moita, mato rasteiro ou lugar sem saída, quase nas unhas dos inimigos, começavam a sacudir os chocalhos. Os adversários fugiam desesperados pensando que ali era um ninho de cascavéis. Os negros ganhavam tempo para continuar na peregrinação em busca da liberdade. O chocalho é também conhecido como Ganzá, Xequeré, Xiquexique e outros nomes.

O pandeiro é constituído por um aro de madeira com uma pele esticada. Geralmente circundado de soalhas (guisos) e que se tange com a mão ou os cotovelos. É de origem cigana. Antes era conhecido como pandeirola. Era sem couro. O sambista o adaptou para esse ritmo e até parece ser de origem africana, já que ele se tornou tão íntimo dos batuqueiros. Alguns pandeiristas que conheço pegam esse instrumento e fazem dele o que bem querem. Nas escolas de samba eles fazem malabarismo com maestria e fica lindo.

O agogô era o cincerro no pescoço dos animais. As vacas se embrenhavam na floresta e eram encontradas através do som desses pinduricalhos. Artimanhas também usadas pelos negros para driblar os inimigos. Fugiam com os cincerros nas mãos. Os perseguidores pensavam que eram animais e tomavam outros rumos.

O Reco-reco é constituído de um toro de madeira no qual se abre regos transversais e que se faz soar passando por ele uma varinha, ruído especial produzido por esse instrumento. Várias pessoas tocando alternadamente dá um som de sapos na lagoa. Os negros executavam essa sinfonia no momento em que iam fazer seus rituais africanos, suas orações em Iurubá. Os brancos não podiam ouvir, ou, se ouvissem não podiam entender. Eles, os negros, não podiam realizar nada que lembrasse suas origens ou cultura. Foi aí que nasceu também o Berimbau e a Capoeira, como dança, como luta e defesa. O Reco-reco e o Berimbau tocados juntos é uma festa. A Capoeira é dança, é arte, é cultura, é defesa e busca da liberdade. Capoeira também significa mato pequeno. Os Capoeiristas lutam de mãos no chão, ficam baixos, por isso que essa diversão ou luta, recebeu esse nome. Portanto, o Reco-reco nasceu junto com o Berimbau e a Capoeira. Os três brigaram bravamente contra a escravidão brasileira.

O Berimbau tem vários toques. Toque de dança, toque de luta e toque de guerra. Foi assim que essa gente se impôs e chegou até aqui. Ainda há pouco a Capoeira não podia ser exibida em qualquer lugar. Havia uma tremenda perseguição da sociedade. Onde havia uma roda de pessoas jogando Capoeira nos caminhos, nos terreiros, nas praças ou nas ruas, os policiais chegavam espancando e até os prendiam como vadios. Ainda hoje isso não mudou muito, mas aos pouco ela está conquistando seu espaço no mundo.

No terreiro de Umbanda ou Candomblé os negros velhos se juntavam para cantar e contar fatos novos. O Preto velho sentava num banquinho e cantava acompanhado por um Bumbo ou Atabaque. O Preto cantava, as mulheres e as crianças respondiam. Assim nasceu o Jongo, o Samba, o Batuque e mais uma infinidade de ritmos afro-brasileiros.

Os cânticos eram entoados mais ou menos assim:

-“Na Bahia tem um coco / Nesse coco tem dendê / Oi, me diga como é que se come esse coco / Esse coco é bom de comer... / Oi, me diga como é que se come esse coco / Esse coco é bom de comer... “

- “Quem tem Baiano pisa / Eu quero ver pisar / Quem tem Baiano pisa / Eu quero ver pisar / Oi, pisa miudinho aqui nesse Congá / Oi, pisa miudinho aqui nesse Congá...”

O samba foi se afinando e se firmando até chegar no Donga, Adoniran Barbosa, Noel Rosa, Cartola, Ataulfo Alves, Zeca da Casa Verde, João Nogueira, Martinho da Vila, Geraldo Filme, Paulinho da Viola e muitos outros criadores da MPB.

“O povo negro fala com Deus através do ritmo, do canto e da dança.“

O negro velho que me contou essa história se chama João Lourenço Dias, foi escravo na Bahia e morreu com 129 anos de idade. Foi roubado de Porto Seguro e levado para a Zona da Mata em Minas Gerais. É meu Bisavô. Morreu trabalhando no campo para sobreviver. Tomava três cachaças por dia. Uma de manhã, outra na hora do almoço e a noite na hora de dormir. Era feliz apesar da dor e de toda humilhação que passou pela vida afora. Teve duas mulheres e com elas mais de quarenta filhos. Ele partiu sem rancores, sem tristeza e nos deixou uma lição de vida. Deixou um caminho feito com foice e machado. É nesse caminho que sigo semeando a semente da esperança para um futuro melhor.

(O Plantador de Manhãs)

 

Em busca de novos horizontes 

A África, antes de ser invadida pelos predadores Europeus, era unida e orgulhosa de sua cultura e seus costumes. Esse povo africano foi arrancado e arrastado para diversos lugares do mundo e vendido como animais irracionais. Milhares de pessoas morreram nos combates e maus-tratos impostos pelos navegantes e mercadores.

Ainda hoje o sistema capitalista vive jogando uns contra outros para dificultar a sua integridade. Afirma a todo momento que o sonho de unidade é mera utopia. Tiraram-lhe o direito de uma família ou de viver em paz até mesmo com seus irmãos. A liberdade que esse povo precisa ainda tem que ser conquistada.

Essa gente foi arrancada de suas aldeias e levada para lugares estranhos onde sua cultura nada significava. Impuseram-lhe os costumes de um povo diferente. Foi proibido de ter suas crenças. Diziam que sua religião era bruxaria ou magia negra. Ainda hoje, após tanto tempo percebe-se que nada mudou, nada evoluiu. Parece que ainda vivemos no tempo das cavernas.

Algumas décadas atrás... no tempo da guerra do Vietnã o mundo sofreu uma influência muito grande. A juventude passou a usar roupas e cabelos no mesmo estilo dos militares. Quando o movimento "hippie" surgiu quebrou toda a estrutura conservadora da classe dominante, determinando os rumos do consumismo ou trazendo alternativas válidas. Os mesmos jovens que se trajavam como militares começaram a questionar seus pais e a ter um comportamento moderno. A partir daí passaram a sofrer todo tipo de repressão por serem cabeludos contestatórios e por pregarem a liberdade.

Com o negro ocorre da mesma forma. Ao passar pelas ruas, escolas, teatros e bares é surpreendido com gestos desdenhosos por caracterizar a sua origem nas roupas e nos cabelos. E sempre tem que engolir as piadinhas de mal gosto dessa sociedade retrógrada e falida que em nome de sua civilidade deveria aceitar essa exteriorização como um ato de preservação de sua autenticidade cultural.

Temos que parar por alguns instantes e dar um passeio dentro do nosso eu... talvez aí vamos perceber que somos a soma de todas as cores. Somos índios, amarelos negros e brancos. Como disse um amigo: - "Isso está claro nos traços. Se não, é no cabelo é na cor. Se não é na cor, é nos lábios ou nariz. O nosso País é um jardim. Muito mais bonito na medida em que tenha muitas variedades de flores. Que todas elas possam florescer livremente. Se tiver uma só cor ele se torna monótono. O Brasil é um jardim de várias etnias."

Nas escolas deixam escapar que ser negro é feio. Que ele é inferior e incapaz de raciocinar. Não falam abertamente, mas está emplícito nos gestos e ações. Por muitas vezes o negro depara-se com pessoas que invertem a condição: tratam-no de racista ou revoltado. Isso difere muito de ser consciente.

A consciência é o caminho da liberdade. Para se livrar desses grilhões que às vezes são impostos até mesmo pela família, é preciso desvencilhar-se de todos os preconceitos. Sejam eles raciais, psicológicos, religiosos ou sociais. Os elos que nos ligam são muito mais fortes. Se formarmos uma só corrente na busca da liberdade, será impossível barrar nossos caminhos. A partir daí poderemos abrir os braços para abraçar o Universo. Ver o sol nascer. Vamos poder parar e olhar o percurso das águas e na sua transparência ver brotar a essência do nosso ser.

 

Longe da terra

Há anos o Brasil comemora a ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA, e em todos esses anos, quase nada, ou nada se mudou até agora. O negro saiu da senzala e foi habitar as margens dos rios e as favelas. Era o fim de um pesadelo quando começava outro pesadelo.

Um príncipe guerreiro conseguiu quebrar alguns elos das correntes e saiu correndo pela noite afora. Quando clareava o dia, eleja se encontrava bem em frente ao mar. Ali, mergulhado na incerteza viu estampada em cada onda a impossibilidade de rever sua gente e, antes de pegar o caminho para QUILOMBO DOS PALMARES, fechou os olhos, ergueu a cabeça, abriu os olhos da mente e se pôs a dizer:

Choro a dor de um povo...
 
Tenho saudade do cantar dos atabaques
Que não mais pude ouvir
 
Lamento a angústia
De estar tão distante
Dos antigos
 
Penso nas barras de ferro
Na hora de repouso
O amargo gosto
Na hora de partir
 
Lembro-me do sangue
Escorrendo sobre o verde
Dos gritos
Do desespero
 
Das marchas para os porões
 
Guardo no peito
Toda vontade de voltar
Atravessar o grande rio
E cantarolar de mãos dadas
Com meus irmãos.
       (O Menestrel desvairado)

Poema para o não esquecer

"O passado escravista gravou no inconsciente coletivo a falsa convicção da inferioridade do negro.

Sua etnia continua sendo usada como justificativa de ignorância ou miséria. Esse preconceito que esconde a verdadeira causa da desigualdade, manifesta-se ainda hoje em expressões da linguagem comum nas comparações ou referências. Muitos negros, por sua vez, interiorizam um complexo de inferioridade em relação a sua condição e, por isso não assumem a negritude e tem como padrão ideal a situação do branco".

Companheiro perdido na noite
As trevas invadam teus olhos
E no peito rasguem como açoite
Se pôs de lado o cantar...
 
Uiva tua dor como um lobo
Distante da mãe primeira
Irmão tão próximo de mim...
 
Teu grito oculta-se nas noites
E desabrocha como espinhos
Entre as flores do dia...
 
Derrama suor pelos campos
Abre veredas esperançosas
Com suas mãos calejadas...
 
As trevas cobrem nossos caminhos
Apagam nossos sorrisos
 
Esperança, – sagrada esperança! –
Era tudo que podíamos ter
 
A natureza ensinou-me a caminhar...
 
Antes que a noite se faça
Canta teu canto guardado
Clama por liberdade
Porque a hora chegou.
             (O Menestrel Estradeiro)
 
Veredas da liberdade
Soltaram meus braços
Mas fecharam janelas e portas
 
Cercaram as ruas
Por onde iria passar...
 
Reprimiram meu grito
Prenderam-me no compasso do dia-a-dia...
 
Vendam meus olhos
Para que não possa ver os raios de sol
 
Fazem-nos acreditar
Que somos ineficaces
 
Calam quem clama por liberdade
E todos os dias
Surge um muro em meu caminho...
 
Mesmo assim
Vou indo por estas veredas
Abrindo espaços
Para os que virão.
                    (O Menestrel Estradeiro)