DESLIMITES 4

navalha um sol de azeviche
negride
– guerreiro em dorso de pedra.
desfruto de um tempo
escultor de tragédias.

procissão de navegantes rotos
clamores
que tocam para o sr. ninguém,
ventos que sopram para lugar nenhum,
assassinos que anunciam santos.

auroram prímulas de sangue
                                     e amargaridas
ávidas
nos meninos que trepam na chuva.

vagam vagões no caos
                – refúgios de ciclones –
risos em releases
almas de silicone.

onde se esgota a semântica do esgoto,
o tecido frugal do ser,
o ácido licor da espera?

vela a primavera
                     ao herói
e sua era,
rompe a lírica dos deuses
e sua dança de enigmas.

desentrevam luzes à barbárie.

e os surdos ouvem
e os cegos vêem.
                        (Palávora, p. 50-51)

PALAVRA

a palavra coexiste no dilúvio
ao açoite do sangue nas pedras.
a palavra é a pedra – o arquétipo
que dança.
e o tempo do fogo flama
e a memória das águaslavra
en/canto e plenilúnio.

a palavra lavra o tempo
naja imaginária
submersa no invisível mar,
godiva do cais dos loucos
deusa do silêncio.

a palavra em si é cio
virtude
          a divertir o vício
de saber saber.
                    (Palávora, p. 23)

SOL SANGUÍNEO

(Terra chã)

                                 Para: Cienas Santos

                                       Sérgio Natureza

1.

Voltar a desolado abrigo
da terra
          chã.
Voltar aos limítrofes
da palavra (larva fulminante
e alarde) que assiste

da despensa
ao rapto da existência.


Voltar ao solo atávico
onde os loucos
                      riem-se
à sombra da neblina.


E – bardo – romper

a borda,
           rasgar o hímen
da linguagem
          que capta
em sua teia,
os inquilinos do assombro.

O que move a lenda
é o fulgurar do incêndio,
o raio invicto
a fecundar a pedra.

Falo do que se inscreve
no inabordável
como a lua no lago
                          alada.
falo do que falam
caninos num tempo de crotalus.

Voltar ao fulminante alarde
da palavra.

2.

Minha terra é o nome
que desabotoa o indomável.

A palavra física
em meu uivo esventrado. Minha
erra é ter-
               me.

E urdir
– no capítulo da carne –
o sopro itinerante;

E arder
sob o sono do tempo
e sua lírica de escombros.

Recolhido às artérias
lúdicas
ouço contar a memória
no living das lagoas secas.

Insular e ascética a semente
fugaz dos rastros
                       me guarda
em seu enigma.

Longe
é a flor que fala à contenção
que transborda.
E o cio homicida que o vento
escuta e cala.

Do cais rasurado de esperas
velam noites a terçar
atabaques.

Minha terra é minha pele.

Das rinhas
em que o sal
dá músculos à água

vieram o sol –
e o azeviche
conjugado à carne;
e vieram moendas de açúcar
e súplica;
e vieram demandas de açoite
e séculos
a desatar fonemas
à fervura.


A mim que cingiram caminhos
o mar de
Antilhas laceradas.

3.

Reconheço-me no branco
que agasalha o rastro
das palavras. No rumor
de sílabas que lavram
minha urdidura: o parto
a granel sem sigla
ou made in...

– Nascer foi domesticar
as pedras.

Lentamente a carne exorta
ao poema
sua memória de cactos.
Eis as palavras aprendidas
ao deserto; eis as falanges
que vicejam cicuta
sob as flores.

(Ó vertigem de espinhos!)

Cada sopro é a noite
a esgrimir
sua asa de estio; cada cio
é o alfabeto
que desata o gesto.

Minhas pernas grafam
a pátina morena dos rios
de águas turvas. Os rios
(ruminantes) sujos de argila
e sede.

Algo a forjar-me
esta língua de prismas,
réstias que adensam
a face expandida do sonho.

Ou sulcos no tempo
sem relevo: a goiv’arando

a névoa. E malho,
e lanho, e lírios insulares
ao olho – dardo à deriva –
de minha larva de exílios.

4.

Venho dos córregos
de água salobra,

do descampado
chão de farelos

na cara o sol
rachou minha argila

seca: é o que digo
aos guardiões

que batem lata
em meu silêncio.

Distante ovulam
ritos de memória

como remendos
no ontem. E meu

olhar rasante
incide, infante,

ao canyon livre
e ao habite-se

da flama do dia
e sua blitz.

O que não busco
me tem

o que não houve
era meu

pedras no caminho torto
mentiras feitas de mel

há que se viver o árido
como se cálido

há que se viver o breu
como se brio

há que se viver o nada
como se nada,
nada, nada até sangrar

que só dão água
para quem já tem o mar.

5.

Êh mar, ímã de azuis, êh mar!
Linfa de sal (negreiro)
em minha carne
ciliar de palafita em flor.

Eis-me.

Cuspido ao pólen
da palavra
minha terralenda
e súplica
que se exalta
no que em mim se inscreve
a barro
e sangue.

6.

As águas móbiles
                        do desejo
alçam-nos
à densa limalha dos dias,
ao voo das órbitas
                       submersas.

Urgem no átrio
em que a sede reincide: as
asas azagaias do desejo.

É sempre limiar o sol
que nos labora
                      o rito
da manhã
feita de azul e enzimas.

Assim as palavras
(que são flores de água),
alimentam-se de rimas
para entreter o vento.

Todas as coisas estão grávidas
de fogo. De um certo navegar
para nenhum cais.

Dentro de nós o tempo
seminal
           pagina a memória
anímica
como um deus que adoece.

Antes do que é brilho
e forma
a vida uiva para ninguém.

7.

O fogo infiltrado no olhar
amanhece
               o tecido da fábula,
exubera o sol

no gestual da noite
esquiva. A lágrima

rútila
que a manhã côa
do infinito ontem
                         espalha-se
na imensa teia de rasura
dos dias

ante o branco de nada
ante o branco mineral
de sal

                    e silício.

E a boca espelha
a léria
               lúdica
Onde tudo se esfarela
E a linha
            não alinha.

E nem a rinha
de extintores de sonhos
arrasa
        a fleuma
da palavra transfigurada.

8.

Pelo menos resta
o verso – árido
mineral a soprar
sua luz transversa.

(E os remendos da linguagem
a despirem o que vestem.)

Abram-se talhos na tarde gris:
grafemas luminares.

No beco da página em branco
freme o lábaro do poema
o rastilho de sílabas
cruas.

(Tão furtivo
que a palavra apenas
esmerilha
seu dorso de lince.)

Algo se rasga
na casca do insondável
(donde a assisto ao tempo
atado à minha ínfima
espessura).

Algo marulha na derme
(e na calha)
do signo manifesto.

Minha terra é o nome
do indomável enigma,
a palavra física incrustada
na fábula.

Minha terra é minha pele.
                  (Sol sanguíneo, p. 15-27)

DO SOPRO

O sopro que intercepta
self dos meninos
                          avança
s águas turvas
e o rasgo
             da mirada.

(Límpido perfil do gesto
atado ao transe.)

O sopro lume
                  e larva
pedra
       sangue
                 flor

face ao que consagra
e nutre,
face ao vário
                 desvario
onde anjos rotos
rezam aos abutres.

Há uma zona
em que os cristais
se partem
sob essa aragem ancestral
do sangue.
Há incêndios na raiz
do gesto. Vestígios
de pólvora nas palavras.
E quando há voz,
é a cicatriz que canta.
              (Sol sanguíneo, p. 33-34)

ODU

               Para Hilda Dias dos Santos

No corpo do elegún
os deuses descem ao sangue súplice.
Retornam ao sal dos vivos.

Os deuses em sua névoa incorpórea.

Retornam da secreta paisagem
do não-tempo.

No vão do sem-forma
Tambores percutem a voz das sombras. 
                        (Sol sanguíneo, p. 109).

TINTA FORTE

Estou ruído na carne
não no símbolo
que é de pedra
e pégaso.

Andaimes de mim
se erguem
sob uma febre
                      onírica
que da memória
                      esplende
aos ossos
e aos glóbulos.

Estou no gume
e basta
o que se alastra
às veias
           e seu esquivo ouro.

Meu rito avança
sobre a linfa.


(Inda que da saga
férrea
        se emoldure
ao couro
a senha do curtume
                           fero.)

Na dor
o real
        desce
ao osso
cru
e esgarçado
como o avesso
a ver
      – se.

As horas
            em sépia
derrotam o cerco
da promessa
tal que do excesso
– essência.

E nem o tenro
                    ser
da água
em módulos
muda
a dor que dói
no sangue
a dor
no impalpável.

O magma da raça
infenso
         ao mangue
transluz
          da canga
                      bruta:
lavas de sol
primal
renga de tambor
tribal
cateretê
babá.


Árduo de transe
e (extrema)
                 espera
desespero
num rap réptil
num latir
              de latas
reino

à flor da pele
da tinta forte
em que me negam.
        (Sol sanguíneo, p. 110-113)