Pra ter uma boa morte

Aparício ergueu-se inseguro como se fosse cair. Seu corpo esguio projetou-se para frente, insustentado. O paletó azul marinho, puído nas mangas, caspento, guarda mais a forma da cadeira. Ao vesti-lo, um grande esforço. É a corcunda que condiciona o olhar pro chão, ou surgiu em razão de?

Sentiu seus pés calçados pelo vulcabrás surrado se deslocarem independentes de sua vontade, entre a sua mesa empoeirada de papéis e a outra, limpa, fotografia de família feliz em cima. Deteve-se, com o coração em sobressalto, antes que pisasse o par de sapatos do mais fino cromo alemão, que sobressaía por debaixo da mesa. Era preciso dizer a quem o portava que tinha vinte cinco anos de funcionalismo, exemplares, sem nenhuma advertência no prontuário. Entretanto, sequer uma promoção, um aumento de vencimentos.

Faz tanto tempo que prometeu à mulher uma atitude, que ontem, enraivecida, ela deu o ultimato:

“ – Ou consegue aumento ou não me encontra mais em casa.”

“ – Olha que eu faço uma tragédia”, ele ameaçou.

“ – Ah! Vaselina. Você não é de nada. Você é de fazer versos...”

Sofreu calado toda a maldade da insinuação. Era mesmo um pacato. Vivia corretamente, sem ousadias, sem grandes voos. Era honesto por conveniência. Seguia os conselhos da sua avó, que amarga dizia: negro para estar certo, tem que estar duas vezes certo.

Aparício morria de ciúmes da mulher. Bonitona que era ainda, nos seus trinta e poucos anos bem vividos, Esmeralda usava o pixaim todo em trancinhas, como vira num livro de figuras africanas. Aparício bem que a preferia de cabelo alisado a ferro, como quando se conheceram na igreja, ela filha de maria, ele congregado mariano. Ela era pudica então, vestido branco abaixo dos joelhos, a musa.

Agora Esmeralda frequentava candomblé, só usava calças justas para valorizar as ancas largas, e decotes cavados que deixavam os seios quase à mostra. Havia até um mulato frajola, e salvo engano, capoeirista, por quem Esmeralda, cansada do desinteresse sexual do marido, andava arrastando a asa.

Porém, Aparício tinha certeza que conseguido o aumento, Esmeralda voltaria a se orgulhar dele. E a gostar dos seus versos. Proporia até que parassem de usar “camisa de venus” (sic) durante a relação sexual, pra que pudessem ter um filho.

A voz do chefe, de um timbre rascante, despertou-o de suas meditações:

“ – Senhor Aparício, o que está fazendo aqui, parado diante da minha mesa, e olhando pro assoalho?”

Fazia tanto tempo que Aparício não encarava o chefe, que mal lhe recordava as feições.

“ – Preciso de um grande favor, doutor Arnaldo”, gaguejou com extrema dificuldade.

O chefe da seção de protocolo já fora bem mais escuro. Era agora mestiço claro, e logo estaria visualmente branco. Fazia questão de dizer que viera de baixo, e chegara àquela invejável posição por meio de esforço próprio. Razão pela qual não acreditava existir racismo contra o negro no Brasil. Havia era muito crioulo preguiçoso, isso sim.

Doutor Arnaldo ouviu o pedido de aumento com um silêncio impaciente. Depois respondeu incisivo:

“ – Impossível. Não posso lhe dar aumento. O senhor é um incapaz. Só sabe fazer versos... Devia me agradecer, por mantê-lo neste emprego.”

No outro dia a manchete do jornal sensacionalista: Negrão muito louco mata a mulher e o chefe.

Num canto de página a matéria pequena, sem fotografia, informava que o criminoso, conhecido pela alcunha de Vaselina, deixara uns versos escritos, antes de também estourar os miolos:

 

Quisera ser forte na vida

Pra ter uma boa morte.

(Cadernos negros 10, p.136-8).

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