Vencidos e degenerados

(excertos)

Nascimento Moraes

Às oito horas da manhã do dia 13 de maio de 1888 a resi­dência de José Maria Maranhense, na Rua São Pantaleão, uma meia-morada de bons cômodos regurgitava de gente. Ele, Ma­ranhense, membro saliente do Clube Artístico Abolicionista Maranhense, era um dos mais ardorosos e salientes cabos-de-guerra do abolicionismo e um dos que mais se expusera pela nobilíssima causa da liberdade, não poupando em favor dela as suas pequenas economias.

Os que lá se achavam naquela gloriosa manhã eram pes­soas de diversas classes sociais, desde o funcionário público e o homem de letras até artistas, operários livres, não faltando vagabundos e desclassificados.

Principiara o rebuliço na noite passada, durante a qual ansiosamente esperaram que chegasse o telegrama transmis­sor da grande e luminosa notícia da redenção dos cativos, de que, há muitos dias, já se vinha falando animados todos por vigorosas esperanças.

Maranhense mandara vir, à noite, uma haste tosca e gros­seira, e a colocara numa das janelas, sustentada na extremida­de inferior pelo parapeito mais acima por grossas cordas que se enrolavam fortemente em dois pregos enterrados na pare­de, dentro da sala. Com alguns reparos que lhe fez, elevou-a à categoria de pau-de-bandeira.

Nela se desfraldaria o pavilhão nacional assim que che­gasse a promissora notícia.

O movimento continuava intenso na residência de Maranhense, como em muitos pontos da cidade: em todas as ca­sas onde moravam abolicionistas decididos e afervorados.

Os vizinhos, curiosos, estavam à janela, apreciando aqui­lo que não compreendiam muito bem...

Nas esquinas com a Rua do Monteiro, em frente da casa de Maranhense, populares comentavam os boatos e notavam os que entravam e os que saíam daquela formidável assem­bleia em que se reuniam tão variados elementos.

Às nove horas, pouco mais ou menos, notou-se maior rebuliço na sala; afluíram muitos casacudos às janelas, ao mes­mo tempo, com sensível curiosidade: era que se aproximava, descendo a rua, João Olivier, jornalista vibrante e orador fluen­te que pela imprensa muito trabalhava em favor dos oprimi­dos.

João Olivier dirigia-se para a casa de Maranhense.

Era um rapaz alto, magro, moreno, rosto largo, olhos ne­gros e vivos, faiscando através das lentes do pince-nez. Enver­gava um fato azul-claro; trazia um colarinho alto, gravata par­da, a borboletear.

[...]

Passou entre filas e penetrou na sala, apinhada de ho­mens e senhoras. Olivier era uma figura simpática e insinuan­te. Seu nome era um florão de pérolas, na época, uma cente­lha. Por isso, à sua presença, quem não lhe vinha ao encontro, compunha-se, voltava-se, para lhe examinar a figura original. Maranhense o levou para um canto da sala e, em voz baixa, lhe falou assim:

– A coisa está demorando. Que achas tu?
– Acho que devemos estar tranquilos. A demora é um nada. Sou capaz de apostar que é hoje que a bomba arrebenta.
– Eu de ânsias estou ficando doente. Acredita que não preguei olhos à noite passada. Este pessoal só me deixou de­pois das duas da madrugada...
– E quem dormiu à noite passada? Nós não dormimos e eles não dormiram.
– Eles?...
– Escravos e senhores.

[...]

– O Pereira e o Freire devem estar aborrecidos, lá no telégrafo, a esperarem... Deixa lá que é uma cacetada... - E depois de alguns instantes, como quem se recorda: – Que faz o teu vizinho, o coronel Patusco?

– Está danado... Temo que ele não resista ao golpe... Para te falar com franqueza, temo mais pela mulher dele. É medo­nha! Irra!

– Horrorosa! ...

Coronel Patusco era o coronel Lousada, a quem Olivier pregou aquele apelido canalha, por causa de suas maneiras e hábitos na sociedade. O povo, porém, ferindo outro alvo, o alcunhara de – Alma Negra.

Lousada era um terrível senhor de escravos, que abalava a cidade com suas torpezas, quase diariamente cometidas, variantes de requintada selvageria. Lousada tinha originalíssimos instrumentos de suplício, tais como: cabos parados com estilhaços de vidros, por onde forçadamente subiam e desciam os escravos, até cortarem inteira e profundamente as mãos: redes com lâminas lacerantes e pregos onde se embalavam, num horrível balanço, aqueles infelizes até se retalharem as carnes e se rasgarem os tecidos das costas e dos flancos; martelinhos para baterem na arcada do peito até o sangue espirrar ou golfar pelo nariz e pela boca; espetos de ferro levavam ao fogo até o rubro, para queimarem os olhos, a língua e os membros dos escravos, que endoideciam nas prisões úmidas e sufocantes do pavimento térreo.

De noite, à placidez mórbida e pavorosa de seu silêncio ouviram, os que moravam nas casas contíguas ao sobrado do coronel Lousada, gemidos surdos que mãos de ferro violentamente estrangulavam na garganta, espanqueamento de cor­pos, de encontro às paredes e às lajes, queixas e ais, impreca­ções de almas desesperadas, rugidos de corações intumescidos pela cólera, brados, pragas e vingança e, frequentemente, uma frase cheia de terror, do terror nascido, repetida com pre­cipitação e fervor, na agonia da dor e de martírio: ai meu senhor! ai meu senhor!

[...]

Olivier colocado com desassombro num dos mais afamados periódicos da província, foi um dos maiores elementos contra a escravidão. E, como se não bastasse a sua ação na imprensa, onde ele, com vigor e até certa violência, doutrinava, repisava o assunto na conversação, descrevendo negras cenas de selvageria desconhecida na capital e que se davam no interior, nas fazendas, e cujas notícias lhe chegavam por intermédio de cartas que raríssimos amigos lhe escreviam de ou que, escravos vendidos e que vinham para a capital, contavam a tremer e espavoridos.

[...]

Maranhense era mulato, mais baixo que alto, e careca. Contava quarenta e tantos anos, grisalho, gordo e simpático. Marceneiro de profissão e estudante nas horas vagas. Tinha decidido gosto pelas letras, pela ciência, por tudo enfim fosse do domínio da inteligência humana. Se bem não lhe fosse possível cultivar o espírito com o trato constante do estudo, em disciplinas regulares, fazia contudo o que estava ainda a altura de suas forças; procurava relacionar-se com os literatos da terra, chegava-se àqueles de quem apregoavam um espírito esclarecido; e, como era inteligente, de uma assimilação fácil, deu força à sua loquacidade. José Maria discutia, argumentava, tinha ideias e pensamentos, e os expunha sempre, defendendo-os, quando se fazia preciso, ajudado do bom senso que sempre tivera. Entusiasta, impressionável, agitador, e cheio de resoluções, entre os abolicionistas do grupo, tomou posição evidente, e sua casa, que já era um ponto de conversação assiduamente frequentado por muitos dos intelectuais da época, tornou-se um dos centros de reuniões de abolicionistas.

Os escravos o consideravam como um dos seus protetores; porque ele era sincero na causa que defendia, eles o procuravam a todo o momento, para tratarem da liberdade deles.

Os abolicionistas estavam preparados para festejar grande e áurea lei, salientando-se entre todos os preparativos, os do Clube Artístico Maranhense, que eram caprichosos, sem igual.

A passeata do Clube devia sair de uma casa, na Rua de Santaninha, onde já se achavam todos os aprestos, ornamentos e dourados que tinham de figurar na “sensacional”, segundo se expressava Santana Reis, um dos mais valentes, inteligentes e prestimosos membros do Clube.

Na Rua de Santaninha já estavam o retrato de José do Patrocínio e os de Nabuco, João Alfredo e outros vultos do gabinete libertador e de gabinetes que o precederam, trabalhando para a liberdade dos negros.

Da casa de Maranhense ainda tinham de ir muitas dúzias de foguetes, de balões, pequenos andores para os retratos, velas, alguns archotes e um retrato da Princesa Isabel, já colocado num andor lantejoulado, trabalho imperfeito quanto às particularidades, mas tratável e completo nas linhas gerais.

Depois de ter recomendado a seus discípulos um transporte cuidadoso de tudo aquilo, como quem diz uma oração, voltou à sala, onde o rebuliço crescia momento a momento com os boatos desordenados que corriam.

Olivier continuava a palrar, saboreando delicioso charuto. Maranhense acendeu o seu e foi-se pensativo, a olhar o movimento da rua, que a mais e mais se aumentava, e a cumprimentar com rasgados cheios os transeuntes.

O telegrama chegou às três horas da tarde.

Os da comissão destacada no telégrafo deram o sinal convencionado, fazendo subir aos ares girândolas e foguetes.

O pessoal de prontidão, na casa de José Maria, respondeu tocando também outras tantas girândolas. A sala do velho abolicionista tremeu de vivas atroadores, que romperam no peito ansioso de toda a assembleia.

As moças correram às cestas de flores e José Maria, com ar marcial, foi postar-se em frente a um retrato de coberto de gaze transparente, colocado na sala, por cima do sofá. Ouviu-se, após, o tocar de foguetes em todos os bairros. Um grupo de populares vindo da Rua do Passeio pela Travessa do Montei­ro desembocou em frente da casa de Maranhense, invadindo-a depois. ­Olivier, a um sinal de José Maria, subiu a uma ca­deira, impondo a sua estatura simpática e atraente, estendeu o braço direito, com a mão aberta, pedindo silêncio. Súbito o burburinho estancou. O orador começou o discurso.

O causeur era um tribuno elegante e veemente. Palavra fácil, fluente, cativante dicção, imagens fortes e cheias de vida, voz áspera, gesto nervoso, dominou o auditório, comoveu-o, entusiasmou-o, lançou a chama encantadora do arroubo, e pe­rorou entre frenéticos e tumultuosos aplausos.

Foi um discurso de conceitos, de pensamentos, sentimen­tal, que tocou ao auge de beleza e forma, quando falou na Prin­cesa Isabel.

Foi neste ponto que Maranhense repuxando a gaze, com o correr do cordel que se lhe ligava, fez aparecer o retrato dela, feito a crayon por um talentoso artista patrício. Uma orquestra composta de conhecidos professores, dirigida pelo clarinetis­ta Evaristo da Conceição, executou um Hino da Liberdade, composição do mesmo Evaristo.

Maranhense não se tinha em si de alegria: a todos abra­çava, atabalhoadamente, derramando uma verbosidade sem fim. Olivier, ufano, chega à janela e fala ao povo que se aper­tava na rua estreita. Nesta ocasião rebenta um grupo de aboli­cionistas, companheiros de Maranhense, rompendo violenta­mente a multidão. Levantou-se novo aranzel: novos discur­sos, novos abraços, José Maria não se contém: lança-se, por sua vez, à janela, e saúda os seus irmãos de luta. Vitor Castelo responde, inflamado, fogoso, sacudindo o chapéu ao ar, num estrondoso viva à Isabel! E em frente da casa de José Maria, e dentro dela, se erguem exaltados ânimos, entusiásticas falas, e perene reina uma indizível e eloquente comunicação de ideias e pensamentos, por muito tempo enfreados e subjugados.

Eram cinco horas da tarde e a cidade fulgia de delírio, ardia na febre ruidosa e empolgante de sugestionadora ale­gria. Pelas ruas cruzavam-se grupos e grupos de escravos, a gritar, loucos de satisfação; outros berravam obscenidades que, como pedradas, iam bater nas janelas dos escravocratas: in­sultos soezes, ofensas terríveis, contra a família dos ex-senho­res que, temendo violências físicas, fechavam as portas, ape­nas acabavam de sair os últimos libertos.

Momentos depois de proclamada a Lei começou a divulgar-se di­a notícia de que uma escrava ao passar pela Rua dos Afogados, dera uma bofetada numa senhora que estava à janela. Esta senhora passara por amarga decepção: viu saírem, portas afora, sem um adeus, desvairados pela comoção da notícia, todos os seus escravos. Diziam os que a conheciam que era mulher má, sedenta de cruéis castigos, e que se apontava, distinta, pela impiedade de sua cólera, pelo arreba­tamento do gênio irascível e impensadas ações.

A arrebatada, que lhe batera no rosto, fora uma das suas escravas. Era uma carafuza ainda nova, farta de carne, sensual, de bem talhadas formas sedutoras, que fascinara o marido da senhora, um velho comendador, bonacheirão, roído de reumatismo, constrangido de achaques próprios de velhice, mas que ainda tinha vista para os atrativos do gozo. As olhadelas furtivas do velho libidinoso deitavam chispas que feriram a retina de D. Amandra. A crioula começou a ser espiada e por vezes maltratada.

Fatos tais eram comuns e provocavam sempre a indignação ­popular. Por isso comentavam a bofetada, com chacotas e sarcasmo pungente.

Provocaram fortes gargalhadas e pilhérias picantes os inesperados cômicos que se deram: cozinheiras que abandonaram ­patrões, sem lhes apresentar o jantar; outras que fa­ziam compras e que se foram com dinheiro e balde. E em muitas casas se passaram cenas deprimentes e tristes: escravos dando expansão à raiva e ao ódio cometeram desatinos de toda a espécie, quebrando móveis e louças, e mais objetos que se lhes deparavam, e deixavam, a blasfemar, o teto onde tão desgraçados dias viveram, atirando ferinos e brutos im­propérios que se iam quebrar, como garrafas e vidros, nas rótulas das janelas, nas portas, e na alma aniquilada dos infelizes ricaços de ontem, que se viram em grande parte, pobres de um momento para outro.

Não obstante, alguns dos ex-senhores não ficaram com­pletamente abandonados porque não eram maus. Ao abrirem as portas, ao franquearem a saída aos de há pouco escravos, ofereceram abrigo aos que quisessem continuar na sua com­panhia. Muitos aceitaram os convites, na maioria os velhos, já inválidos para uma existência laboriosa, e moças que eram crias de muita estima e algum conforto, em geral filhos de es­cravas com senhores moços. Mais que os ricos, sofreram, po­rém, os pobres que tinham escravos. Os pobres presumidos. Faziam economias, com prejuízo de alimentação, e ostenta­vam pequeno cabedal de negros. Os escravos dos pobres so­friam as mais ridículas vexações porque o espírito pequenino dos seus senhores se deliciava em ocupá-los a todo instante com as coisas mais insignificantes, bagatelas, que, à vista da falta de meios neles patentes, tomavam aspectos bem desla­vados e grotescos.

Pertencer à primeira sociedade era possuir, pelo menos, duas ou três cabeças de negros. Imagina-se facilmente o des­consolo em que ficaram esses pequenos proprietários, quan­do se viram, num minuto, abandonados pelos escravos que eles tinham comprado à custa de mil sacrifícios e inúmeras necessidades, aqueles servidores que trabalhavam diariamente à chuva e ao sol expostos, e que lhes garantiam com o produto das energias gastas o pão de cada dia.

(Vencidos e degenerados, p. 27-37)

 

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Zé Catraia contava um fato triste e muito para se lastimar. Achavam-se, naquela tarde à janela de sua residência, na Rua Grande, D. Silvéria Montenegro e sua filha caçula, de nome Silvina, uma criança gentil, faceira e inteligente, que contava apenas sete anos de idade. D. Silvéria estava fula, terrivelmente enfurecida: momentos antes vira sair pela porta afora mais da metade de seus bens, em escravos lustrosos e bonitos que ela se comprazia em quebrar os dentes. Gênio irascível, assoma­da e intempestiva, D. Silvéria não se conteve: deixa o marido, o velho major Montenegro a cismar, cabisbaixo, na varanda, e vai pôr-se à janela com as faces vermelhas, os lábios descora­dos, trêmulos, cabelos arrepanhados, olhos sanguíneos a ver magotes de negros que passavam, à-toa sem destino, a grita­rem pela rua abaixo ou acima numa alucinação bem declara­da. Rebenta no canto da Rua da Mangueira um grupo de abo­licionistas, desfraldando uma bandeira branca, cabeças desco­bertas, a gritarem incessantemente:

- Viva a Liberdade! Viva Patrocínio!

- Viva a Rainha Isabel!

E o pessoal respondia: - Viva! Viva!..

E Silvina, quando o grupo passou à porta, gritou no formoso rasgo infantil:

- Vivou!

Virou-lhe a mão, rápida e violentamente a mãe.

A criança, à força da pancada, caiu banhada em sangue. É que a pedra do anel, um bonito anel de brilhante que D. Silvéria trazia na mão direita vazou um dos olhos, o esquer­do, da infeliz pequenina.

(Vencidos e degenerados, p. 44-5)

 

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