Trechos da biografia de Zumbi dos Palmares

 

Esta história começou exatamente cem anos antes.

Numa noite qualquer do ano de 1597, quarenta escravos fugiram de um engenho no sul de Pernambuco. Fato corriqueiro. Escravos fugiam o tempo todo de todos os engenhos. O número é que parecia excessivo: quarenta de uma vez. Fora também insólito o que fizeram antes de optar pela fuga coletiva armados de foices, chuços e cacetes haviam massacrado a população livre da fazenda. Já não poderiam se esconder nos matos e brenhas da vizinhança – seriam caçados furiosamente até que, um por um, tivessem o destino dos amos e feitores que haviam justiçado.

(Zumbi, p. 7).

 

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[...] Houve, naturalmente, diversas outras razões para a escravidão brasileira, até mesmo a crença num absurdo: os pretos africanos seriam, pela sua própria natureza inferior, destinado pela Providência a escravos dos brancos europeus. Frequentemente a nossa espécie se inclina a crer em absurdos; e frequentemente essas crenças desempenham papel histórico.

Os compradores do açúcar brasileiro eram quase sempre os vendedores de escravos ao Brasil – e, em destaque, capitalistas holandeses. Pode-se mesmo dizer, em suma, que sem os holandeses o Brasil não teria existido como tal. (Teria, no entanto, existido de outra maneira? Os historiadores, em geral, detestam perguntas assim. De minha parte, gosto particularmente desta, pois como verão a certa altura deste livro, Zumbi dos Palmares só passa de vilão á herói num outro Brasil).

Portugal e Holanda eram, portanto, sócios e amigos na exploração do Brasil e da África – daqui tiravam açúcar; de lá, seres humanos. Vai que em 1580, a Espanha se apodera de Portugal e, por tabela, de seus domínios. A Holanda, arquiinimiga da Espanha, vê ameaçados, repentinamente, seus excelentes e vitais negócios. Fez o que faria qualquer merceeiro se lhe viessem tomar a loja: pegou em armas. Em 1624, os navios de guerra da West Indian – que se confundia com o próprio governo da Holanda – apareceram diante de Salvador. Em 1630, diante do Recife.

Esta invasão holandesa – ela duraria 24 anos – trouxe, está claro, inúmeras consequências. Afrouxou, por exemplo, a vigilância de ferro sobre os pretos escravos. Foi como um furacão que deixasse no seu rastro destruição – e desordem.

(Zumbi, p. 12).

 

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A criatura que chamamos Zumbi nasceu livre em qualquer ponto dos Palmares, em 1655. Talvez no começo do ano, quando a água nas cisternas é pesada e morna; talvez no meio ou mesmo no fim, quando o chão está coberto de buritis podres.

Um dia se saberá bastante sobre ele. Milhares de documentos amarelos, difíceis de ler, guardam a história do preto pequeno e magro que venceu mais batalhas do que todos os generais juntos da História brasileira. Esses papéis dormem em Évora, na Ajuda, em Lisboa, Recife e Maceió, aguardando estudos pacientes.

 

[...]

 

Tudo começou com um Brás Rocha que atacou Palmares em 1655 e carregou, entre presas adultas, um recém-nascido. Brás o entregou, honestamente, como era do contrato, ao chefe de uma coluna, e este decidiu fazer um presente ao cura de Porto Calvo. Padre Melo achou que devia chamá-lo de Francisco.

Não podia, naquele momento, está visto, adivinhar que se afeiçoaria ao pretinho.

Se pode imaginar que não foi das piores a infância de Francisco. O padre talvez lhe batesse, como mandava a época, mas não lhe faltou alimento e médico. “Quem dá os beijos, dá os peidos”, dizia o povo. Padre Melo achava Francisco inteligentíssimo: resolveu desasná-lo em português, latim e religião. Talvez olhasse com orgulho o moleque passar com o turíbulo, repetir os salmos.

Francisco apreciava, certamente, histórias da Bíblia. Havia esta, por exemplo: Um sacerdote por nome Eli, velho e piedoso, aceitou na sua casa um menino chamado Samuel. Samuel era obediente e esperto. Certa noite, recolhidos os dois, Samuel ouviu que lhe chamavam: “Samuel! Samuel!” Isso foi antes que a lâmpada de Deus se apagasse no templo do Senhor: ali dormia a Arca de Jeová. Samuel foi até o quarto de Eli: “O senhor me chamou? Estou aqui...” “Não te chamei, filho – respondeu o velho. – Torna a te deitar.” Aconteceu uma segunda vez: alguém, de dentro da noite, chamava o garoto. “Não chamei, meu filho. Torna a te deitar.” Na terceira vez, Eli compreendeu de quem era a voz: “Vai te deitar, e quando te chamarem de novo responde: Fala, porque o teu servo ouve.” Assim fez, e a Voz queria que ele a seguisse; e deixou um recado para o sacerdote: que julgaria a sua casa para sempre, pela iniquidade que ele bem conhecia, porque fazendo-se os seus filhos execráveis, não os repreendeu.

Numa noite de 1670, ao completar quinze anos, Francisco fugiu.

 

[...]

 

Francisco se chamava agora Zumbi.

Onde encontrou esse nome? No Congo e em Camarões, o deus principal se chamava Nzambi; em Angola, diziam ser zombi o defunto, e zumbis, no Caribe, são mortos-e-vivos, criaturas sem descanso, mesmo no Além. Mais uma vez, dependeremos dos papéis históricos para algum dia decifrar o mistério do rebatismo de Francisco: do passado distante, ele zomba de nós.

É mais fácil responder a esta pergunta: por que escravos fugidos mudavam de nome?

Para os povos ágrafos, como eram a maioria dos africanos trazidos para cá, e os indígenas, naturais daqui, o nome é uma coisa absolutamente vital. Na Senegâmbia, uma criança só era gente depois que seu pai lhe gritava ao ouvido, no meio do mato, o nome que lhe queria dar. [...]

Era, pois, uma violência extra o que faziam os traficantes europeus ao comprarem um negro: lhe davam um nome cristão. Não o faziam por maldade: precisavam esvaziar o africano de sua cultura. [...]

O tráfico separava, para sempre, as famílias. [...] funcionando como liga entre pessoas desenraizadas tão violentamente. As autoridades proibiam ajuntamentos de pretos da mesma terra; fazendeiros não compravam mais de dois pretos da mesma “raça”: pavor de que voltassem a ser gente.

 

[...]

 

Francisco, retornando a Palmares, com quinze anos, passou a se chamar Zumbi. E constituiu, livremente, sua família – um pai, irmãos, tias e tios. O principal destes se chamava Ganga Zumba.

Ganga Zumba, que chegou a Palmares no tempo da invasão holandesa, era, ao contrário de Zumbi, um africano alto e musculoso. Tinha, provavelmente, temperamento suave e habilidades artísticas – como, em geral, os nativos de Allada, nação fundada pelo povo ewe na Costa dos Escravos.

Em 1670, quando Zumbi voltou, Palmares eram dezenas de povoados, cobrindo mais de seis mil quilômetros quadrados. Trezentos anos depois, nomes sonoros saltam dos papéis históricos: Macaco, na Serra da Barriga (oito mil moradores); Amaro, perto de Serinhaém (cinco mil moradores); Subupira, nas fraldas da Serra da Juçara; Osenga, próximo do Macaco; aquele que mais tarde se chamou Zumbi, nas cercanias de Porto Calvo; Aqualtene, idem; Acotirene, ao norte de Zumbi (parece ter havido dois Acotirenes); Tabocas; Dambrabanga; Andalaquituche, na Serra do Cafuxi; Alto Magano e Curiva, cerca da atual cidade pernambucana de Garanhuns. Gongoro, Cucaú, Pedro Capacaça, Guiloange, Una, Catingas, Engana-Colomim... Quase trinta mil viventes, no total.

(Zumbi, p. 27-30).

 

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Impossível dizer o que tinha em mente: os negros, como os índios, são mudos para a História. Tinha medo, talvez, de que o inimigo se nutrisse da capitulação de Ganga Zumba e – bem-informado, agora, sobre as defesas de Palmares – viesse, com a ajuda dele, assestar o golpe final. Pode-se presumir, também, que Zumbi já houvesse tomado uma certa decisão – mas era cedo, ainda, para revelá-la.

Zumbi mandou degolar quem tentasse se mudar para Cucaú. Aumentou o exército, incluindo nele, por bem ou por mal, todos os homens adultos de Palmares. Transferiu mocambos, desativou alguns e redistribuiu parte da população segundo critérios militares. Organizou um sistema de espionagem e apoio no mundo do açúcar. Transformou Macaco numa gigantesca fortaleza. A ditadura militar vestia Palmares para a guerra final.

Enquanto isso, o que acontecia com Ganga Zumba em Cucaú?

As terras não eram más, nem as águas. O problema era a vizinhança: os pretos se sentiam inseguros, inteiramente nas mãos dos senhores de engenho e dos capitães-do-mato. O governador mandara cercá-los, todo o tempo, por índios e mamelucos hostis. Não se cumprira quase nada do tratado de paz. Grupos de provocadores queimavam as roças dos pretos e, com pouco, penetravam na aldeia – sem licença de Ganga Zumba – para “reaver escravos fugidos”. O Grande Chefe se despedia, uma a uma, de suas ilusões.

 

[...]

 

Zumbi diferiu, entretanto, de muito desses campeões da guerra numa coisa: não combateu para conquistar territórios e glórias. Foi, no entanto, um guerreiro implacável, incapaz de hesitar diante do sangue e do fogo. Desde que se sentou no trono que fora de Ganga Zumba, na praça central da Cerca Real do Macaco, seu corpo pequeno e magro se transformou numa flecha apontada para o coração do mundo escravista. Ele transformou o povo inteiro de Palmares – quase trinta mil pessoas – num arco retesado.

(Zumbi, p. 35-37).

 

****

Zumbi dos Palmares vencera dezenas de batalhas aplicando com engenho as regras da guerra do mato. A única vez que buscou o combate frontal, em posição fixa, fracassara miseravelmente. Perdera talvez para sempre o domínio da serra da Barriga, onde começava a se estabelecer agora – entre brigas e equívocos – a chusma de vencedores: bandeirantes, comandantes militares e aristocratas de Pernambuco e Alagoas.

Então dividiu seus homens (cerca de mil; a conta de Jorge Velho parece exagerada de propósito) e voltou à guerrilha. Povo, não tinha mais. Um dos seus bandos, sob chefia de certo Antônio Soares, foi emboscado perto de Penedo. Prenderam-no e o enviaram sob forte guarda para o Recife.

No caminho, a guarda se encontrou com a bandeira de André Furtado. Brigaram pela posse do preso importante. André Furtado o sequestrou, para lhe aplicar, por longo tempo, violentas torturas: queria o esconderijo de Zumbi. Nada conseguiu, até que mudou de tática: lhe garantia a vida e a liberdade se cooperasse.

Zumbi confiava em Soares, e quando este lhe meteu a faca na barriga se preparava para um abraço. Seus olhos devem ter brilhado, então, de estupor e desalento. Seis guerrilheiros apenas estavam com ele naquele momento – cinco foram mortos imediatamente pela fuzilaria que irrompeu dos matos em volta. Zumbi sozinho matou um e feriu vários.

Foi isso nas brenhas da serra Dois Irmãos, por volta de cinco horas da manhã de 20 de novembro de 1695.

No dia seguinte, o cadáver chegou a Porto Calvo.

Não estaria bonito de ver. Tinha quinze furos a bala e inumeráveis de punhal. Lhe tinham tirado um olho e a mão direita. Estava castrado, o pênis enfiado na boca. Banga, único sobrevivente da guarda de Zumbi, os escravos Francisco e João e os fazendeiros Antônio Pinto e Antônio Sousa testemunharam, perante os vereadores, que aquela pequena carcaça, troncha e começando a feder, era, indiscutivelmente, o temível Zumbi dos Palmares.

Depois de lavrado o “auto de reconhecimento”, a Câmara mandou separar a cabeça – seguiria só para o Recife, acondicionada em sal fino. Lá chegando, mandou o governador espetá-la na ponta de um pau comprido, na praça principal|: curtissem os brancos sua merecida vingança e vissem os pretos que não era imortal.

Muitos anos ela ficou ali, ao sol e à chuva, alta no coração do mundo do açúcar.

(Zumbi, p. 47).

 

As Pérolas de Cadija

 

Era uma vez uma menina chamada Cadija. Sua mãe havia morrido e agora ela tinha de carregar seu irmãozinho nas costas. Passado um ano, seu pai resolveu casar de novo e então Cadija ganhou uma madrasta.

Cadija pensou que fosse ser feliz com ela. Mas sabe-se lá por que a madrasta não gostou dela. Já tinha uma filha do primeiro casamento e talvez pensasse:

“Quando meu marido morrer, essa Cadija vai ficar com tudo. E minha filha verdadeira com nada.”

Daí, toca a perseguir a enteada. Dava trabalhos impossíveis para a coitada. Acordava-a no meio da noite:

– Anda pegar água. Anda varrer o pátio. Anda cozinhar inhame.

Certa manhã seu ódio pela enteada chegou ao máximo. Tirou Cadija da cama aos berros:

– Vá lavar esta colher! E só serve com água do mar. Não volte aqui com ela suja.

Era um jeito de matar Cadija, pois até Dakar onde ficava o mar, eram cinco dias e cinco noites de horrorosos caminhos.

– Quem vai cuidar de meu irmãozinho? – perguntou a menina.

– Carrega contigo – respondeu a mulher com um sorriso mau. – Ou pensa que aqui você tem criada? Tem cada uma!

Cadija partiu. Atravessou rios e matas.

Só faltava atravessar urna savana para chegar a Dakar. A comida acabara e as duas barrigas, a dela e a do irmãozinho, começavam a roncar.

– As-Salam! (A paz esteja sobre você) – cumprimentou um cameleiro.

– As-SaIam! – respondeu ela.

– Está pensando em atravessar a savana sozinha? – perguntou o homem.

– Estou.

– Não faça isso. Sabe quem mora aí? O Quibungo.

– Quem é? – perguntou Cadija.

– Um monstro com um buraco na parte de trás do pescoço. Te engole. Depois não diz que não te avisei.

– E se eu não encontrar com ele? Sempre fui uma menina de sorte...

– Ah! - falou o cameleiro, atirando o manto para as costas.

– Se não encontrar o Quibungo vai encontrar um monstro pior, o Abutre Mortal, também chamado de Arranca-Corações. Ou um ou outro.

Desanimada, Cadija sentou numa pedra. De repente sentiu uma brisa no rosto e nas mãos. E ouviu uma voz:

– Eu te ajudo. Deixe seu irmãozinho esperando aqui. No lugar dele ponha esta pedra. Se você encontrar o Quibungo, já sabe o que fazer.

Era um iska, o djin que mora no vento.

– E se ao invés do Quibungo eu encontrar o Abutre Mortal?

– Aí não posso fazer nada – respondeu o iska. – Ou um ou outro.

Com o pedregulho nas costas, Cadija entrou na savana. No segundo dia de viagem apareceu um guerreiro lindo. Tinha arco e flecha e falou com toda gentileza:

– Onde vais, flor do meu encanto?

– A Dakar, lavar esta colher, que minha madrasta me mandou.

– E essa criança que você leva aí? Deixa ver.

O guerreiro se abaixou para fazer gracinha. No seu pescoço apareceu o buraco escuro que não tinha fim. Cadija rapidamente levou as mãos às costas e virou o pedregulho lá dentro.

O Quibungo mastigou e morreu.

Em Dakar, um mendigo que estava na porta da mesquita pediu:

– Me ajude, pelas barbas do profeta...

– Se eu pudesse... – respondeu ela.

– Só tenho esta colher.

– Eu sei – disse o mendigo. – Espere anoitecer. Só lave a colher quando aparecer a lua. Você vai ver.

Cadlja assim fez. Foi meter a colher na água e ela voltar cheia de pérolas. E assim muitas vezes, até encher a canga. Estava rica.

Ao passar de volta pela savana, ouviu um ronco vindo de uma caverna. Devia ser o Abutre Mortal, o Arranca-Corações.

Pegou o irmãozinho e foi para casa. Tinham se passado oito dias e a madrasta, feliz, achava que ela não voltaria.

Abrindo o saco de pérolas, Cadija fez a divisão. A madrasta queria mais. Puxou a menina para o quarto:

– Onde foi que você arranjou esta riqueza? Temos bruxa aqui em casa e eu não sabia!

– Foi no mar – respondeu. – Meti a colher e foi só.

A mulher fingiu agradecer. E falou para a sua filha verdadeira:

– Se essa boboca ficou rica, também ficarei. Posso carregar mais pérolas que vinte Cadijas juntas.

Pegou um camelo e partiu. Ordenou aos criados que preparassem uma festa para quando voltasse. Mandou os cozinheiros fazerem cuscuz, seu prato preferido. Na manhã do décimo dia, porém, ela não voltou. De tarde, também não. Quando foi de noitinha e os convidados já iam embora, a filha verdadeira decidiu:

– Minha mãe já deve estar chegando. Vamos comer ou o cuscuz estraga.

Quando ela abriu o panelão, ficou branca de susto. Dentro do cuscuz havia um coração. Ainda estava batendo e ela desmaiou, pois sabia de quem era.

Quanto a Cadija, pegou seu irmãozinho e foi morar bem longe dali.

Esta é a história de Cadija, uma menina negra e muçulmana do Senegal. Uma história semelhante a outras, de outros povos, em que há fadas e madrinhas más. Só que, aqui, a fada existe na forma de um anjo da guarda, o djin, e os perigos que a menina enfrenta suscitam os mistérios das culturas milenares que sobreviveram apesar da colonização.

(Gosto de África, histórias de lá e daqui, p. 3-8).

 

O Filho de Luísa

 

Uma boa história pode começar de qualquer maneira. Esta começa com uma quitandeira da Bahia.

Chamava-se Luísa O sobrenome deixo para dizer depois.

Luísa era pequena, bem negra e tinha lábios roxos – diferente de quase todo mundo, que tem lábios cor-de-rosa. Outra coisa: a maior parte dos negros da Bahia, naquele tempo, escrava. Luísa não. Por quê?

Não sei. Quando começou esta história, ela já era livre – nada, nada sabemos dela antes disso.

Luísa também não era cristã, Era um problema? Para as autoridades era. Tinham receio de negros que não fossem cristãos. “Se acreditam em outros deuses”, pensavam, “podem pedir ajuda a eles e esses deuses vão ajudá-los contra nós. É melhor, aqui na Bahia, só permitir, o deus cristão.”

Para Luísa, porém, ter outra religião não era problema.

Ela achava que todo mundo pode ter a sua. Quanto mais religiões e deuses, melhor. Quem estava certo nesse ponto? Não sei. Queria apenas contar urna história e já estou enredado em discussão.

Luísa tinha outra estranheza. Quer dizer, que se considerava estranheza.

Namorava negros e brancos. Não olhando a cor, se apaixonava dia sim, dia não. Tinha uma queda especial por sujeitos de mão cabeluda.

– Beleza não põe mesa – dizia para as amigas. – Tem mão cabeluda? É meio caminho andado.

Uma tarde veio à quitanda um certo Oliveira.

Luísa o primeiro que viu foram as mãos. Servia. Uma hora que Luísa saiu do balcão para pegar uns tomates, Oliveira sapecou-lhe um beliscão no pescoço. Luísa respondeu com uma ombrada que jogou Oliveira no chão. Era a paquera da época. Naquele mesmo dia começaram a namorar firme. Aí não teve mais beliscão nem ombrada.

Não há mal que sempre dure. Nem bem. Luísa fazia parte de uma sociedade secreta de negros malês. Eram negros de religiões não cristãs, que preparavam uma revolta pela liberdade de todos os escravos da Bahia.

Religiões não cristãs, na verdade, eram duas: a mulçumana e o candomblé. Luíza era mulçumana e simpatizava com o candomblé, de forma que era a pessoa ideal para o movimento.

Em fevereiro de 1835, estourou a revolução dos malês. Luísa foi presa e comeu o pão que o diabo amassou. Castigada com duzentas chibatadas, teve hora que ela desejou ter morrido. Pensou que ia apodrecer na cadeia. Mas, um belo dia, quem veio soltá-la? Oliveira. Ele era branco e foi ao juiz com uma conversa comprida: ia se responsabilizar pela quitandeira e coisa e tal.

Luísa, é claro, ficou muitíssimo agradecida. Foram andando pela rua e ela contou uma coisa para ele: estava grávida e tinha sido uma sorte não perder a criança. Oliveira também contou uma coisa: era jogador profissional de cartas. Estava vendo aquele chapéu de pissandó, aquela medalha de São Judas Tadeu de ouro trinta quilates? Tinha ganho no sete-e-meio.

Quando fez nove meses, nasceu um menino.

Batizaram-no Luís, mas não vou dizer o sobrenome.

Era negro fosco como Luísa e tinha a testa alta e o nariz fino como Oliveira. Não sei se disse que ele era português. Oliveira gostava sinceramente de Luísa. Então, dando sorte no jogo, abriu uma Loja para ela vender doces de alfenim.

Luísa continuava agradecida. Jurou que não ia mais se meter em revolução. Em troca, Oliveira jurou que ia procurar trabalho honesto e largar os ases e os curingas.

Nenhum dos dois cumpriu o prometido. Um dia estourou nova revolução de malês. Luísa combateu e voltou a ser presa. Oliveira arrumou uma dívida grande no jogo. Aí, pegou o filho:

– Vou te apresentar a um velho amigo, no cais da Ribeira. Quando se aproximaram desse amigo, falou: “Esse é um filho, que te falei”. Piscaram o olho. O homem, zaque! Botou algemas no garoto.

– Pai, manda ele me soltar! – pediu Luisinho.

Oliveira foi escapulindo de mansinho:

– Perdão, meu filho. Mas foi tua mãe que mandou te vender.

Você ainda vai ser feliz.

Luisinho, acorrentado no porão, chorou até o Rio de Janeiro.

Os anos passaram. Do Rio, Luís foi vendido pra São Paulo. Subiu a pé, acorrentado pelo pescoço, a Serra do Mar. Era inteligente e determinado como a mãe – que, agora posso dizer, se chamava Luísa Mahin. O sofrimento da escravidão não o destruiu. Uma das suas tarefas era estudar com os filhos do senhor.

Aproveitou para aprender o que eles tinham preguiça de aprender.

Se tornou rábula, que quer dizer advogado sem diploma.

Começou provando no tribunal que tinha direito à liberdade, pois era filho de uma mulher livre. Em seguida, iniciou – junto com outros estudantes e jornalistas – a Campanha Abolicionista.

Conseguiu, ele sozinho, libertar mais de mil escravos, provando na Justiça que eles tinham direito à liberdade porque tinham sido escravizados depois da proibição do tráfico. Seu nome e sobrenome:

Luiz Gama.

Um dia, voltou à Bahia e procurou o pai. Tinha morrido. Procurou a mãe. Não acreditou nunca que ela o tivesse vendido. Luísa tinha partido. Mas o nome de Luís Gama ficou, para sempre, na História do Brasil, como uma figura pioneira da Campanha Abolicionista.

(Gosto de África: histórias de lá e daqui, p. 9-14).

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