A Negra
Teus olhos, ó robusta criatura,
Ó filha tropical!
Relembram os pavores de uma escura
Floresta virginal.
És negra sim, mas que formosos dentes,
Que pérolas sem par
Eu vejo e admiro em rúbidos crescentes
Se te escuto falar!
Teu corpo é forte, elástico, nervoso.
Que doce a ondulação
Do teu andar, que lembra o andar gracioso
Das onças do sertão!
As lânguidas sinhás, gentis, mimosas,
Desprezam tua cor,
Mas invejam-te as formas gloriosas
E o olhar provocador.
Mas andas triste, inquieta e distraída;
Foges dos cafezais,
E no escuro das matas, escondida,
Soltas magoados ais...
Nas esteiras, à noite, o corpo estiras
E com ânsias sem fim,
Levas aos seios nus, beijas e aspiras
Um cândido jasmim...
Amas a lua que embranquece os matos,
Ó negra juriti!
A flor da laranjeira, e os níveos cactos
E tens horror de ti!...
Amas tudo o que lembre o branco, o rosto
Que viste por teu mal,
Um dia que saías, ao sol posto,
De um verde taquaral...
(Noturnos 1882).
As Velhas Negras
A Mme. Aline de Gusmão
As velhas negras, coitadas,
Ao longe estão assentadas
Do batuque folgazão.
Pulam crioulas faceiras
Em derredor das fogueiras
E das pipas de alcatrão.
Na floresta rumorosa
Esparge a lua formosa
A clara luz tropical.
Tremeluzem pirilampos
No verde-escuro dos campos
E nos côncavos do val.
Que noite de paz! que noite!
Não se ouve o estalar do açoite,
Nem as pragas do feitor!
E as pobres negras, coitadas,
Pendem as fontes cansadas
Num letárgico torpor!
E cismam: outrora, e dantes
Havia também descantes,
E o tempo era tão feliz!
Ai! que profunda saudade
Da vida, da mocidade
Nas matas do seu país!
E ante o seu olhar vazio
De esperanças, frio, frio
Como um véu de viuvez,
Ressurge e chora o passado
- Pobre ninho abandonado
Que a neve alagou, desfez ...
E pensam nos seus amôres
Efêmeros como as flôres
Que o sol queima no sertão...
Os filhos quando crescidos,
Foram levados, vendidos,
E ninguém sabe onde estão.
Conheceram muito dono:
Embalaram tanto sono
De tanta sinhá gentil!
Foram mucambas amadas,
E agora inúteis, curvadas,
Numa velhice imbecil!
No entanto o luar de prata
Envolve a colina e a mata
E os cafezais em redor!
E os negros, mostrando os dentes,
Saltam lépidos, contentes,
no batuque estrugidor.
No espaçoso e amplo terreiro
A filha do Fazendeiro,
A sinhá sentimental,
Ouve um primo recém-vindo,
Que lhe narra o poema infindo
Das noites de Portugal.
E ela avista, entre sorrisos,
De uns longínquos paraísos
A tentadora visão...
No entanto as velhas, coitadas,
Cismam ao longe assentadas
Do batuque folgazão...
(Agir,1967)
A Sesta
Na rêde, que um negro moroso balança,
Qual berço de espumas,
Formosa crioula repousa e dormita,
Enquanto a mucamba nos ares agita
Um leque de plumas.
Na rêde perpassam as trêmulas sombras,
Dos altos bambus;
E dorme a crioula de manso embalada,
Pendidos os braços da rêde nevada
Mimosos e nus.
A rêde, que os ares em 'tôrno perfuma
De vivos aromas,
De súbito pára, que o negro indolente
Espreita lascivo da bela dormente
As túmidas pomas.
Na rêde suspensa dos ramos erguidos
Suspira e sorri
A lânguida môça cercada de flôres;
Aos guinchos dá saltos na esteira de cores
Felpudo sagüi.
Na rêde, por vêzes, agita-se a bela,
Talvez murmurando
Em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
Que triste colono por noites formosas
Descanta chorando.
A rêde nos ares de nôvo flutua,
E a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
De negros cativos os cantos magoados
Soluçam no ar.
Na rêde olorosa, silêncio! deixai-a
Dormir em descanso! ...
Escravo, balança-lhe a rêde serena;
Mestiça, teu leque de plumas acena
De manso, de manso ...
O vento que passe tranqüilo, de leve,
Nas fôlhas do ingá;
As aves que abafem seu canto sentido;
As rodas do engenho não façam ruído,
Que dorme a Sinhá!
(Agir,1967)
Canção
A Bernardino Machado
I
Mostraram-me um dia na roça dançando
Mestiça formosa de olhar azougado
Co’um lenço de cores nos seios cruzado,
Nos lobos da orelha pingentes de prata.
Que viva mulata!
Por ela o feitor
Diziam que andava perdido de amor.
II
De entorno dez léguas da vasta fazenda
A vê-la corriam gentis amadores,
E aos ditos galantes de finos amores,
Abrindo seus lábios de viva escarlata,
Sorria a mulata,
Por quem o feitor
Nutria quimeras e sonhos de amor.
III
Um pobre mascate, que em noites de lua
Cantava modinhas lundus magoados,
Amando a faceira de olhos rasgados,
Ousou confessar-lho com voz timorata...
Amaste-o mulata!
E o triste feitor
Chorava na sombra perdido de amor.
IV
Um dia encontraram na escura senzala
O catre da bela mucamba vazio:
Embalde recortam pirogas o rio,
Embalde a procuram nas sombras da mata.
Fugira a mulata,
Por quem o feitor
Se foi definhando, perdido de amor.
(1870)
O Juramento do Árabe
A Teixeira de Queirós
Baçus, mulher de Ali, pastôra de camelas,
Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrêlas,
Wail, chefe minaz de bárbara pujança,
Matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança;
Corre, célere voa, entra na tenda e conta
A um hóspede de Ali a grave e inulta afronta.
"Baçus, disse tranqüilo o hóspede gentil,
"Vingar-te-ei com meu braço, eu matarei Wail."
Disse e cumpriu.
Foi esta a causa verdadeira
Da guerra pertinaz, horrível, carniceira
Que as tribos dividiu. Na luta fratricida
Omar, filho de Amru, perdera o alento e a vida.
Amru que lanças mil aos rudes prélios leva,
E que em sangue inimigo, irado, os ódios ceva,
Incansável procura, e é sempre embalde, o vil
Matador de seu filho, o tredo Muhalhil.
Uma noite, na tenda, a um môço prisioneiro,
Recém-colhido em campo, o indômito guerreiro
Falou severo assim:
"Escravo, atende, e escuta:
"Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta,
"Em que vive o traidor Muhalhil, dize a verdade;
"Dá-me que o alcance vivo, e é tua a liberdadel"
E o moço perguntou:
“É por Alá que o juras?”
- Juro, o chefe tornou –
“Sou o homem que procuras!
“Mulhalil é o meu nome, eu fui que espedacei
“A lança de teu filho, e aos pés o subjuguei!”
(Amru volveu: - És livre, Alá seja contigo!)
Na Roça
Ao Dr. Luís Jardim
Cercada de mestiças, no terreiro,
Cisma a Senhora Môça; vem descendo
A noite, e pouco e pouco escurecendo
O vale umbroso e o monte sobranceiro.
Brilham insetos no capim rasteiro,
Vêm das matas os negros recolhendo;
Na longa estrada ecoa esmorecendo
O monótono canto de um tropeiro.
Atrás das grandes, pardas borboletas,
Crianças nuas lá se vão inquietas
Na varanda correndo ladrilhada.
Desponta a lua; o sabiá gorjeia;
Enquanto às portas do curral ondeia
A mugidora fila da boiada...