Angustia de não ser nada

 

Este meu eu sangrando madrugada

Vai salpicando os tempos de vermelho,

Em cada mutação em que me espelho

Vejo a angustia de não ser nada.

 

Ao desmanchar-se em carnes meu joelho

Sinto gosto de tardes na alvorada,

Lembro criança descalcificada

Carregando o seu tísico Aparelho.

 

A geração dos meus tombou falida.

Sem destino hoje vou de queda em queda

Como tudo que é triste nesta vida.

 

Se sou homem, não sei... sei que entre abrolhos

A existência num mar de pedra

Vendo o mundo encalhado nos meus olhos.

(As gestas Líricas da negritude, 1967, p. 19).

 

****

 

Balada Negra

 

Brasil!

Oh! Brasil!

Pouso dos ideais que regeneram.

Sonho eucarístico dos povos livres,

Acalanto de amor e de bondade...

Deixai correr em vossas artérias

O plasma fecundo e generosos

De quantos saibam amar a liberdade

 

O negro não pode continuar estagnado,

Sem a hematose da cultura

Que alimenta e vivifica os homens.

 

O negro, nas vossas articulações ascensionais,

Não é para ser tido unicamente

Como graxa lubrificadora;

Não deve ser visto apenas,

Como substrato básico, como húmus,

Que, no coração das terras,

Tece tapete verde

De saudáveis florações...

O negro, antes de tudo, é algo vivo

Nas diástoles humanas,

Como todas as coisas

Que lembram as obras do criador

O negro não é incriado.

Não é objeto escárnio, comiseração, uso doméstico,

Ou uma peça à parte do contexto social.

Deixai, pois, Brasil,

Que sois ainda o ideário apostólico de Futuro,

Que as gerações negras introduziram

Em todas as vossas células o oxigênio restaurador [...]

 

De sua pureza e ingenuidade,

Para ativar germinações de idéias novas.

 

O Colosso do Norte poreja sangue

E o ódio transforma-lhe a história

Num pão amargo.

 

Brasil!

Vivificai-o com o vosso exemplo!

 

O coração do Continente Negro

Está espumando de pavor e medo,

E a morte fratricida

Instalou-se em seu lugar.

 

Brasil!

Socorrei-o enquanto é tempo

 

Os pés da África têm o calcanhar

Apodrecido e seu sofrimento é a grande dor da

Humanidade.

 

Brasil!

Que esperais mais que aconteça?

 

Pois bem

Deixai, Oh! Brasil!,

Que a ternura do negro

Acaricie a rigidez de nossas estruturas

de ferro e de cimento;

deixai que esse bálsamo

se ofereça

(Gestas líricas da negritude, 1967, p. 23).

 

Canção do silêncio

Senhor!

Diminui as distâncias entre os homens

É muito triste o silencio a dois.

As legiões silenciosas se arrastam

Pelos caminhos da incerteza

Meus irmãos de cor,

Com as faces negras como a beleza

Imortal das grandes noites

Estão cercados de silêncio

- e o silêncio é frio que gela a todos nós.

 

Ó meus irmãos de viagem!

Ó irmãos de angustia!

Queremos semear a paz

Para a colheita de risonho amanhecer...

Queremos ver o mundo

Com olhos de alegres sonhos acontecidos.

Mas como podemos?

Somos todos irmãos de sofrimento.

 

A solidão da dor, da fome, da desgraça

Envolve-mos a todos

Em andrajos de silêncio...

Para senti-la

Bastará que sejamos irmãos.

(As gestas Líricas da negritude, 1967, p. 27)

 

****

 

Florão dos mocambos

Negra, formosa flor dos meus mocambos,

Rosa do sofrimento das senzalas,

Ébano de mil sonhos cor de jambos,

Em cuja face o próprio amor exalas.

Por teu corpo queimado, por tuas falas

Não há quem se não ponha de olhos bambos;

Reis, por ti, tornaram-se molambos

Deuses, por teu olhar, rolam nas valas.

 

Monja tostada, de alma hospitaleira.

Enquanto escrava, foste mãe; enquanto

mãe, foste, dentre tantas, a primeira,

- 0h, langor africano, que acalanto! –

A ser berço da gente brasileira...

Que, p’ra vê-la feliz, sofreste tanto.

(As gestas Líricas da negritude, 1967, p. 39)

 

 

Lenda

 

Certa vez um negro.

O negro habitava um rancho feito de flores

Coberto de estrelas, luas e sóis...

Porem faltava luz na choupana do negro...

Depois...

Depois...

O negro ansiou por uma casa de tijolo

Caiada de branco e na cidade

Que fosse mais linda que o rancho

Coberto de flores, estrelas, luas e sóis...

Somente

Unicamente

Exclusivamente para si.

Mas que mania essa do negro!

E queria a terra

E da terra o prazer da carne

O seu prazer da vida

E na vida o prazer de satisfazer a sua imagem

A que o negro chamou de homem

O Homem fez de si próprio um altar

Para a auto-contemplação

E o amor o iluminava por inteiro

Com a sua chama tremeluzente

Enchendo-o de incertezas e de insatisfações.

O Homem que julgava o amor infinito

Viu-o caber todinho no seu coração...

 

E ficou triste para sempre.

(As gestas Líricas da negritude, 1967, p. 47)

 

****

 

Banzo

 

(Ao meu irmão Patrice Lumumba)

 

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Trago em meu corpo a marca das chibatas
como rubros degraus feitos de carne
pelos quais as carretas do progresso
iam buscar as brenhas do futuro.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh'alma
um deserto de dor e de descrença
anunciando as tragédias de Lumumba.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Do fundo das senzalas de outros tempos
se levanta o clamor dos meus avós
que tiveram seus sonhos esmagados
sob o peso de cangas e libambos
amando, ao longe, o sol das liberdades.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu sinto a mesma angústia, o mesmo banzo
que encheram, tristes, os mares de outros séculos
por isto é que ainda escuto o som do jongo
que fazia dançar os mil mocambos...
e que ainda hoje percutem nestas plagas.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Balouça sobre mim, sinistro pêndulo
que marca as incertezas do futuro
enquanto que me atiram nas enxergas
aqueles que ainda ontem exploravam
o suor, o sangue nosso e a nossa força.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh'alma
um deserto de dor e de descrença
anunciando as tragédias de Lumumba.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Do fundo das senzalas de outros tempos
se levanta o clamor dos meus avós
que tiveram seus sonhos esmagados
sob o peso de cangas e libambos
amando, ao longe, o sol das liberdades.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu sinto a mesma angústia, o mesmo banzo
que encheram, tristes, os mares de outros séculos,
por isto é que ainda escuto o som do jongo
que fazia dançar os mil mocambos...
e que ainda hoje percutem nestas plagas.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Balouça sobre mim, sinistro pêndulo
que marca as incertezas do futuro
enquanto que me atiram nas enxergas
aqueles que ainda ontem exploravam
o suor, o sangue nosso e a nossa força.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.

(Banzo, 1965)

 

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Lamento Negro
(Fragmento)

 

Eu sinto em minhas veias
o grito dos cafezais.
Enxergo em minhas mãos a sombra
dos meus irmãos
vergastados pelo chicote
dos senhores da terra.
Aqueles que carregam o Brasil nas costas
não têm túmulos
nem legendas;
seu sono não é velado,
seu nome ninguém conhece.
Hoje eles seguem a sina
de uma sorte inglória...
de um destino obscuro.
Como as grandes noites
que se debruçam no parapeito
do tempo, para espiar o mundo,
a minha raça vem contemplando
e trabalhando para a ventura alheia,
debruçada na grande noite
do desespero.
Hoje, se o progresso despeja-se
pelos jardins do meu tempo,
a Pátria que agora é minha
chora prantos de café.
A pátria de hoje
É um pedaço de tristeza
e de soluço dos meus avós,
atirada pelas tumbas sem legendas.
Os meus ancestrais
foram vassalos dela...
escravos dela
e se esqueceram de viver.
A grandeza da minha terra
tem seus pés fincados
na alma da minha gente,
na fome da minha gente,
oculta nos presídios,
nos mocambos, nas favelas,
na hemoptise que escreve com sangue
a sorte da minha raça.
Não mais farei versos bonzinhos
para o agrado dos meus novos senhores.
Escuta, "Capitão do Mato":
Daqui por diante
só cantarei o destino da gente
que estua em meu sangue de negro.
Meu poema terá o gosto amargo
do desespero do meu povo.
[...]
Se a turbulência das praças
arrastarem as multidões
amotinadas pela fome
lá estará o meu grito de rebeldia.
Ser negro é sentir a pujança telúrica
das raças infelizes.
Senzalas, ritos, cafezais
são símbolos de ontem
que relembram escravidão.
Favelas, salários, sindicatos,
são emblemas de agora, chicoteando
o rosto de meus irmãos. [...]

(Banzo, 1965).

 

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