Calunga Lungara
Vou pôr em palavras
o que não é possível.
São águas-palavras
que se dissolvem.
É de Calunga que falo.
Pode ser grande ou
pequeno depende
de quem o atravessou.
Seu nome
muda com as línguas.
Em umas mata
em outras é oceano.
Nele está viajando
quem não tem corpo.
Nós somos marujos
em terra de romaria.
Calunga anda a noite
estudando os sonhos.
Acompanha marcas
presas na poeira.
Traz medos de presente
medos de família
O maior não mostra
que até ele morreria.
Eu pus em palavras
o que não era de falar.
O que se diz não é Calunga.
(A Roda do mundo, 1996, p. 30-31)
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Orfeu
Sou eu que marco a cadência.
Geraldo Teodoro Pereira.
1
o carnaval pertence
ao sábado
com narrativas de vagões
mortos sobre o avô
morto
spirituals
na vitrola sedan
em 78 45 33 16
rotações
o carnaval muda
em sede que se arruma
2
a tarde amadurece
no ar a alegria das mangas
a esperança não
no pátio
a sombra das vigílias
o gato absurdo
o cabelo cede à vida
ondulação imperceptível
a esperança não
3
o mar escreve duras idéias
a réclame de aimé césaire
aprende das ilhas
mas antes
anota da mudança a muda
os negros os mexicanos
os amarelos
audimos um passado ainda vivo
um ritmo intenso
de jardins
4
pedra verde
pássaro
e água
a um canto respiram avós
maternos paternos eternos
de uma vez sei a morte
os dedos
riscam a pedra
o pássaro
o negro
o azul
o vermelho
conversam em escalas
águas
fluem
uma casa ramo
sem obstáculo
em sua madrugada
5
a porta-bandeira deixou
o amor
os nervos de mestressala
mas a noite os reconcilia
o vermelho espera
as cinzas de quarta-feira
ausentes os rumores o amigo
de infância
longe
assim como o galo
sua frase
e os desprevenidos colhedores
de jasmins
6
o carnaval na esquina
lembra o festim e a peste
no dia
em que arlequim descobre
os avós
triangulares
percorro
as alas o ritual dos possessos
e o samba no zinco
enreda a si mesmo
7
os milagres são
quando o sapato cifra um samba
que durasse
perfeitos anos
ou a praça inumerável
há quantos séculos
desde os de tia ciata
educando os descompassos
na quarta-feira o rubro
o negro
o branco
o brilho da pérola sobre o dia
o que se transporta no elance
da porta-bandeira
e o mestressala
(O velho cose e macera. In: Zeosório blues: obra poética 1, 2002).
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Estandarte da agonia
Usa-o quem o tece de fios contemporâneos,
embora existisse no passado como estranho.
Teceram-no João e Arthur Timóteo da Costa,
estudando na Escola Nacional de Belas Artes:
sob os modelos cada um gerou a sua fortuna,
menos esperada, mas livre, na livre loucura.
Outro Artur fez seu o estandarte da agonia.
Buscou palavras no abismo e com esforço
salvou-as do certo para o incerto hospício.
Como estreitar esse mergulho? Sabemos as
rotas do navegante Artur Bispo do Rosário?
Quem mediu sua engenharia? O estandarte,
contrário ao que parece, empluma
a navalha onde Arthur estacionou sua nave.
(Blanco. In: Lugares ares: obra poética 2, 2003).
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Orelha furada
Dançar o nome com o braço na palavra: como
em sua casa um maconde.
Dançar o nome pai dos deuses que pode tudo
neste mundo e suportar o lagarto querendo ser
bispo na sombra.
Dançar o nome miséria, estrepe e tripa que a
folha do livro é. E se entender dono das letras
em sua cozinha.
Dançar o nome em sete sapatos limpos para
domingo.
Dançar o nome com a mulher nhora dele: a
mulher no seu coração tempestade e ciranda.
Dançar o nome com o braço na palavra berço.
(O homem da orelha furada. In: Casa da palavra: obra poética 3, 2003).
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Três Tigres
MIGUEL DAS LAGES O escrito é mais silêncio, quando li-
do. Certos livros viram camisas europas medalhas.
Nos fazem retratos, vozes ditadas à nossa voz. Sigi-
los sigilosos para nós. Que é feito de minha frase que
a lavra de outra fala inventa?
ESTEBAN MONTEJO E de meus riscos, que ordenaram
dizendo ser meu espelho? Palavra ilha armadilha, o
nunca saber se o escrito é o dito. E, no entanto, flo-
resce literatura furta-cor. Que eu mesmo, de tanto
esquecer, talvez, tenha inscrito.
CANDELARIO NAVARRO Emprestei meu cavalo se falei
sobre ervas que deram em letra. Umas não é outra.
Mil cabelos se a minha comida, feitura difícil, virou
escrito, o só esqueleto. Eu sabendo dizia o que não
é possível, a ver se com isso escreviam livro.
Miguel Esteban Candelario das Lages Montejo Navarro
escreve alguém no delírio de pensar haver-nos escrito.
(Sete selado. In: As coisas arcas: obra poética 3, 2003).
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Os comedores de palavras
I. Apresentação
Você sabe o que é um “griot”? É como são chamados, na África, os contadores de histórias. Eles são considerados sábios muito importantes e respeitados na comunidade onde vivem.
Através de suas narrativas, eles passam, de geração em geração, as tradições de seus povos.
Nas aldeias africanas, era costume sentar-se à sombra das árvores ou em volta de uma fogueira para, aí, passar horas e horas a fio, ouvindo histórias do fantástico mundo africano transmitidas por estes velhos “griot”.
Este livro fala de um contador de histórias.
De um país distante onde as árvores falam...
De um menino triste...
E de um tambor encantado...
II. Os comedores de palavras
No distante País das árvores que falam vivia um contador de histórias, que viajava acompanhado de seu filho. Juntos atravessavam rios e montanhas.
Por onde passavam, o contador de histórias tocava o seu tambor e logo histórias nasciam em sua boca. Eram vivas como a serpente do arco-íris.
Ao final das histórias, o contador desafiava os ouvintes:
Vim de muito longe
Para as terras do senhor rei.
Venci o bicho silêncio
e minhas histórias contei.
Todos aplaudiam, oferecendo presentes para o contador e seu filho. Um dia, porém, o Monstro Engolidor de Gentes levou o contador de histórias. O menino ficou triste, tão triste que seu cabelo se esqueceu do sol e da chuva.
O menino estava decepcionado por não saber histórias como o seu pai. Até o tambor tinha adormecido. A tristeza era tão grande que o menino resolveu morar no País dos Bichos Comedores de Palavras. Lá, ninguém lhe pediria para contar histórias e ele não sentiria vergonha por não sabê-las.
Depois de muito caminhar, chegou a uma casa cercada de árvores com olhos. Ali morava a Senhora-que-viu-tudo-neste-mundo. Ela perguntou-lhe:
– O que você faz tão longe de sua terra?
O menino contou a sua viagem e a luta de seu pai com o Monstro Engolidor de Gentes. Contou também sobre o tambor que adormecera.
Para distrair o menino, a Senhora disse-lhe tudo o que tinha visto no mundo. O menino ouviu com atenção. Em seguida, quis saber o caminho para chegar ao País dos Bichos Comedores de Palavras.
A senhora disse-lhe:
– Você deve viajar até a casa do Senhor-que-guarda-histórias-na-cabeça. Ele poderá ajudá-lo.
Assim fez o menino. E contou suas aventuras ao Senhor, que lhe recomendou:
– Quem pode ajudá-lo é a Senhora-que-tem-alegria-de-inventar-palavras.
Assim fez o menino. E narrou suas aventuras à Senhora, que lhe disse:
– Você não deveria buscar o País dos Bichos Comedores de Palavras.
– Mas sinto-me tão triste, Senhora. O tambor de meu pai adormeceu. Não sei como fazê-lo falar para a felicidade das pessoas.
A Senhora não insistiu, apenas indicou:
– Você precisa caminhar sete noites de lua crescente para encontrar o que procura.
O menino agradeceu e partiu. Depois de sete luas crescentes, avistou uma terra deserta. Seu coração estremeceu de medo. Mas ele avançou. Chegando a um portão de gelo, foi detido por vários bichos comedores de palavras. O mais terrível deles falou:
– Uhó... uhó... uhó... Antes de entrar, você deve dizer quem é. Depois de comermos suas palavras, você poderá passear pelo nosso jardim de silêncios.
Então, o menino que viu tudo neste mundo, que guarda histórias na cabeça e tem a alegria de inventar palavras começou a contar suas aventuras.
Os bichos comiam... comiam... comiam... comiam palavras. Elas eram de todas as formas e de toas as cores. Os bichos não podiam mais comer. Estavam plenos de palavras! Mas o menino continuava a criar histórias.
Por fim, os bichos gritaram:
– Você não pode entrar em nosso país, porque sabe inventar e contar mais histórias do que somos capazes de comer...
O menino estava novamente triste. Não havia lugar para ele no mundo. Caminhou sem direção até encontrar um velho que cuidava das árvores na beira da estrada. Pediu-lhe água e comida. O velho disse:
– Posso lhe dar o que me pede se você me der em troca este tambor.
– Sim, concordou o menino.
E passou as mãos no tambor para limpar a poeira que estava sobre ele. Ao mesmo tempo, começou a contar como viu tudo neste mundo e como venceu os bichos comedores de palavras.
Logo, as pessoas se ajuntaram para escutá-lo. O velho, então, falou:
– Não posso ficar com o tambor. Você é um contador de histórias e precisa dele para alegrar as pessoas.
O menino agradeceu ao velho contando-lhe a história da princesa que se casou com o dia. E seguiu adiante. Por onde passava, agradecia os regalos que recebia tocando o seu tambor. Todos se sentiam felizes por ouvir o menino que viu tudo neste mundo e contava histórias vivas como a serpente do arco-íris.
(Os comedores de palavras, 2003, p. 6-9).