Poesia e Negritude
ou Adão Ventura esticando a pele até o poema
Matheus José [1]
RESUMO
Ler a poesia de Adão Ventura (1939-2004) é, também, de algum modo, observar um panorama de autoras/autores negros que registram projetos literários explicitamente políticos, sem, contudo, desconsiderar a preocupação estética com a linguagem, relevando o poema enquanto instância medular de expressão e de inscrição da negritude. Diante disso, este artigo objetiva analisar e interpretar o poema intitulado “UM”, de autoria de Adão Ventura, publicado na seção “Das Biografias” do livro A cor da pele (1980), observando como o poeta afro-mineiro mobiliza e/ou tensiona procedimentos textuais/literários e postura de negritude atrelada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar.
Palavras-chave: Poesia. Negritude. Adão Ventura. A cor da pele.
ABSTRACT
Reading the poetry of Adão Ventura (1939-2004) is also, in a way, observing a panorama of black authors who record explicitly political literary projects, without, however, disregarding the aesthetic concern with language, highlighting the poem as a central instance of expression and engaged inscription of blackness. In view of this, this article aims to analyze and interpret the poem entitled “UM”, by Adão Ventura, published in the "About Biographies", section of the book A cor da pele (1980), observing how the Afro-Minas Gerais poet mobilizes and/or tensions textual/literary procedures and engaged stance of blackness linked to the identity-cultural experience, the critique of slavery, the denunciation of racism and the reinterpretation of the socio-historical horizon through family memory.
Keywords: Poetry; Blackness; Adão Ventura; A cor da pele.
Introdução – ou lendo as paisagens negras no poema
“É a afirmação do negro pela valorização de sua cultura, a começar pela poesia.”
(Kabengele Munanga)
Ler a poesia do afro-mineiro Adão Ventura (1939-2004), precisamente os poemas publicados em 1980 no livro A cor da pele, além das potências literárias com o manejo do verso, em que se destaca um poeta que “une sua consciência política e racial a uma linha sempre inventiva e de descobertas formais” (Gomes, 1992), também motiva depreender um panorama poético significativo de 1978[2] em diante no Brasil.
Ainda que perante o espaço exíguo da Ditadura Militar, estes foram anos relevantes para estruturação e disseminação da consciência de negritude no país tendo como lugar de inscrição o texto poético. Temos no poema o lugar de expressão da negritude enquanto convocação permanente de todos os descendentes dessa condição para que engajem no combate e na potencialização dos valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas (Munanga, 2020). Também é um chamamento para a retomada de consciência identitária, enunciativa, social e política de todos aqueles que foram vítimas da inferiorização e da negação da humanidade em algum momento.
Nessa paisagem, os poetas pretos assumem projetos verbais deliberadamente atrelados a sua negrura identitária-cultural e rotacionam novos sentidos, não assimilam padrões, reivindicam direitos, elaboram novas imagens e metáforas, desvelam realidades, expandem signos linguísticos, desaprovam processos sócio-históricos exploratórios, rompem com concepções excludentes de linguagem, de literatura, de sociedade e apresentam outros meios e argumentos.
Diante do exposto, é colocada em relevo uma poesia negro-brasileira que nasce na e da população negra-brasileira e, também, de sua experiência no país (Cuti, 2010). Acentuam-se, portanto, poetas pretos que inserem o próprio corpo e as próprias subjetividades no texto poético, ao mesmo tempo que mobilizam estratégias textuais e literárias que veiculam pontos de vista críticos referentes à situação e à história da comunidade negra em território brasileiro.
Ainda sobre essa geração de poetas, no prefácio da segunda edição do livro O Negro Revoltado (1981), Abdias Nascimento menciona, brevemente, o poeta Adão Ventura e outros poetas[3], destacando-os enquanto voz de uma nova poesia negra engajada disposta a inocular, sem cordialidade alguma, a questão do negro em seu expediente poético.
O que é incontestável nessa poética negro-brasileira, e constataremos lendo o poema intitulado “UM” (1980) de autoria de Adão Ventura, é que o enunciador de fato coincide/acompanha aquilo que está sendo enunciado na estrutura do poema.
Também nesse panorama, é possível perceber que o “fazer poético passa a ser equivalente a um processo de reterritorialização, ou seja, a uma tentativa de recomposição de um sistema próprio de representações” (Bernd, 1988, p. 23). Por isso, a propensão à ruptura, seja na medida em que a própria situação do negro se atenuava na sociedade brasileira pós-abolição da escravatura ou seja diante da própria instituição social literatura que, após vários anos imersa no “negro-tema”, sem dúvida, estranhe a conjuntura de deparar com uma voz diferente, com um texto diferente, com metáforas, estilos e pontos de vista diferentes elaborados por um corpo diferente proveniente de outros corpos também diferentes até então objetificados, reduzidos, despossuídos de competências linguísticas e capacidades crítico-criativas.
Nessa perspectiva de tensionamentos na relação entre negritude e literatura, o pesquisador Eduardo de Assis Duarte aponta para essa dobradiça descentrada e descentralizadora ao argumentar sobre “edificar uma escritura que seja não apenas a expressão dos afrodescendentes enquanto agentes de cultura e de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civilização” (Duarte, 2014, p. 400).
Em síntese, antes de debruçarmos na poética de Adão Ventura por meio do livro A cor da pele (1980) e do poema “UM”, fez-se necessário situarmos o poeta como mais uma voz integrante desse polifônico cenário da poesia negro-brasileira em que se nota que o eu lírico é lugar ocupado por sujeitos pretos e intrusos que registram, poeticamente, um enunciado no mundo para significar. Assim, ocupam o pronome, a imagem, a metáfora e a primeira pessoa do discurso com toda carga identitária, cotidiana, coletiva e histórica estremecida pelo preconceito, pela injustiça, pela humilhação, pela pobreza, pela exploração, pela indignação e que está explicitamente assumindo um projeto simples e complexo de escrita de poema motivado pela cor preta da pele e o que ela implica e demanda.
A cor da pele esticada até o debate
Diante desse panorama plural de voltagens reivindicativas e inventivas inoculadas sem cordialidade alguma no texto poético escrito por sujeitos negros, destacamos o poeta afro-mineiro Adão Ventura (1939-2004), nascido e criado no distrito de Santo Antonio do Itambé e que depois dos registros de alta performance, com os livros Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970) e As musculaturas do arco do triunfo (1976), publica de forma independente a primeira edição do livro A cor da pele; um volume com total de 25 poemas lançado em Belo Horizonte/MG em 1980.
O livro é dividido cirurgicamente em quatro seções; Das biografias, Da servidão e chumbo, Raízes e Livro último, conta com prefácios de Rui Mourão e Fábio Lucas e com a concepção de capa de Sebastião Nunes.
Temos em A cor da pele a poética da desassimilação, de enunciação crua, com versos concisos e curtos que abarcam desenvoltura semântica, sintática e rítmica junto a imagens e figuras que comungam da negritude enquanto tomada de consciência em que o “elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo” (Santiago, 1982, p. 123).
As composições do livro apresentam o contradiscurso desassossegado para os debates literários e culturais do Brasil naquele momento em que, ainda imerso no regime militar, propagava a superação da escravatura por meio da abolição e da miscigenação. Defronte dessa situação hilariante, um sujeito preto e poeta registra os seguintes versos: “minha carta de alforria/ não me deu fazendas, / nem dinheiro no banco, / nem bigodes retorcidos” (Ventura, 1980, n.p.).
Adão Ventura comunga da linhagem discursiva da poesia brasileira marcada por autoras/autores negros que explicitam a intenção extremamente contestatória de uma poesia de cunho eminentemente político que não despreza a preocupação estética. O poeta atrela à linguagem da poesia as demandas sociais e singulares, dessa maneira tensiona ou estabiliza a noção de que é na e pela linguagem que o indivíduo se constitui enquanto sujeito, como aponta também para capacidade da linguagem poética de motivar diversas alternativas para a compreensão não só da realidade absurda que o cerca, mas induzindo, também, a percepção de si e do outro.
O livro nos apresenta poemas como “Negro Forro”, “Eu-pássaro preto”, “Negro Escravo – versão para o século XX”, “Faça sol ou faça tempestade”, “Preto de alma branca: ligeiras conceituações”, “Meu sonho”, “Algumas instruções de como levar um negro ao tronco”, “Por que Jesus Cristo é sempre branco?”. São exemplos de construções poéticas cuja matéria trata diretamente de expor questões polêmicas e sensíveis que abrangem questionamentos sócio-históricos, literários, identitários e culturais que orbitam um mesmo núcleo de preocupação: a causa do negro brasileiro. Segundo comentário de um dos pesquisadores da obra de Adão Ventura, o professor Édimo de Almeida Pereira, a leitura da poética do autor “permite o entendimento da realidade não pela razão cartesiana do mundo branco” (Pereira, 2010, p. 52).
Já no poema “Para um negro”, podemos ler versos como este: “para um negro/ a cor da pele/ é uma faca”, “para um negro / a cor da pele / é um soco”. Nestes versos, Adão Ventura aplica uma pressão no signo da pele que, ao ser esticada/expandida, alberga sobretudo que algumas profundidades envolvem o tecido superficial e dérmico, além da melanina e do fenótipo.
Na obra, ainda podemos observar como negritude e poesia interagem ou tensionam-se através da ação estratégica da anáfora, que cumpre sua função textual de atribuir ênfase a alguma ideia. Contudo, ao ler a repetição de versos, como em “faça sol ou faça tempestade / meu corpo é fechado / por esta pele negra”, é possível perceber a anáfora expondo a recorrência do aspecto insular do corpo e da subjetividade do sujeito. (Ventura, 1980, n.p.).
Também através do volume de poesia A cor da pele, percebemos a postura de Adão Ventura de expor e encarar o aviltamento, que é o mesmo que interpretar um conglomerado de escombros e subprodutos da barbárie colonialista-escravagista através de imagens viscerais, como em “levar um negro ao tronco / e cuspir-lhe na cara”, “a cor da pele / chicoteada / e cuspida”, “o preto de alma branca / e seus culhões de cachorro” e “sua voz falida / portas adentro”. (Ventura, 1980, n.p.).
Adão Ventura se destaca também por exibir uma ocorrência fronteiriça na experiência identitária-cultural do indivíduo preto em que, de um lado do polo, lemos versos como “eu, / pássaro-preto”, “eu-zumbi” ou “monto guarda / na porta dos quilombos”. Já por outro ângulo, lemos: “o preto de alma branca/ e seu cagar na saída” e “levar um negro ao tronco / e currá-lo no lixo”. (Ventura, 1980, n.p.).
Em plena década de comemoração de 100 anos da abolição da escravatura, num país assolado pelo mito da democracia racial, pelos entraves da ideologia da cordialidade, pelas políticas militares, paternais e pelos sentimentos humanitários enquanto modo de representação que encobre a absurda sobre-realidade sobre-vivida pelo negro no Brasil, o texto escrito por um sujeito negro-brasileiro, como uma intrusão, registra poeticamente um discurso outro mobilizando uma diversidade de estratégias de elaboração textual e de modulação temática.
Diante disso, este artigo pretende na próxima seção focalizar o poema “UM”, publicado neste livro A cor da pele (1980), observando como o poeta afro-mineiro mobiliza e/ou tensiona procedimentos textuais e postura de negritude engajada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar.
Lendo “UM” poema negro de Adão Ventura
em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África.
carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.
mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis
(Ventura, 1980, n.p.).
Debruçamos, então, na análise e interpretação do poema intitulado “UM”, inserido cirurgicamente na seção “Das Biografias”. A composição em estudo, com as suas três estrofes, engloba de alguma forma e ao seu estilo o que abordamos nas seções anteriores, dado que aponta para a literatura do negro, o qual, deliberadamente, conecta sua negrura identitária e cultural a um projeto crítico e criativo de escrita poética em que estratégias textuais e literárias são mobilizadas na órbita de um mesmo núcleo de preocupação: a causa do negro brasileiro.
Em pesquisa, o professor Gustavo Tanus de Souza, estudioso da obra de Adão Ventura, apresenta uma orientação eficaz para a leitura do poema em questão na medida em que, nesta composição, o poeta afro-mineiro:
[...] transforma em matéria poética a cor negra da pele, expondo por processos metonímicos e metafóricos as reduções preconceituosas e racistas que o corpo negro recebeu como ‘herança’ do sistema escravista, estruturante de relações que ainda hoje são problemáticas. (Souza, 2017, p. 48).
O poema inicia com os seguintes versos: “em negro / teceram-me a pele”. Adão Ventura expressa, mesmo que simbolicamente, a intenção da sua pesquisa poética de atrelar ao poema as posturas discursivas da negritude referentes aos questionamentos identitários-culturais da pessoa negra e que implicam duas valências de compreensão contundentes.
A primeira é a constatação de que é o branco que concebe o negro enquanto sujeito torpe posicionando-o na zona do não-ser. Dessa maneira é que o vergalhão da baixa estima, da inferioridade, seja esta subjetiva ou socioeconômica, atravessa a experiência identitária e cultural do mundo negro, expondo, sobretudo, sua condição de excluído do pleno exercício da cidadania. No verso, a flexão pretérita junto ao pronome em teceram-me baliza essa perspectiva de um corpo que sofreu algum tipo de ação.
Já no que tange a outra valência, cabe ao negro a dificílima postura de resistência e de desassimilação para tornar visível sua existência por meio da afirmação de seu corpo e de suas subjetividades, como também envolve a interpretação da sua cultura, da sua condição socioeconômica, política e histórica.
Diante desses dois versos iniciais do poema “UM”, observamos que “assumir a condição negra e enunciar o discurso em primeira pessoa parece ser o aporte maior trazido por essa literatura, constituindo-se em um de seus marcadores estilísticos mais expressivos” (Bernd, 1988, p. 22). Por isso, a pronomização para o poeta negro determinar uma lírica outra enquanto lugar de dizer aquilo que é incômodo, coibido e, também, por representar o lugar do dizer daqueles que são coibidos do dizer e do sentir.
A situação do negro requisita, portanto, uma ruptura. Irrompida essa atitude, é na revolta que se torna viável a interpretação de que a solução dos problemas corresponde a questionar implicitamente as obstruções que impedem os negros de ingressarem na categoria genuína de pessoa (Munanga, 2020). É de se destacar ainda a dificílima recusa das ofertas de assimilação dos valores brancos que também perpassa a experiência negra de liberação e da sua reconquista e reinterpretação.
E o poema segue seu discurso, apresentando na mesma estrofe argumentos cabais que suplementam a experiência identitária engatando-a na perspectiva cativa.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África [...].
(Ventura, 1980, n.p.).
Observemos como o processo de adjetivação simples de um termo, correntes, que abrange na sua morfologia toda uma atrocidade racial, conecta a experiência identitária não estanque do negro à escravatura.
Ainda, com o uso do indicativo em amarram-me, o poeta atualiza a imagem visceral e humilhante de um negro-brasileiro ainda reduzido diante dessas enormes correntes.
Para Jussara Santos (1998), pesquisadora da poética de Adão Ventura, nestes versos o autor mostra que o lugar da marginalidade ainda continua sendo conferido ao indivíduo negro e que a cor da pele permanece delimitando espaços de clausura. Diante disso, tem-se a possibilidade de os vocábulos cor, corrente e tronco expressarem um mesmo sentido de aprisionamento e violência nessa estrofe.
A consciência afrodiaspórica de Adão Ventura é cirúrgica nesta segunda estrofe, na medida em que sugere a leitura mais atenta acerca do empreendimento escravagista, em que o poeta dispõe sua voz consciente que pertence a essa comunidade pretérita, sendo solidário a ela e, também, consequentemente, observa a situação atualizada do negro-brasileiro diante dessa Nova África em que ele, também, se encontra amarrado.
Cabe reforçar na leitura dessa estrofe a seleção lexical bastante modesta escolhida por Adão Ventura na tessitura de um discurso direto, conciso e complexo, registrando, por essa via, um texto-da-diferença, que acaba por operar um descentramento dos padrões hegemônicos do pensamento cultural, racial, político, literário e erudito difundidos neste país.
Partindo agora para o segundo bloco de estrofação do poema, deparamo-nos, novamente, com a flexão verbal e o pronome. Diante de mais essa ocorrência, convém, então, ressaltar o teor social da lírica de Adão Ventura mediante um conceito de lírica que não se esgota na subjetividade (Adorno, 2003), mas que trata de uma composição lírica preta que se dispersa e se incorpora a um todo e tem expectativa de extrair da mais restrita individuação a preocupação comum, apontando que essa universalidade e essa solidariedade do teor lírico são visceralmente sociais.
Então, aqui nessa segunda estrofe em que Adão Ventura “quer falar de todos ou por todos, mas de acordo com a sua sensibilidade” (Pereira, 2008, p. 140-141), é o racismo contra a comunidade negra que atravessa a experiência. O poeta oferece, por meio da estrofe, ângulos alternativos de compreensão da discriminação e o que esta implica no processo de afirmação identitária e cultural da pessoa negra-brasileira.
carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.
(Ventura, 1980, n.p.).
Lemos a criativa e crítica imagem do poeta carregando consigo a projeção de uma sombra diante de longos muros, em que a sombra é a ressemantização da própria pele negra diante do muro que é o racismo cotidianamente obstruindo alguma locomoção.
Temos nesta imagem o trânsito entre o literal e o figurativo, entre o factual e ficcional e, sobretudo, a metonímia biográfica concernente a toda uma comunidade vítima de um processo em que a cor da pele é indicação de descendência africana, mas também determina o foco do preconceito racial nas sociedades (Hasenbalg, 1979), sedimentando aos extratos sociais as segmentações etnicorraciais e condicionando o destino de gerações de negros e negras.
Ainda enfatizamos o processo de adjetivação dessa segunda estrofe em que o termo longos realça o caráter recorrente do emparedamento que implica os muros do racismo. Essa imagem metafórica sublinha com precisão que a urgência do eu enunciador negro e a linguagem verbal firmam um entendimento de que o texto poético “serve para manter vivos e eficazes os mecanismos humanos de percepção do universo, de pensamento e de fala; que a poesia pode servir para atender as necessidades metafísicas, místicas e míticas do ser humano” (Faustino, 1977, p. 277-278). Já o crítico literário Alfredo Bosi (2000) observa a poesia orbitando os signos do apelo, da denúncia e da comunhão, assim, por meio dessa segunda estrofe aparentemente simples, é possível que a linguagem da poesia e a consciência de negritude agenciem, de alguma forma, intenções insurgentes parecidas.
Percebemos, portanto, que as estratégias literárias que a estrofe abarca indicam o manejo do poeta com a linguagem e sublinham o comportamento da escrita de Adão Ventura em constituir esteticamente veículos para significar a discriminação e a segregação.
Convém realçar nessa segunda estrofe a pressão que o poeta exerce sobre o tecido dérmico, esticando essa instância superficial em um signo que aciona o debate racial e revela que “algo de mais profundo ainda permanece na cor da pele” (Santiago, 1982, p. 122).
Já na terceira e última estrofe do poema, após expor questões referentes aos conflitos da identidade cultural, a escravatura e a denúncia contra a discriminação racial, o autor inicia o verso com uma conjunção adversativa que intensifica o processo de interpretação da sua personalidade negra em que deixa transparecer sinais e possibilidades de deslocamentos.
mas o meu sangue
está cada vez mais forte
(Ventura, 1980, n.p.).
Em seguida, atrela-se à memória familiar essa instância fulcral para os empreendimentos de amputação de horizontes históricos.
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis.
(Ventura, 1980, n.p.).
Adão Ventura está no fluxo dos posicionamentos da pesquisadora Maria Nazareth Fonseca (2007, p.108) que, em artigo, acentua que a “memória e as lembranças de fatos do passado percorrem os espaços da intimidade dos enunciadores para trazer à escrita modos diversificados de apreensão do mundo”.
Nessa estrofe do poema, é através do referencial negro e ancestre dos avós, Teodoro da Fazenda e Dona Justina, que o autor suplementa sua experiência reforçando ainda mais seu horizonte de vínculos, redes e pertencimentos, destacando, assim, que “um dos caminhos para ler Adão Ventura procede do forte sentimento de individualidade que identifica o eu em meio à coletividade” (Pereira, 2008, p. 140). Nesses versos, o pronome pessoal espalha/dispersa até outros membros da sua prole, e é através deles que o autor reconfigura um horizonte histórico amputado, desintoxica sua biografia, afirma sua identidade, solidariza-se com os seus e contesta um processo bestial.
Adão Ventura, ainda nessa última estrofe, permite leituras a contrapelo, por meio da metáfora deplorável, em que há, por um lado, a subserviência dos corpos negros subalternizados e, do outro, o regozijo dos palácios e dos reis mantido através da barbárie racista sobre aqueles. É válido destacar novamente a figura ancestre e estratégica dos avós nessa estrofe, enquanto fio que conduz para a contranarrativa, que colide contra a versão oficial da história divulgada pelo mundo ocidental.
Nessa estrofe, podemos interpretar mais uma postura preta descentrada de Adão Ventura em considerar um monumento da cultura colonial como produto de exploração e de opressão (Benjamin, 1985), assim como colocar em relevo os indivíduos explorados nesta conjectura. Posto isso, podemos constatar, nesse bloco final, uma estrutura, ou forma, em que se tem os avós negros, essa corveia anônima carregando as imensas pedras e, do outro lado, a edificação dos palácios dos reis cumprindo a função de celebrar a exploração e o triunfo.
Considerações Finais
Em suma, as três estrofes do poema “UM” proporcionam, para a literatura brasileira e para prática leitora, uma pesquisa que tensiona poética e postura de negritude atrelada à experiência identitária-cultural, à crítica escravagista, à denúncia contra o racismo e à releitura do horizonte sócio-histórico por meio da memória familiar, sustentando a hipótese que essa composição representa uma fatura autêntica de poesia negro-brasileira, em que observamos, por meio da análise e da interpretação, a performance de um poeta assumidamente negro e que, diante do jogo textual e poético, opta pela habilidade de enunciar pontos de vista descentrados, desassimilados, contestatórios, polêmicos e sensíveis acerca da situação e da condição do preto-brasileiro, por meio de uma mobilização lexical simples, que não obstrui o acesso à compreensão e à complexidade das imagens e das metáforas elaboradas.
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NOTAS
[1] Matheus José é discente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Colaborou no inventário arquivístico do poeta Adão Ventura como bolsista no Acervo dos Escritores Mineiros/FALE/UFMG. Autor dos livros: A cachoeira do poema na fazenda do seu astral, Selo Tomate Seco, 2013; Poemas na galáxia pupila, Editora Urutau, 2016; Utensílios de resiliência e flutuabilidade, Editora Primata, 2017; Poema ou pomar em meio ao caos, Editora Primata, 2021.
[2] Cadernos negros v.1 (São Paulo, Edição dos autores, 1978), poemas de Luís Silva (Cuti), Jamu Minka, Henrique Cunha Jr., Angela Lopes Galvão, Eduardo de Oliveira, Hugo Ferreira, Celinha e Oswaldo de Camargo.
[3] Abdias Nascimento (1981, p. 22) menciona Adão Ventura, Oswaldo de Camargo, Cuti, Oliveira Silveira e Oubi Inaê Kibuko.