Na Companhia de Rufus 

Jeferson Tenório

Deve haver alguma beleza nessa vida fodida de merda 

Dizem que há no sofrimento algum tipo de aprendizado. A escola o fez sofrer, mas não o educou. Joaquim conheceu poucos professores dispostos a ajudá-lo. Hoje, no entanto, percebe que talvez eles não tivessem culpa pelo seu martírio, só estavam ali tentando salvar a própria dignidade diante da estrutura precária do ensino. Joaquim sempre foi um aluno triste e mediano. Não chamava a atenção dos professores. Só quando ia mal nas provas de matemática ou de ciências. Aí, no conselho de classe, ele era lembrado. Sentiam pena dele e o passavam de ano, na maioria das vezes. Entretanto, certa vez, na sexta série, Joaquim foi reprovado na disciplina de língua portuguesa. A professora Enilda alegou três motivos: que ele não sabia interpretar textos, que não sabia escrever redação e que não entendia a letra dele. Joaquim admitia que a sua caligrafia sempre foi difícil para os outros, suas garatujas eram entendidas, muitas vezes, apenas por ele. O que poderia servir como uma espécie de defesa para que sua escrita estivesse a salvo dos olhos de possíveis críticos. Escrever, para Joaquim, era uma atitude íntima e, portanto, a mantinha em segredo exercendo uma letra ruim. Quanto à interpretação, talvez a professora também estivesse certa. Joaquim nunca sabia o que responder diante de um texto literário, por exemplo. Mesmo as perguntas mais básicas, como o tipo de narrador ou o significado de determinada frase. Os poemas eram os piores para entender. Interpretar exigia certas informações do mundo que Joaquim ainda não tinha, ou não estava na idade de prestar atenção. Não se interpreta texto sem um mínimo de experiência de vida. Mesmo que ele já tivesse sofrido bastante até ali. Mas sofrer não significa acúmulo de sabedoria ou de inteligência. Ninguém escreve ou interpreta bem porque sofre, ele pensaria mais tarde. A única coisa que Joaquim discordava era a de que não sabia escrever redação, pois ele sabia. Cumpria todas as ordens e orientações da professora. Executava com esmero e afinco as tarefas, porque, para Joaquim, inventar histórias era o seu modo de resistir à escola. Porém, sua letra ruim, aliada ao cansaço da professora e à imagem preestabelecida de aluno negro mediano colada nele, contribuíram para que fosse reprovado. Mesmo assim, Joaquim não guardava rancores do ensino. Foi apenas um estágio traumático que teve de passar na vida e do qual ninguém escapa. 

Apesar da escola, Joaquim escolheu os livros como modo de viver. Ele poderia ter dirigido sua vida para qualquer trabalho manual ou subalterno e que lhe desse um mínimo de estabilidade financeira, mas preferiu dirigi-la para a literatura. E pagou um preço alto por isso. Foi com a poesia que Joaquim criou a ilusão de que poderia conspirar contra o mundo e ainda o vencer. Na vida adulta, cada poema que lia, o fortalecia pela fragilidade. Havia uma precariedade nos versos que nada podiam diante da violência, ele pensava. Ainda assim, a palavra “poesia” o resgatava. O rigor poético o salvou de alguma coisa que poderia matá-lo. Era um exagero, ele pensava, mas era assim que conseguia lidar com as adversidades. Para quem não tem muitos recursos, a pobreza nunca tem uma explicação. A vida simplesmente se apresenta tal como é. Aceita-se. E as dificuldades para sobreviver passam a fazer parte do cotidiano. Resmunga-se, mas nunca se questiona por que as pessoas são pobres. Leva-se a vida e não importa que a geração anterior tenha sido miserável, apenas segue-se o fluxo. E foi por esses e outros motivos que Joaquim nunca disse à sua avó que queria ser poeta. Poderia soar como uma ofensa. Ou uma grande falta de respeito. Depois de tudo que passaram. Depois de todas as dificuldades era como se ela dissesse: Olha, guri, a gente se fodeu a vida toda. Meus avós se foderam. Meus pais se foderam. A sua mãe se fodeu. Uma geração inteira se fodeu. Por séculos os negros se foderam para que você chegasse até aqui. E então é isso que você vai fazer da sua vida? Tornar-se um poeta? Que não vai ajudar os negros a sair dessa merda toda? Não se tornará a porra de um advogado? Nem a porra de um médico? Até onde você vai com isso? Você não tem esse direito, entendeu? Embora o mundo das letras não fizesse parte do seu universo, Joaquim intuía que a literatura não dava dinheiro. Ele tinha razão. No entanto, a sua impressão era a de que tudo que ele mais gostava de fazer não dava dinheiro. Descobriu ainda que as coisas difíceis e inúteis sempre o atraíam. E pensava que talvez ele estivesse condenado a continuar se fodendo como todos os outros negros que se foderam antes dele. Além disso, sua mãe havia morrido um ano atrás, e a avó, com quem morava, começava a apresentar os primeiros sintomas de demência. Com tudo isso, Joaquim deveria naturalmente nutrir um ressentimento pela vida. Mas na época ele era novo demais para ser ressentido. Tinha 24 anos e não podia ser triste. O ressentimento exige certa maturidade. Joaquim estava sem emprego e sustentava-se com a aposentaria da avó. Era muito pouco. Ele tinha de arranjar logo um emprego. Seu plano era juntar dinheiro, entrar num cursinho pré-vestibular e tentar passar numa universidade federal, pois tinha esperança de aprender alguma coisa sobre a escrita num curso de letras e quem sabe se tornaria um escritor ou poeta. Entretanto, antes disso, ele realmente precisava de um emprego. Sua carteira de trabalho era um mosaico de carimbos de serviços subalternos. Como não tinha experiência, a não ser trabalhar com atendimento ao público, precisava achar algo nessa mesma área. Um dia, fez uma entrevista para atendente de telemarketing na Conecta – uma empresa de planos de internet. Joaquim iria ganhar pouco mais de um salário mínimo. A empresa oferecia vale-transporte e tíquete-refeição, e o expediente era de seis horas por dia. Ele não tinha dúvidas de que era um emprego ruim. Sabia que continuaria a viver uma vida de exploração. Mas não havia o que fazer. 

As primeiras semanas de treinamento foram lamentáveis. Joaquim não tinha qualquer habilidade para convencer as pessoas a comprar um produto. No primeiro dia, o colocaram para ficar ao lado da Suelen. Era uma funcionária-- padrão. E padrão significava que ela estava próxima das características de uma máquina. Suelen tinha um texto decorado e impessoal na ponta da língua. Falava com os clientes sem transparecer qualquer emoção. Sabia todos os planos de vendas de internet de cor e tinha sido eleita a funcionária do mês. Eu já ganhei duas raquetes de frescobol por ter batido a meta esse mês, ela disse orgulhosa. Por que raquetes?, perguntou Joaquim. Ela disse que eram brindes para quem bate as metas da semana. Tem gente que ganha uma agenda, uma caneca ou boné. Eu ganhei raquetes. Eu gostei porque no próximo verão vou com meu namorado para a Praia de Tramandaí jogar frescobol. O nome dele é Marcos e ele já é supervisor em outra filial. Nos conhecemos aqui na Conecta. Vamos nos casar no ano que vem e comprar um terreno em Viamão. Ter nossa família e um cachorro, ela disse, com orgulho. Mas o verão ainda está tão longe, ele interrompeu. Não entendi, disse Suelen. O verão está tão longe para você usar as raquetes, ele completou. Suelen olhou esquisito para Joaquim e disse que tudo bem, que ela não se importava, que o importante mesmo era guardar dinheiro para as férias e bater as metas. Não se preocupe, você um dia vai conseguir bater as suas também. Um dia você e sua namorada vão se casar, ter filhos e uma casa em Alvorada ou Viamão. Lá os terrenos são mais baratos e as casas também, ela disse. Mas eu não tenho, ele falou, interrompendo novamente. Não tem o quê?, ela perguntou. Não tenho namorada, disse Joaquim, ela terminou comigo para ficar com outro cara. Suelen olhou para ele com tristeza e disse: Puxa, sinto muito. Mas não importa. Isso passa. Logo você arruma outra. Aqui você vai poder crescer e virar supervisor. Vai poder comprar seu carro e visitar sua mãe aos domingos. Eu ainda não tenho carro, mas acho que no ano que vem vou ser promovida e posso tirar minha carteira. Meu namorado já tem carteira, ele quer dar entrada num Uno. Você gosta de Uno?, perguntou. Ela morreu, disse Joaquim. Quem morreu? Sua namorada?, perguntou Suelen. Não, a minha mãe, ele disse. Ela morreu, repetiu. Suelen o olhou triste novamente e disse que era melhor focarem no trabalho. Joaquim concordou. Não queria parecer trágico nem dramático, ele só precisava de coisas objetivas que não o fizessem pensar na perda da mãe e no recente término do namoro. Logo Joaquim compreendeu que bater as metas significava várias coisas. Uma delas era convencer um certo números de clientes que ligavam putos da vida querendo o cancelamento do plano. Os funcionários tinham que atender o maior número de pessoas, ser altamente persuasivos e fazer um atendimento-padrão. E isso significava atender de maneira impessoal, usando frases prontas como “Senhora, eu vou estar efetuando seu plano”. Além disso, alguns atendimentos eram vigiados por um supervisor, ou seja, enquanto você falava com o cliente, alguém do Controle de Qualidade escutava todo atendimento sem você saber. E, assim que você desligava, seu telefone tocava, e o supervisor avaliava seu desempenho. Quase sempre Joaquim recebia uma nota baixa por não convencer quase ninguém a ficar no plano. As pessoas ligavam furiosas pedindo para cancelar, então ele perguntava qual era o motivo e já cancelava sem qualquer contra-argumento. Joaquim sempre achava que os clientes estavam certos. Mas esse não era o atendimento-padrão. Desse jeito você não vai conseguir bater as metas e não vai conseguir seus brindes nem ser promovido, disse Suelen. Assim, aos poucos, Joaquim foi se encaixando no perfil da empresa porque ele precisava ajudar sua avó. Precisa pagar as contas e tentar um cursinho pré-- vestibular. Além disso, ganhava os tíquetes-refeição, que utilizava para fazer compras nos supermercados, e isso era mais um incentivo.  

Semanas após o treinamento, Joaquim passou a fazer o atendimento sozinho. Entretanto, para sobreviver naquele lugar, ele precisava da companhia de um livro. Na época, Joaquim havia começado a ler Terra Estranha, do James Baldwin. Ele se identificava com a decadência do personagem Rufus. O fracasso dele era o seu também, Joaquim pensava. Rufus o ajudava a suportar aquela rotina. Todos os dias ele colocava o livro em cima da mesa onde fazia os atendimentos. Mas Cristiano, o supervisor, da mesma idade de Joaquim, disse que não podia ter nada em cima da PA (Posição de Atendimento). Joaquim contra-argumentou dizendo que não ia ler durante o expediente. Se não vai ler, então pra que ficar com ele em cima da mesa?, perguntou o supervisor. Para eu não esquecer dele, Joaquim disse. Cristiano achou a resposta estranha. Acho que é mais fácil você esquecer o livro em cima da mesa, deixa em casa, disse o supervisor. É que o Rufus me faz companhia, ele disse. Quem é Rufus?, perguntou Cristiano. O personagem principal, eu preciso da companhia dele para eu não esquecer que gosto de livros, ele disse. Cristiano não o entendia. Disse apenas para Joaquim guardar o livro, senão ele tomaria uma advertência, e tomar três advertências era motivo para ser demitido por justa causa, embora Joaquim não achasse nada justo ser mandado embora por colocar um livro sobre a mesa. Por isso, quando Cristiano virava as costas, ele tornava a colocar o livro na PA. Joaquim achava que a presença do livro em cima da mesa lhe conferia certa humanidade. Era um modo de dizer a si mesmo que os livros ainda faziam parte da sua vida, mesmo que tudo o estivesse levando para outra direção.  

Joaquim estava deprimido e aos poucos parou de se importar com a aparência e com as roupas que usava. Evitava se olhar no espelho. Tinha a sensação de estar vivo, mas como se estivesse morrendo. A perda de tempo com coisas que não gostava de fazer era dolorosa. Aquele trabalho não fazia o menor sentido para ele. Desperdiçava o seu tempo e mesmo assim tinha consciência de que era necessário aceitar aquela condição. É o melhor a fazer, ele pensava. O mais honesto era se ver como um doente que aceita o diagnóstico grave e procura um tratamento, não mais para se curar, mas para atravessar a doença com dignidade. Na época, Joaquim já havia se tornado um bom leitor e, embora ignorasse uma série de autores, uma série de livros importantes, ele havia lido o suficiente para se revoltar. Joaquim tinha os instrumentos necessários para uma insurgência contra a vida. Mas seu ímpeto revolucionário era constantemente atropelado pela vida prática. Sentia-se incapaz de contestar as coisas e, na maioria das vezes, preferia se acomodar. Além disso, sentia, sem que se desse conta, um certo prazer com o seu próprio sofrimento. Apegava-se à solidão e à pena que sentia de si mesmo. Como se aquele lugar de resignação e apatia trouxesse algum tipo de recompensa interna. Joaquim se sentia triste e injustiçado. Nesse meio-tempo, passou a beber com mais frequência. Saía do trabalho, passava no bar onde estavam os seus amigos e bebia com eles. Eram todos negros e pobres, e estavam fodidos como ele, pensava Joaquim. Assim, enquanto bebia, às vezes sentia raiva de si por aceitar que não era especial como se achava, que era mais um homem negro comum e que iria morrer como um homem negro comum. Ter uma vida ordinária era a regra, assim como acontece com milhões e milhões de pessoas. Joaquim morreria e ninguém se incomodaria com isso, ele pensava. Além disso, ele se aproximava cada vez mais de Rufus, o personagem de Terra Estranha. Sentia que Rufus era a única companhia possível para suportar todas aquelas horas atendendo telefonemas de pessoas desconhecidas e furiosas com seus planos de internet. Rufus se apresentava como alguém capaz de compreendê-lo, porque Joaquim o compreendia. Era uma relação mútua de ternura e que nenhuma pessoa branca, por mais que se esforçasse, entenderia. O que sentiam em relação ao mundo e à vida apenas os dois sabiam, aquela relação estranha era um triunfo da delicadeza. Porque existiam um para o outro. E foi desse jeito que Joaquim suportou e se enquadrou na Conecta, até se tornar um funcionário-padrão. Atendia com as frases decoradas e impessoais. Também se aproximou dos colegas e partilhava com eles os atendimentos que fazia. Joaquim tentava se integrar. Tentava bater as metas. E um dia, enfim, ganhou seu par de raquetes da marca Conecta. E veio a Suelen lhe dar parabéns. Você conseguiu, Joaquim, você conseguiu, agora você é um Conectado, ela disse com alegria, e ao ouvir aquilo Joaquim teve vontade de chorar porque era uma espécie de vitória dentro da derrota. Ele havia conseguido fazer algo que para ele não tinha importância, mas mesmo assim ficou comovido. Quando chegou em casa colocou as raquetes em cima da mesa e as contemplou por algum tempo. Eram o seu troféu. Dali em diante, sua vida entrou numa rotina da qual ele não conseguia escapar. Bater metas tornou-se seu maior objetivo. Já não cogitava fazer vestibular. Não teria tempo para tanto. Além disso, deixou de trazer Rufus para a PA, na verdade Joaquim se afastou da leitura. Começou a desistir da escrita. Tornar-se escritor passou a ser um plano tão distante e descabido. A rotina e a precariedade venciam o seu futuro.  

Certo dia, durante o atendimento na Conecta, Joaquim recebeu a ligação de uma moça pedindo para mudar de plano porque a internet dela estava muito lenta. Joaquim pediu que ela aguardasse um pouco, pois ia verificar o cadastro. Enquanto procurava os dados, Joaquim teve a impressão de que ela chorava baixinho. Pensou em quebrar o protocolo de atendimento e perguntar se estava tudo bem. Mas se conteve. Quando voltou a ligação, disse: Senhora, desculpe a demora, vou ter de confirmar seus dados e assim poderei seguir com o atendimento. A senhora poderia me confirmar seu CPF? Ela não respondeu, estava com o nariz fungando. Joaquim insistiu, dizendo: Senhora, está me ouvindo? Poderia me confirmar seu CPF? Silêncio do outro lado, até que, após alguns segundos, ouviu a voz fraca e frágil, quase infantil: Eu quero morrer, me ajuda. Escutou aquela frase com assombro. Quando pensou em perguntar se estava tudo bem, ela desligou. Logo o telefone tocou e já era outro cliente. Joaquim derrubou a ligação. Deixou no modo pausa e foi conversar com Cristiano, o supervisor. Para Joaquim pareceu uma situação grave e precisava dizer isso a alguém. Chegou até a mesa dele e narrou o que havia acontecido. Cristiano sorriu e falou para Joaquim não se preocupar. Que é muito comum as pessoas ligarem dizendo coisas como essas. Essa aí liga toda semana. Ela só quer chamar a atenção. Fica tranquilo e volte para o atendimento, estamos com uma fila grande de espera na linha. Não esqueça, precisamos do procedimento-padrão para bater as metas, hoje tá valendo uma caneca da Conecta vai lá, não perca tempo. Joaquim fez uma cara de desapontamento, Cristiano deve ter percebido e, talvez para o confortar, completou: Meu, você não pode salvar o mundo. Se ela quer se matar, que se mate, você nem eu temos nada a ver com isso. Joaquim escutou aquilo com tristeza e voltou para a PA. Tentou continuar o atendimento. Mas aquela voz e aquelas frases ficaram martelando em sua cabeça: Eu quero morrer, me ajuda. Pensou: e se fosse verdade? E se de fato ela estivesse precisando de ajuda, como ele poderia ignorar aquele pedido? Que merda de vida era essa em que uma caneca era mais importante do que saber como aquela mulher estava? Teve vontade de vomitar. Joaquim não estava bem. Ele tinha uma fúria adormecida que parecia dar sinais em seu corpo. Foi ao banheiro e jogou água no rosto. Voltou decidido a entrar em contato com ela. Quando chegou na PA, recuperou o atendimento anterior na tela e foi pesquisar os dados. Nome: Mariana Alves. Idade: 26 anos. Cor: branca. Estado civil: solteira. Depois fez uma ligação para o residencial. Fez três chamadas e ninguém atendeu. Também tentou o celular. Caiu na caixa postal. Então anotou o endereço e decidiu que iria na casa dela ver o que tinha acontecido. Iria naquele dia mesmo, depois do expediente. Aquela atitude o fez regressar à sua própria vida. Era como se ele tivesse acordado da letargia. Uma vontade de viver passou a vigorar dentro dele. O resto do dia ficou olhando para o relógio e querendo que as horas passassem logo. Ele queria ir até Mariana. Talvez salvá-la. Entre um atendimento e outro, Joaquim imaginava como seria a vida dela. E se perguntava por que ela queria morrer e por que tinha dito aquilo para um desconhecido. Tentou procurá-la nas redes sociais, queria que o seu rosto tivesse uma forma. Mas não encontrou nada. 

Assim que o expediente terminou, ele foi para a parada de ônibus. Mariana morava num bairro próximo ao Centro. Ao chegar na frente do prédio, apertou o interfone e ficou esperando. Nada. Começou a pensar que o pior já tivesse acontecido. Por outro lado, sentiu um certo alívio porque não saberia o que dizer caso ela atendesse. E se ela achasse que Joaquim a estivesse perseguindo? E se ela ligasse para a Conecta e fizesse uma reclamação? Seu funcionário esteve aqui me importunando. Pensou em desistir, mas a vontade de vê-la era maior que qualquer ética profissional. Achou melhor falar com o porteiro. Interfonou para a portaria. Oi, tudo bem, estou tentando falar com Mariana Alves, do 801, o senhor poderia me dizer se ela se encontra? O porteiro pediu um minuto, mas antes perguntou seu nome. Joaquim, ele disse, sou da empresa Conecta, vim fazer uma visita técnica. Mostrou o crachá de atendente pela câmera de segurança do prédio. Arriscou que o porteiro não desconfiaria de que estava mentindo. Logo ouviu o clique de abertura do portão. Ao entrar no edifício, ele ainda se perguntava o que estava fazendo ali. Quando chegou ao saguão, o porteiro estava interfonando para o apartamento de Mariana. Joaquim esperava pelo pior. Na segunda tentativa do porteiro, ela atendeu. Dona Mari, tem um técnico da Conecta querendo falar com a senhora. Ela disse alguma coisa e logo em seguida desligou. Dona Mari disse que não pediu visita técnica. Joaquim preferiu não insistir. Bom, deve ter sido um engano, disse, ou talvez ela já tenha resolvido o problema. Despediu-se do porteiro e já ia saindo quando o interfone tocou. Era Mariana perguntando se o técnico ainda estava ali. Meu jovem, a dona Mari disse que você pode subir. Joaquim entrou no elevador e apertou o número 8. Ficou se olhando no espelho. Conforme o elevador subia, seu coração acelerava, mas ele não poderia parecer nervoso. Tentava se tranquilizar. O prédio tinha poucos apartamentos por andar, de modo que foi fácil encontrar o de Mariana. Tocou a campainha, em poucos segundos escutou o tambor da fechadura girando, logo o mistério iria se revelar. Quando a porta se abriu, Joaquim foi surpreendido pela imagem de um homem, de uns 30 e poucos anos. Era branco, usava barba grande e um coque ridículo no cabelo. Estava sem camisa. E aí?, ele disse. Tudo certo? Entra aí. Com o olhar, Joaquim procurou Mariana pelo apartamento, mas não a viu. O aparelho da Conecta tá ali, disse o homem, apontando para a estante. Joaquim fingiu que sabia o estava fazendo. Abriu a mochila como se fosse usar algum instrumento. Pegou um chaveiro porque era a única coisa que tinha. Quando se agachou para mexer no aparelho, pôde ver a porta do quarto entreaberta. Ao se mover mais para esquerda, viu a metade das pernas de Mariana, deitada na cama. Enquanto isso, o homem na cozinha parecia preparar alguma coisa para comer. Joaquim não sabia como fazer para verificar como Mariana estava. Pensou em dizer que precisava conferir a conectividade no quarto. No entanto, quando pensou em dizer isso, Mariana gritou: Traz um sanduíche pra mim também, amor. Aquela frase o surpreendeu. Talvez fosse a prova de que ela estava bem e que talvez seu supervisor tivesse razão. O homem de coque se chamava Juliano, e ao voltar para sala disse apenas: Essa empresa de vocês é uma merda, hein? Sempre dando problema, fora o atendimento que também é uma merda. Joaquim não olhou para Juliano, apenas resmungou um “pois é”. Esperou mais alguns minutos e disse a Juliano que a situação era mais complicada que imaginara e a Conecta precisaria mandar outro técnico para conferir a conexão. Juliano riu com deboche. Depois completou, dizendo que ia ligar para cancelar tudo. Joaquim disse que tudo bem. Que não seria difícil. Juliano ficou olhando para Joaquim e pensou: mas que trabalho de merda desse cara, nem pra me convencer a ficar com o plano. Em seguida, Juliano abriu a porta, em silêncio, para Joaquim ir embora. A porta bateu forte. Ao fundo, enquanto esperava o elevador, ainda pôde ouvir risadas vindas do apartamento. No caminho, ele pensou por que fizera aquilo. No entanto, algo novo e pulsante reverberava nele.  

A volta para casa foi infernal. Era pleno mês de março. Importante dizer que o Rio Grande do Sul é um lugar de extremos: no esporte, na política, e na temperatura não era diferente. O calor quase chegava a ser sobrenatural. Em pé e apertado no ônibus da linha Jardim São Pedro, Joaquim olhava para fora e quase poderia ter certeza de que o asfalto derretia. Naquele dia, a temperatura chegou a 42ºC. Ele estava com sede e suava. Aos poucos, começou a sentir um assomo de enjoo. Sempre ficava enjoado quando era exposto a temperaturas extremas. Já era de tardinha, mas o Sol entrava violento dentro do ônibus. Algumas pessoas tentavam se defender, usando o que tinham para se abanar. Outras apenas aceitavam aquela condição e cochilavam, porque talvez fosse a melhor coisa a fazer. Joaquim estava num lugar caótico indo para um lugar caótico. A viagem durava cerca de uma hora, isso quando não havia engarrafamento na Avenida Assis Brasil. Para controlar o enjoo, Joaquim procurou desviar a atenção. Ele precisava distrair a ânsia. Lançou um olhar pela janela, e o cenário da rua também lhe pareceu caótico e triste. Como se não houvesse saída. Seus olhos aprisionados. Não era possível, ele pensou. Não era possível. Deve haver algo de bonito nisso tudo. Não era possível que a síntese da sua vida era um ônibus cheio num dia insuportável de verão. Então, em cada prédio, cada pessoa, cada rua que passava, Joaquim empreendia a busca por algo bonito que o fizesse doer. Não a dor física. Mas uma dor sutil e invisível, que o atingisse e o desabrigasse. E naquele ônibus suado, com cheiro de gente, apinhado de trabalhadores que rumavam para suas casas com seus sonhos partidos, Joaquim entendeu que aquele microcosmo caótico era o cenário que ele tinha. Deve haver alguma beleza nessa vida fodida de merda, ele pensou. Fechou os olhos. E ele se achava um idiota tateando no escuro em busca de beleza num ônibus lotado a caminho de Alvorada. Era em momentos como aquele que a vida se revelava. Ele teve, ali, a consciência de que a beleza era a coisa mais imprecisa do mundo. Desceu duas paradas antes da sua. Precisava se recuperar. Caminhar o devolvia à dignidade. Joaquim tinha de chegar inteiro em casa porque sua avó precisava do melhor dele. Acontece que ele não tinha o melhor de si. Ele procurava dar o que tinha, o que não era muito. Mas era o que ele tinha. Quando chegou, sua tia Rosalva reclamou que ele havia demorado, que ela já estava atrasada para o plantão no hospital. Joaquim pediu desculpas e mentiu que o ônibus havia quebrado no meio do caminho. Ela o beijou no rosto e disse que já havia dado o remédio das 18 horas. Agora, os outros, só às 21 horas, não esquece, ela disse. Se despediram e Joaquim fechou a porta. Sua avó estava na sala sentada na cadeira de rodas, assistindo tevê. E Joaquim disse: Oi, vó. Em seguida ela o olhou com certo espanto e perguntou quem era ele. Joaquim já estava acostumado com aquela pergunta nos últimos meses. Sou eu, vó, o Joaquim, seu neto, ele disse com gentileza. Ser gentil era uma das poucas coisas que ainda poderia fazer por ela. A avó o olhou novamente, perplexa, e perguntou onde estava a mãe dele. Para Joaquim era dolorido repetir que a própria mãe havia morrido. Mas ele dizia, porque sempre era preciso dizer. Depois que Joaquim respondia todas as perguntas, sua avó regressava a ela mesma, e o reconhecia, e pedia desculpas por não se lembrar dele e por ter esquecido da morte da própria filha. Não precisa pedir desculpas, vó. Às vezes é bom esquecer das pessoas que se foram, senão a vida fica insuportável. A vó Fininha pôs a mão no rosto do neto e disse que Joaquim era muito inteligente e que ela gostava dele. Joaquim retribuiu dizendo que gostava dela também. Depois ele a colocou na cama. A avó Fininha era pequena e magra de modo que isso facilitava na locomoção. Em seguida, Joaquim tirou a roupa da avó e a ajudou a vestir uma camisola. Ajeitou o cabelo dela com grampos. Toda essa rotina o incomodava, não apenas porque tinha de ver a avó nua, mas porque era ele quem fazia aquilo. O neto dela. Era uma cena que o fazia doer, porque a velhice é sempre uma luta pela dignidade. E pensou que um dia ela fora jovem como ele. Deve ter tido sonhos como ele. E com assombro percebeu que sabia muito pouco de sua avó. Incomodava-o mais ainda saber que em breve ela desapareceria. E que sua ausência não seria mais notada. A não ser por ele e pela tia Rosalva. Uma vida inteira de paixões, angústias, perdas e afetos desaparecerá, e o mundo seguirá ignorando essa vida desperdiçada. Foi quando olhou para a mesa onde ainda estavam as raquetes. O seu troféu por ter batido as metas. Olhou-as atentamente. E por algum motivo sentiu-se desamparado, e veio a lembrança daquela professora que o reprovara na sexta série. Não sentia qualquer rancor por ela, mas tinha vontade de um dia encontrá-la e dizer que havia se tornado poeta. Um acerto de contas, não com a professora, mas com ele mesmo. Foi então que Joaquim se levantou, pegou as raquetes, foi até a cozinha e jogou-as no lixo. Depois foi para o quarto, deitou-se, não sem antes voltar a ler, após tanto tempo, o livro Terra Estranha. Na manhã seguinte, Rufus e Joaquim foram juntos para o trabalho, conectados. 

(In: Revista Piauí, Edição 200, maio 2023)