Uma temporada no inferno
(excertos)
Henrique Marques Samyn
08/01
Hoje o dia amanheceu feio, coberto de cinzentas nuvens; todo o céu está chapado, cor de chumbo; tudo parece terrivelmente pálido e patético — e não há sinais de chuva. Dormi mal: acordei com ratos rastejando entre as minhas pernas, assustado, e ainda me deparei com uma lamentável cena: o T. O., junto da parede, falava sozinho, batendo a cabeça contra a madeira. Minha cabeça doía, mas não disse nada para os enfermeiros: nunca se sabe o que são capazes de fazer.
Estive até há pouco sentado lá fora, rodeado por decadentes homens que vagavam como sonâmbulos — como sempre, dizendo disparates, xingando-se uns aos outros, etc. O que sou eu aqui dentro? Nada: mais um ser sem nome. Ninguém conhece os meus livros, ninguém sabe quem eu sou, o brilhante futuro que tenho pela frente. A maior provação para um talento, para um gênio da minha estirpe, é esta: ultrapassar o período que antecede à consagração, quando a glória ainda não existe e não podemos saber ao certo o que nos espera.
L. B. morreu sem ter o seu verdadeiro valor reconhecido; comigo, todavia, isso não acontecerá. Eu levarei, elevarei às alturas não só o meu nome, mas também o dele. Esteve aqui onde estou agora, há tão pouco tempo — em condição, evidentemente, melhor que a minha; contudo, sabia que seu fim estava próximo, e esse não é o meu caso.
O desânimo quase me imobiliza, mas não deixarei isso acontecer: pegarei meus antigos papéis, copiarei as anotações, consertarei meus romances. Tenho uma honrosa missão e não renunciarei a ela. L. B. foi grande; eu serei maior. Preciso superá-lo — disso depende o meu destino; não posso perder nem um só segundo.
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Audaces fortuna juvat.
(In: Uma temporada no inferno, 2022, p. 66-67)
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25/01
Percebi, com imensa melancolia, que já estou aqui há um mês — e me sinto, mais do que nunca, perdido, sem qualquer perspectiva, sem vislumbrar qualquer possibilidade de sair deste inferno. Meus planos todos deram errado; roubaram-me o manuscrito d’O cemitério; todos parecem ter certeza de que eu sou louco, somente eu insisto em dizer o contrário — e apenas para mim mesmo, já que aqui não tenho nenhum interlocutor.
Ontem, depois de tomar um copo do parati que o J. G. conseguiu, tive uma violenta crise de choro, algo que nunca aconteceu na minha vida. Estou esgotado, física e emocionalmente; e, pela primeira vez, tive a sensação, intensa e autêntica, de que sou – custa-me escrever esta palavra — de que sou apenas mais um fracassado. Um fracassado.
Minhas aspirações sempre foram as mais nobres; nunca fiz mal a ninguém. Meu desejo sempre foi apenas este: ter o meu valor reconhecido; ousei, por conseguinte, investir todo o meu dinheiro, tudo o que me havia legado meu pai, e por isso acabei à beira da miséria; ainda assim, lancei-me ao maior e mais importante desafio de minha vida: fazer-me internar neste hospício, a fim de escrever a minha obra derradeira, a obra que o próprio L. B. não conseguiu escrever. E agora, a que estou reduzido? Vago entre os outros como uma sombra: aos olhos de todos, sou apenas um louco — mais um louco, tão estúpido quanto aqueles que aqui ficam a fazer e a dizer disparates. Eu mesmo tive ontem essa visão: vi-me numa poça d’água que havia no pátio, o meu reflexo naquele tosco espelho — minha imagem: tão mais magro, macilento, amortecido pela miséria e pelos sofrimentos em que estou mergulhado. Tenho tido, cada vez com mais frequência, pensamentos de suicídio: seria um gesto à altura do meu atual desespero. O que mais me angustia é a certeza de que estou — eu e tudo o que escrevi — condenado ao esquecimento: tudo aquilo a que dediquei toda a vida ficará perdido nesta casa de loucos: pegarão meus papéis, rasgarão meus manuscritos, rabiscarão todas as palavras, como decerto já estão fazendo com o meu Cemitério. Aqui neste cadafalso, meu fim será mais triste que o do próprio Policarpo.
(In: Uma temporada no inferno, 2022, p. 86-88)