Um dia ela foi flor nos jardins

Apesar de me sentir debaixo de uma chuva de remorsos, me mantive teso penhasco, pendúculo sem flor, escondendo, por trás da epiderme transparente, fraturas expostas numa bandeja cirúrgica estendida como uma cuia à existência. A ideia da morte pesava como um território onde predominava o silêncio, e que para alcançá-lo tornava-se necessário se submeter a um trajeto desconhecido, a transformar a vida em algo destituído de ilusões, um camelo de batalha fatalmente perdida. Amanheci ali mesmo, de mãos postas, desolado ante uma garrafa de cerveja, morna, pela metade, um copo vazio e minha gula sobreflutuando algumas rodelas de linguiça. Senti um sufocante gosto de bosta na boca! Meio dia! Como combinado, estava pronto a seguir o plano traçado por Monet. Como um bate-estaca sonâmbulo e serelépido, me recompus para o ritual. Além da marquise, tal qual uma pestana orvalhada, a avenida de mão-tripla gemia aos afagos dos pneus das baratas Metálicas e Gafanhotos Plásticos dirigidos por espécies de antropoparafusos. Doutrolado da avenida, milhões de vidas embrulhadas por prédios sentados, quadrados, disformes, de cujas janelas se precipitavam arregalados piscantes olhares. No seu canteiro central, no espaço reservado às floreiras, vários sacos de lixos rasgados pelos impactos de um vento frio e forte, exibindo, através dos furos semelhantes a feridas insaráveis: latas de suco e doces, sombras de lábios em guardanapos, seringas, pedaços de TV, luminárias inúteis e caixas vazias. Pelas calçadas, Morcegos e Ratos enrolados em gazes passavam como autômatos de carne e ossos. Aos pés dos prédios, doutrolado da avenida, um out-door chama uma daquelas baratas de “novo membro da família”. Por um instante pensei em recolher minha sombra pisada e ignorada pelos transeuntes entre as mesas, onde algumas Lagartixas classe médias falavam de política e concordavam com tudo. Dois garçons compunham um ballet como duas mariposas tontas. Sentia-me ora amarrado a uma cadeira elétrica, ora como um corpo a espera de reconhecimento numa ante-sala de dilaceração. Instintivamente, por um momento, debrucei-me, sem nenhum interesse, sobre um jornal amarrotado, do dia anterior, que Monet deixara sobre a mesa. No piso sujo, ainda viva, a ultima cusparada de Monet, como uma chaga norteando o seu caminho e o meu. Mesmo pensando que tudo caminhava irreversivelmente para a morte, havia uma expectativa de que algo desviasse o rumo dos acontecimentos. Mas, logo aquela mistura de medo e esperança se desfez com aquele entardescer.

(Cadernos Negros 12, p. 60-61)

 

Meu Pelé, o de todos nós

 

Quem no Brasil, independente de procedência étnica, destino geográfico ou sexo, um dia na vida, não se referiu a Pelé como um gênio?

Outro dia, meu corintianíssimo filho, Abimbola, 12 anos, me perguntou:

 

"Quem é o Pelé da literatura brasileira? Cruz e Sousa ou Machado de Assis?!"

 

Pensei numa tabelinha entre Pelé e Garrincha e numa hipotética troca de passes mágicos entre Leônidas e Friedenreich, frutos negros do canibalismo amoroso luso-germânico. Bati paô (palmas) à reflexão de Gláuber Rocha: é impossível separar as cabeças de Corisco e Lampião.

 

"Mas Pelé é incomparável, Abimbola!", retruco.

 

Neste dia 19, da Bandeira, faz 10.950 dias ou 30 anos, que Pelé marcou contra o Vasco da Gama, o seu milésimo gol. O gênio continuara aquela noite, no Maracanã, um capítulo de sua extraordinária obra, que seria coroada no México, em 1970. Ali, dos pés de Pelé saiu mais um dos momentos de maior alegria do povo brasileiro.

 

A dedicatória de Pelé quando fez o histórico gol foi às criancinhas abandonadas, que deveria ser interpretada como uma alusão à sua infância de menino pobre, filho de Dondinho, um jogador fracassado. Mas foi entendida como demagogia. Assim como teria sido alienada sua afirmação que o povo brasileiro não sabia votar. Driblando a esterilidade da esquerda e o apelo à cumplicidade da direita, a visão Pelé foi profética: hoje, mais do que em 1969, a criança na rua é protagonista da tragédia social brasileira.

 

Garoto-propaganda do regime militar? Pelé, à corta-luz, dribla a leviana alucinação comunista de João Saldanha e as firulas do futebol-negócio de João Havelange. Joões, como o sábio, chapliniano e repentista Garrincha chamava seus infelizes marcadores. Tristes sombras diante do brilho do maior poeta de futebol de todos os tempos.

 

Negro de alma branca! É assim que se diz de quem, neste país, ultrapassa a linha-de-fundo da miséria. Porque a idéia de mobilidade social dos pobres está limitada ao esporte, à música. Pelé, filho iluminado de Ogum, mais que genial senhor da bola, tornou incômodo seu trajeto luminoso da infância pobre e Bauru aos salões da Casa Branca. O Itamarati, até 1958, com seus rios brancos, ruis, santiagos e ricuperos não conseguiu um milésimo da luz que Pelé teceu — para o mundo — a cara "transnegressora" do país da folha seca.

 

Ogunhê, macunaímico, Pelé encarara os zagas da vida: as travas das opções políticas, as tesouras voadoras fratricidas que flutuam sob sua glória e fortuna. Cobram-lhe paternidade responsável à dor da mãe negra da sua filha negra. Pelé não conseguira matar o coração no peito e evitar o gol-contra! Pedem-lhe postura política idêntica a Mohammed Ali. Negam-lhe, porém, as contradições da condição humana na sua particular negreza de ser.

 

Prevista nos rastros de Afonsinho e Feijão I na República Socialista do Olaria e de Sócrates e Wladimir na "democracia corintiana", a Lei Pelé é abolicionista por sua obra e graça.

 

Trinta anos depois do grito de Pelé, a meia-lua da miséria se ampliou. Há cabeça de criança faminta na marca do pênalti. O gol nº 1000 foi o último ato político à criança abandonada do Brasil.

 

Pelé, eu te amo!

 

(In: Germina: Revista de Literatura e Arte. Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/literaturara_nov2006.htm>. Acesso em: 12 de junho de 2007).

 

São Pálido

um dia no rio
tietê correu sangue
como correu no rio volga
como correu nos esgotos de varsóvia
como correu nos vales de áfricas
(e suas veias
borbulhavam gemidos)
lá pras bandas de são miguel paulista

correu sangue
e o sangue foi confundido
com leite
e as mamadeiras percorreram
os corpos deitados
sobre os trilhos
enquanto as locomotivas
não vinham (cheias
de vidas)

sangue confundido
com leite
no vice-versa de putas cabras
que amamentavam a radial
leste de a
feto

(Contra mão. São Paulo: Pindaíba, 1978. p. 27).

 

É fácil ser Flor

ou 

ser Capim 

é fácil 

ser Flor

ou ser Capim

é fácil ser Flor ou ser Capim 

Difícil

é Ser Flor e Ser Capim.

 

http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/arnaldox2.htm

Acessado em 06 de junho de 2007, às 11:26h

 

Texto de Arnaldo Xavier. Charge de Maurício Pestana. Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/etnomidia/humor.html>. Acesso em: 06 de junho de 2007.

 

Diosponível em: <http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2456>

Acesso em 06 de junho de 2007.

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