Milton Santos

Elisio Lopes Jr.

QUEM: Homem elegante na fleuma de um raro doutor negro.

STATUS: Possuído pela ira da impotência, tenta reter a lágrima fatal.


(Diante de um menino negro que tem uma mão pousada na barriga vazia e a outra estendida à espera de esmola.)

 

Você me pede um prato de comida? Um prato de comida exatamente na hora em que milhões e milhões de pessoas no mundo todo estão morrendo de fome? E você quer um prato de comida? Tem comida pra todo mundo. Cadê o seu prato, menino? Vivemos todos num planeta perfeitamente capaz de produzir uma quantidade suficiente para alimentar todas as pessoas de todas as cidades, de todos os países e continentes. O problema não é a quantidade de comida, mas como essa comida é distribuída. As mãos que colhem não são as mesmas que enchem os bolsos. E eu lhe pergunto, menino: cadê o seu prato de comida? Quem decide quem deve ou não comer? A humanidade está dividida em dois grupos: o dos que não comem e o dos que não dormem, com medo da revolta dos que não comem. Eu não me encaixo em nenhum deles. Por que esse olhar de surpresa? Por que sou negro deveria tirar da minha boca e lhe dar? Seu olhar me cobra que o alimente, mas não fui eu que o pari. É assim que pensam todos os que estão empanturrados em seus castelos diante desse seu olhar. Não o coloquei no mundo! Na hora do bem-bom, a fome era outra. Dirão isso, com certeza. Somos, os dois, pretos. Olhe a minha cara, tão preta quanto a sua. Eu sei tanto quanto você o que é ser negro no Brasil. Ser negro no Brasil é todo dia ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado pra mim e pra você, lá em baixo. Ouça, menino, entenda: Esse mundo é uma grande fábula! Então faça o seu papel. Morra.

(Silêncio. Milton se ajoelha de dor e remorso diante do menino impávido.)

O mundo não é bom, menino! A vida não é justa. Nem todos podem comer. Se tirar da minha boca fosse realmente capaz de matar a sua fome, eu o faria. Mas, depois de hoje, tem amanhã, e tem os seus irmãos, e tem os meninos que a gente nem conhece e todos estão com fome. E a fome vai e volta como um fantasma correndo atrás da gente. Nunca estaremos a salvo. Sempre nos resta o medo dessa assombração. Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e devastador. Um medo que invade todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro. Eu tive medo de você. Medo que você olhasse no fundo dos meus olhos e visse a minha fome, a fome que nunca será morta. A fome que eu tento esconder todo dia. Essa é a fome que eu e você vamos dividir pra sempre. Menino! Eu queria ter um peito, cheio de leite e colocar dentro da sua boca. Mas não tenho. Entenda. A fome é, somente porque algo acontece, e onde algo acontece a fome está. Você acredita em Deus? Deus é o todo e está em tudo. Então Deus está na fome.

(In: Monocontos: histórias para ler e encenar, p. 159-160)

 

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