Dona Ivone Lara

 

Elisio Lopes Jr.

QUEM: A grande dama do samba.

STATUS: Suave e no miudinho.


(Agradecendo ao aplauso do público e depois refletindo, ao observar a plateia.)

 

De todos os sambas que cantamos aqui, nenhum tem a melodia da vida real. É tudo ilusão. Um sonho meu. Este é a única canção que eu não consegui compor nesta minha vida. Esse dia não existe em nenhum livro de memória! Essa escola não desfilou, essa roupa, meus filhos me olhando, nada disso é real! E toda essa fantasia só é possível porque eu consegui! Se vocês estão diante dos seus olhos é porque eu consegui: esta preta, aqui, pobre, filha de um operário preto batuqueiro, que morreu carregando ferro nas costas, e de uma lavadeira sambadora, que teve medo, mas se virou sozinha pra criar duas filhas, viúva aos 22 anos. Ela conseguiu, e eu também! Estudei, casei, pari... e, entre uma coisa e outra, guardei um tantinho assim da minha força pra não deixar de acreditar que eu podia. É! Pode chamar esta preta, aqui, de abusada, de folgada, mas eu consegui. E se eu consegui é porque o samba me trouxe, me embalou, me vestiu, lambeu minhas feridas e me curou. Porque essa vida não é doce pra ninguém, né? Mas, pra gente, é pior! O mais amargo da vida é sempre oferecido primeiro pra mulher. E, o amargo, a gente prova desde cedo. Agora, o doce, o doce a gente precisa correr atrás. Eu conquistei o doce da vida e vou lamber os beiços até o final. Não importa se a canção é real ou de fantasia. E se alguém tentar lhe dizer o seu lugar, vá no miudinho, se ajeite na cuíca, rode no pandeiro, respire no cavaquinho... e não aceite! O nosso lugar é na frente, o nosso lugar é no meio da batucada, rodando nossa baiana com orgulho, iluminadas pelo foco da alegria!

(In: Monocontos: histórias para ler e encenar, p. 161-2)

 

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