Torto Arado

Excerto Torto arado - Cap. 21

 

 

Itamar Vieira Junior

 

 

 

Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento.

Esse dia vive em minha memória. Não se apaga nem se afasta ainda que envelheça. O sol era tão forte que quase tudo ao alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intensa do céu sem nuvens. Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grandes manchas em sua camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o chapéu largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. “Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento”, apertou os olhos, olhando para a cova diante de seus pés, “aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: ‘Moço, o senhor me dá morada?’”. De pronto seu olho se ergueu para meu irmão: “Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu”. Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços. “O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa.” Retirou papel e fumo do bolso e começou a fazer um cigarro. “Está vendo este mundão de terra aí? O olho cresce. O homem quer mais. Mas suas mãos não dão conta de trabalhar ela toda, dão? Você sozinho consegue trabalhar essa tarefa que a gente trabalha. Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, gente que não trabalha. Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada.”

Zezé voltou à lida, sem estender a conversa. Meu pai não falou o nome de Severo, mas sabia que ele andava de conversa com o povo da fazenda contando história de sindicato, de direitos, de lei. Estava levando essas conversas para os campos de trabalho. Sabia também que o assunto já devia estar no ouvido de Sutério. Zezé deixou de falar na frente do nosso pai, em respeito, mas voltou ao assunto vez ou outra, desconsiderando seu pensamento. Ele não comentava, mas continuou a indagar sobre as mesmas questões, continuava a expor suas ideias. Dos mais velhos ouviu os mesmos argumentos defendidos por Zeca. Dos mais novos ouviu que seus questionamentos faziam sentido, que seus pais, avós, morreram sem possuir nada. Que o único pedaço de terra a que tinham direito, de onde ninguém os tiraria, era a pequena cova da Viração. Que para aposentar era uma humilhação, pedir documento de imposto ou da terra para os donos da fazenda. Os homens se “amarravam” para entregar alguma coisa, além de explorar o trabalho sem pagamento dos que iam se aposentar. Às vezes chegava o dia de ir para a Previdência e o povo não havia conseguido reunir os documentos de que precisava.

Além da dívida de trabalho para com os senhores da fazenda, não havia nada para deixar para os filhos e netos. O que era transmitido de um para outro era a casa, quase sempre em estado ruim e que logo teria que ser refeita. Os pioneiros não pensavam assim, ou seus pensamentos eram abafados pela urgência de se manter a paz entre os trabalhadores e seus senhores. Ou porque havia uma gratidão pela acolhida que as gerações seguintes já não tinham, talvez por terem nascido e crescido neste lugar. Os mais jovens começavam a se considerar mais donos da terra do que qualquer um daqueles que tinham seus nomes transcritos no documento, que tinha sua cópia disputada e negociada pelos gerentes de forma desvantajosa para eles.

Meu irmão insistiu no assunto, apesar de evitar falar na frente de nosso pai. Vivia com Severo para cima e para baixo, entre um trabalho e outro, para ganhar a atenção dos moradores. “Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos quilombolas.” Era um desejo de liberdade que crescia e ocupava quase tudo o que fazíamos. Com o passar dos anos esse desejo começou a colocar em oposição pais e filhos numa mesma casa. Alguns jovens já não queriam permanecer na fazenda. Desejavam a vida na cidade. Os deslocamentos se tornaram mais intensos que no passado, quando nos transportávamos em animais para outros lugares, cidade e os povoados vizinhos. A vida na cidade, entre viajantes e comerciantes, era atraente. Pesava na decisão justamente o trabalho para os fazendeiros, que foi mantido entre nós e atravessou gerações. Zezé queria dizer ao nosso pais que não nos interessava apenas a morada. Que não havia ingratidão. “Eles que não nos foram gratos, corre boato que querem vender a fazenda sem se preocupar com a gente”, dizia para mim e Domingas. “Queremos ser donos de nosso próprio trabalho, queremos decidir sobre o que plantar e colher além de nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde nascemos, da terra que cresceu com o trabalho de nossas famílias”, completou Severo, numa roda de prosa debaixo da jaqueira na beira da estrada.

Mas o desejo de nos libertar terminou por envenenar nossas casas.

(In: Torto arado, 1a Reimpr., 2019, p. 185-187)

 

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