Oquarentenado e a Quarentena*

 Paulo Dutra

A Quarentena levou com ela serviços e instrumentos, como deve ter sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns instrumentos senão por se ligarem a certo serviço. Um deles era o álcool em gel, outro o papel higiênico, no mercado aqui perto de casa: o ketchup; havia também a máscara cirúrgica. A máscara fazia perder o vicio de tossir em cima dos outros aos mal-educados, porque, usada de maneira correta, tapava a boca. Tinha só duas cordinhas, mas, ainda assim, na cara porca e deslavada de certa mula sem cabeça, era grotesca e torta a tal máscara, mas a ordem social e humana, no caso específico o distanciamento social e humano, nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez a cara porca. Os caixas do Whole Foods, as recepcionistas do hospital e as enfermeiras tinham máscaras penduradas e até te davam uma no dia da consulta (não sei o porquê, nem eram N95), mas só se você não tivesse nem febre nem falta de ar. Porque se tivesse não podia ir à consulta. Mas não cuidemos de máscaras.

Nada demais. Sem pânico. Sem gritaria. No meio dos acontecimentos despertou um dia e estava em quarentena sem saber que estava nesse predicament. Só lembrava que tinha voltado em casa várias vezes. Casa. Casa. Nunca teve casa. Cresceu num apertamento de Cohab. Despertou, não. Acordou. Acordou e deu uma olhida no Zap outra no Face outra no e-mail e finalmente leu as mensagens na caixa postal do telefone (que bom que hoje em dia nem precisa ouvir a mensagem, é só ler o transcript). No Zap aquele monte de Meme sobre a Quarentena (o melhor é o do Chaves lendo com o Seu Madruga, só que em espanhol); no Face textões contra e a favor da Quarentena e contra e a favor da mula sem cabeça, mas todo mundo sem exceção falando, em algum momento, da mula sem cabeça; no voicemail do celular as mensagens, lembretes sobre as consultas no quinto andar do hospital duas vezes por semana. Voltou lá no Face e se tocou que a Quarentena levou com ela também outra coisa. Demorou um pouco para a ficha cair, mas começou a ver que não entendia mais aquela língua (anos depois quando leu este texto viu que seis linhas acima já estava a prova viva) e foi conferir na gramática se realmente estava louco. Consultou a normativa a descritiva a generativa e a subversiva e chegou à conclusão de que louco louco não estava, não. Seria possível que em apenas 14 dias de quarentena a Quarentena tinha tido esse poder devastador de levar embora tantas coisas?

Nos primeiros dias lançou mão de ironia sutil:

À amiga que postou indignada:

“tem q acabar com essa bagaça de quarentena, já deu. O bar que eu bebo tá fechado, pow! LL Viva o mito! bandeira do Brasil”

respondeu no inbox:

Vc bebeu o bar, ué, por isso tah fechado uai J

Depois passou a tentativas de conscientização e reeducação:

Ao amigo que postou todo radiante:

“Vei achei o vídeo do programa religioso que o pastor Mário Duarte fala que a oração é poderosa J J”

respondeu no inbox:

“E aí? Blz? Só pra te dar um toque: dá uma revisada no seu texto aí porque está meio canhestro. Tipo: o vídeo do programa que o pastor fala? O pastor fala o vídeo do programa e fala que a oração é poderosa? Tipo: se a gente inverter a ordem: O pastor falou No programa e não falou ’o programa :0”

E finalmente partiu para a ignorância contra tudo e contra todos (e todas também).

Ao jornalista que escreveu uma chamada de uma matéria no site da internet:

“Senador cassado compra casa que Dilma e Dirceu moraram”

mandou uma descompostura por escrito ao e-mail institucional do analfabeto exigindo seu retorno aos bancos da escola para aprender a respeitar a sagrada norma culta da língua portuguesa escrita.

Os iletrados responderam com desprezo oriundo de desinteresse aos questionamentos e os letrados obviamente chamaram oquarentenado de Dom Quixote, Policarpio Quaresma ou, via de regra, responderam com algum dos corriqueiros comentários homofóbicos ainda existentes e ventilados abertamente mesmo no contexto da corrente falta de ventilators. Estes, digo, aqueles, os comentários homofóbicos, a Quarentena não levou, não.

Àqueles e àquelas que chamaram oquarentenado de Dom Quixote fez questão de retorquir e citar ipsis litteris o erris conceitualsis dos mesmis. Esfregou na cara deles e delas as páginas do Quixote quando ele fabla com as “dos mujeres mozas, de estas que llaman del partido” dizendo “non fuyan las vuestras mercedes, nin teman desaguisado alguno, ca a la órden de caballería que profeso non toca ni atañe facerle a ninguno, cuanto más a tan altas doncellas, como vuestras presencias demuestran.” Claramente são as moças que não entendem a linguagem, tirada dos livros que ele tinha lido, e não o contrário, cacildis! Diferença cabal entre Dom Quixote e oquarentenado. Como por exemplo no dia em que ao ler o post de um amigo, desses que no século 21 escrevem poemas usando a segunda pessoa do singular e chamam o produto final de poesia lírica, que dizia:

... tomara o elixir da juventude ... (não posso reproduzir em sua totalidade o belo textão por questões de espaço e de direitos autorais)

Ao ler o post e as várias laudas que provavelmente comporiam o texto se o mesmo fosse copiado e colado no word e chegando nesse trecho logo aqui acima empacou e passou horas tentando destrinchar o significado da interjeição “tomara” na frase até que finalmente se deu conta de que a Quarentena não somente levou com ela serviços e instrumentos e muitas outras coisas mas trouxe de volta muitas outras como o pretérito mais que perfeito (simples). Se sentiu mais Macunaíma que Dom Quixote ou Policárpio Quaresma porque com a Quarentena a prática de falar em uma língua e escrever em outra foi ressuscitada. 

Não se sabe se foi a COVID-17 ou a constatação de que vivia agora em um mundo cuja linguagem desconhecia, deplorava; uns dizem que foi este, outros dirão que foi aquele, mas a febre e a falta de ar duraram duas semanas e obviamente o Bourbon acabou antes.

Nos delírios da febre resolveu articular um relatório das descobertas que tinha feito (eu na condição de narrador de literatura brasileira contemporânea até queria, em solidariedade aos meus colegas narradores e narradoras da literatura brasileira contemporânea ter dito fizera, mas como isso não muda nem um átomo da história deixo para a tradutora a tarefa) para a posteridade caso a mula sem cabeça e os seus continuassem a mitar. Decretou a morte solene da regência verbal, como fica comprovado nas sétima e oitava linhas do segundo parágrafo. Decretou o inglês como modelo para o uso da preposição em posição posterior: como no caso fartamente documentado no Face do emprego da seguinte estrutura “Então né esse assunto aí eu num quero falar sobre”. Criou um manual prático de expressões com suas respectivas ocorrências e abundância de exemplos das mesmas na novíssima gramática da língua portuguesa:

 

Antes da Quarentena

Depois da Quarentena

 

 

 

 

Em que

que

O caderno que escrevo

Cujo/a

que

A pessoa que Deus é o senhor

onde

que

O bar que bebo

Por que

que

A razão que faço isso

Para que

que

A cidade que vou

Com que

que

A camisa que fui

De que

que

A pessoa que falo

Por quem

que

A pessoa que faço isso

Em quem

que

A pessoa que eu confio

Para quem

que

A pessoa que dei o presente

Com quem

que

A pessoa que eu saio

 

 

 

 

Decretou também a morte da regência nominal apesar da irritação que sua morte causava, como no caso do jovem de 17 anos que veio a óbito na Califórnia durante a pandemia, segundo o autor da matéria, “devido não ter seguro de saúde”. Mas o que mais irritava oquarentenado mesmo era o desaparecimento do para, agora substituído pelo a porque ainda que vá lá que na chamada da internet o jornalista transforme o a em sinônimo de para devido ao escarço espaço reservado a (aqui exemplo de onde as preposições são interchangeable) cada caixinha de chamada de notícias como naquela vez que o tricolor paulista ia trocar de técnico mais uma vez e na chamada oquarentedado leu “São Paulo tem Tuca como favorito a substituir Giardine” e o São Paulo nem era favorito ao título (tava em oto patamar) o que inclusive levou ao caos total do (des)emprego do para e do a representado na chamada sobre a dívida do craque de cabelos amarelos “Juiz mandar Neumar pagar R$ 88 milhões para União” (tal chamada deixou oquaretenado escalafobético por horas e horas tentando entender quem estava em desunião e por isso precisava de 88 milhas do craque para que a união entre as partes se reestabelecesse), ainda que vá lá que na chamada da internet o jornalista transforme o a em sinônimo de para devido ao escarço espaço quando se deparou com tal confusão nas belas páginas daquele maravilhoso romance em que o pica-pau que nem o do desenho escolhia a próxima árvore a bicar o golpe foi duro demais para o já debilitado sistema imunológico doquanrentenado. Claro que enquanto manteve suas ofensivas direcionadas a jornalistas e amigos e amigas de Facebook, doutorad@s ou não, não entrou no radar dos Simão Bacamarte de plantão. O caldo entornou foi quando a nossa augusta literatura brasileira contemporânea se transformou em alvo preferido doquarentenado e quando ele chegou ao cúmulo de sugerir (veementemente, com exemplos e tratados; com análises literárias e papers nos periódicos B2 – porque os A1 e A2 sempre reprovavam) que os narradores e narradoras de literatura brasileira contemporânea parassem de lançar mão do vocabulário e da sintaxe do José de Alencar e do Machado, de empregar os cacofônicos pronomes oblíquos átonos, deixassem de lançar mão do hipérbato, e, principalmente, que deixassem o pretérito mais que perfeito (simples) no século dezenove, já que é seu lugar de direito. Foi nesse momento que a equipe do hospital próximo orientada por um pedido oficial do consulado brasileiro às autoridades médicas do Estado do Novo México recolheu oquarentenado. De fato, o recolhimento tardou uma semana ainda devido à dúvida por parte das autoridades brasileiras no Brasil em relação ao colocamento da máscara e à jurisdição consular e por isso o pedido foi enviado ao consulado do Brasil em El Pueblo de Nuestra Señora la Reina de los Ángeles em vez de ao consulado do Brasil em Houston.

 

*Conto inédito em português, publicado em tradução em inglês na revista Review, n.101, 2021.

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