abliterações

                                 Paulo Dutra

A testa é um pedra onde os gemidos sonham
Sem cerveja adunca nem capim gelado
As costas são um tempo para lavrar a pedra
Com postes de urina e luas e correntes

Chuvas azuladas sobre os corais
torcendo seus braços tenros crivados 
de confetti calibre 9 milímetros
que desmembram sem sangrar.

Tudo isso eu já vi.

Porque a pedra ceifa sementes e ossadas
urubus e vira-latas de luz,
mas não dá vozes, nem geleia de mocotó, nem vento
só muros e muros e outros muros sem praças

Tá lá na pedra o bastardo, mais um filho pardo
Já é ou já era? Olha só o barulho das nuvens
a vida cobriu o filho sem pai de enxofre corado
e deu pra ele umbigo de saci Pererê

Já era. As formigas entram pela boca
O mormaço lúcido afunda o peito
O amor enlameado de lágrimas de valão
esfria no auge do esgoto a céu aberto

Quem viu. Um silêncio fedoroso descansa
aqui tem um corpo que endurece esfumaçado
Aqui não tem rouxinol nem pomba branca
Nesse buraco cheio de furos sem fundo.

Quem vai desamarrotar o manto sagrado?
Aqui não tem música, não tem choro de meio-fio
Nem quem espante os urubus e as varejeiras
Aqui só tem olhos inchados secados fechados
Esbugalhados

Onde estão os homens de vozeirão
que batem no peito e bramam fuzis
e acoturnam canelas bundas barrigas caras,
com quem sonham as ossadas?

Aí é que eu queria ver
Digo, aqui. Diante do corpo preto e vermelho
Pra me dizerem onde está mostrar uma saída
Pra essa morte livre atada nesse mais um

Aqui só tem aquelas

Mulheres mães irmãs tias avós namoradas vizinhas
pretas cospem canos estilhaçados de fuzis
(e que)
mastigam raiva lágrimas e sangue

do outro poema

O que eu quero é que me mostrem um riso
De matagal de carrapicho amargo e raiz à mostra
Pra levar o corpo pardo pra escutar as lavadeiras
Besouros grilos bem-te-vis

Encontrado na encruzilhada quadrada do sol
Fingido de moleque inerte com caxumba
Encontrado à luz do dia ao canto das baratas
Na fumaça congelada de asfalto quente

Aqui não tem aliteração a seco de correias
dentadas sem graçha que rangem metálicas clanc clanc
Peças quadradas em buracos redondos abliterações.
Aqui ninguém cobre com jornal
Não quero que se acostume com essa morte...
Dorme, voa, descansa com ou sem paz.
Sem aliterações sem abliterações
Pode ir mano, não esquenta não

                    (In: abliterações, Malê, 2019, pp. 43-45.

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