Torto arado

(excerto, Rio de sangue, cap. 1)

Itamar Vieira Junior

 

Meu cavalo morreu e não tenho mais montaria para caminhar como devo, da forma que um encantado deve se apresentar entre os homens, como deve aparecer por esse mundo. Desde então, passei a vagar sem rumo, arrodeando aqui, arrodeando acolá, procurando um corpo que pudesse me acolher. Meu cavalo era uma mulher chamada Miúda, mas quando me apossava de sua carne seu nome era Santa Rita Pescadeira. Foi nela que cavalguei por um tempo, não conto o tempo, mas montei o corpo de Miúda, solitária. Sou muito mais antiga que os cem anos de Miúda. Antes dela, me abriguei em muitos corpos, desde que a gente adentrou matas e rios, adentrou serras e lagoas, desde que a cobiça cavou buracos profundos e o povo se embrenhou no chão como tatus, buscando a pedra brilhante. O diamante se tornou um enorme feitiço, maldito, porque tudo que é bonito carrega em si a maldição. Vi homens fazerem tratos de sangue, cortando sua carne com os punhais afiados, marcando suas mãos, suas frontes, suas casas, seus objetos de trabalho, suas peneiras de cascalhos e bateias. Vi homens enlouquecerem sem dormir, varando noite e dia no rio Serrano, nas serras, nos garimpos, entocados na escuridão para ver o brilho mudar de lugar. O diamante tem feitiço e no breu podemos ver seu reflexo, de fazer cegar uma coruja, quando anda de um lugar para outro, como um espírito saindo de uma serra, cruzando o céu e descendo num monte ou num rio, na forma de uma luz que chamava a atenção mesmo distante. Os homens enlouqueciam assim, esperando o amanhecer e abrindo fendas no chão onde achavam ter visto a luz entrar, para não encontrar nada. Enlouqueciam sem comer ou tomar banho. Morriam dentro dos buracos ou de tentar apanhar as pedras das mãos dos que haviam encontrado. Morriam de fome, porque toda a energia de seus corpos e mentes era para apanhar o diamante. Carregavam as famílias para os mesmos caminhos de loucura e muitos endoidavam, do dia para a noite, sem sinal ou aviso. Vinham dar suas obrigações aos encantados nas casas de jarê, a Mineiro e Sete-Serra, matavam bichos, derramavam sangue para poder encontrar o brilho. Não queriam guardar as pedras, não queriam admirar sua luz, queriam encher seus picuás para poder ter uma casa ou a liberdade. Às vezes, um ou outro encontrava seu bambúrrio, comprava sua liberdade, montava seu negócio. Alguns viravam donos de escravos, e davam adeus à servidão e à busca que lacerava suas mãos e suas almas. Mas a maioria só encontrava a quimera e a loucura, o assombro, o desassossego, a dor e a violência. Vergava sob a própria ilusão, derrotado, acocorado num amontoado de cascalhos. 

Meu povo seguiu rumando de um canto para outro, procurando trabalho. Buscando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores. Não poderiam arriscar, fingindo que nada mudou, porque os homens da lei poderiam criar caso. Passaram a lembrar para seus trabalhadores como eram bons, porque davam abrigo aos pretos sem casa, que andavam de terra em terra procurando onde morar. Como eram bons, porque não havia mais chicote para castigar o povo. Como eram bons, por permitirem que plantassem seu próprio arroz e feijão, o quiabo e a abóbora. A batata-doce do café da manhã. "Mas vocês precisam pagar esse pedaço de chão onde plantam seu sustento, o prato que comem, porque saco vazio não fica em pé. Então, vocês trabalham nas minhas roças e, com o tempo que sobrar, cuidam do que é de vocês. Ah, mas não pode construir casa de tijolo, nem colocar telha de cerâmica. Vocês são trabalhadores, não podem ter casa igual a dono. Podem ir embora quando quiserem, mas pensem bem, está difícil morada em outro canto." 

Me embrenhei entre o povo que os donos da terra chamavam de trabalhador e morador. Era o mesmo povo que me carregava nas costas quando eram escravos das minas, das lavouras de cana, ou apenas os escravos de Nosso Senhor Bom Jesus. Me acolhia num corpo, acolhia em outro, quando tinha abundância de água nessas terras. Mas o diamante não nos trouxe sorte nem bambúrrio. O diamante trouxe a ilusão, porque, quando instalaram as dragas, os rios foram se enchendo da areia que jorrava das grutas. Os rios foram ficando sujos e rasos. Sem abastança de água para pescar já não tinham porque pedir nada a Santa Rita Pescadeira. Ah, chegou a luz elétrica, e quem pôde comprou sua geladeira. Esses peixes miúdos que restaram por aqui não matam mais a fome de ninguém. Envergonham até quem pesca. 

Então, ninguém atinava a aprender as cantigas da encantada. Até ficaram surpresos quando apareci, certa vez. Me olharam e riram como se eu fosse uma assombração. Miúda roçava, mas sua paixão era pescar. Era acordar de madrugada e seguir sozinha para a beira do rio. Levava os filhos, mas quando eles foram embora, Miúda pescou sem eles. Dormia na beira do rio sem medo de onça nem de cobra. Eu era a sua encantada, que domava seu corpo sem assombro. Protegia meu cavalo. Meu cavalo que dançava atirando a rede, no meio da casa do curador Zeca Chapéu Grande. Meu cavalo não usava sapatos porque seus pés eram as minhas raízes e me firmavam na terra. Seus braços eram minhas nadadeiras e me moviam na água. Montei o meu cavalo por anos, que nem posso contar. Mas agora, sem corpo para me apossar, vago pela terra. 

(In: Torto arado, 1a Reimpr., 2019, p. 203-205)

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