Guerrilha e Solidão


A Revolução Federalista encerrou-se deixando uma grande sombra nos campos e no orgulho dos gaúchos. Encerrava-se o século dos heróis que formariam galerias, famosos por suas frases, legados e feitos imortais. Enquanto que, sobre os pastos, arroios e sangas, havia ainda o cheiro sanguinolento dos homens. O minuano soprava fantasmas nos ouvidos das crianças, lamentamos nos soluços das mulheres vestidas de preto a morrerem junto com seus bordados à beira dos fogões. Era tempo de perguntas, reflexões. Momento de espera e de caminhar sem destino. Peões desempregados, ex-escravos, bugres e castelhanos ainda vagavam pela fronteira sulina, como filhos à procura de pais que nunca conheceram. As grandes coxilhas verdes, os capões de mato, as ruínas das charqueadas e as curvas dos rios calaram-se aos olhos dos homens.

Entardecia e, mesmo sem a presença do sol, a terra, os pastos e o ar mostravam-se castigados pelo intenso calor dos últimos dias. O cavalo baio, de pelo judiado e aspecto raquítico, descansava atordoado embaixo da árvore. Antonio trabalhava com a bombacha arregaçada até o joelho, pés descalços, sem camisa e o lenço vermelho amarrado ao pescoço. Recolhia as ferramentas: duas enxadas velhas, sendo uma com apenas metade do cabo. Há dias utilizava-as nas pequenas hortas que construíra no terreno arenoso próximo à sua casa. Era um rancho estruturado de madeira e barro e o telhado de palha-de-santa-fé trançada aos cipós do mato. Estava exausto. Sentia uma forte dor na cabeça e um chiado no ouvido. Ficara tempo demais sob o sol nos últimos dias em que trabalhou. Há doze anos era escravo dos homens, foi peão e soldado. Agora era escravo da terra e o sol não lhe dava guarida. Sentou-se num toco de árvore e olhou para o horizonte. Seus olhos identificaram a visão magra e destorcida de sua mulher, que trazia o pequeno filho pela mão. O menino chamava-se Francisco, vestia apenas uma camisa cinza, que lhe cobria todo corpo, carregava uma velha pá. A mulher, de nome Arlinda, usava um vestido de algodão aos farrapos e os seus cabelos enredavam-se num emaranhado de fios negros e duros. Ela se aproximou calada, ausente de qualquer tipo de movimento facial como uma velha fotografia abandonada. Antonio olhou para a mulher, entretanto ela, sem largar a mão do filho, entrou em casa, detentora de um silêncio fiel. Antonio levantou-se e foi até as hortas que construíra. Agachou-se e observava para ver se já crescia algum milho ou batata. Tocou na terra, sentiu a quentura do solo. Deslocou-se até onde o cavalo pastava, soltou-o.

─ Sei que daqui não sai ─ disse Antonio. Depois, olhava para o céu raro de estrelas como um menino à espera de uma estrela-cadente.

A noite não conseguia amenizar o calor. Antonio revirava a erva-mate que fizera há uma semana. O fogão, um amontoado de pedras, sustentava a panela preta. A criança, encostada no poncho dobrado sobre algumas palhas, dormia. ─ O guri cansou ─ disse Antonio ao observar a criança que cochilava. Com a colher de madeira, a mulher remexia a panela, assoprava as brasas, abanava com a mão e limpava os olhos irritados pela fumaça. Virou-se e foi descascar dois inhames que colhera no banhado. Olhou para o filho, disse:

─ Deixa o pobrezinho, pegou muito sol enterrando o irmão à beira daquela sanga.

Antonio sorveu o mate pela primeira vez e suspirou. O estalo das brasas salvava a casa do silêncio fúnebre. A mulher abria a panela e jogava dentro os inhames já picados. Remexeu-os um pouco e afastou-se. Foi na direção do filho. Sua mão alisava o crânio de ralo cabelo, depois tocou naquele braço magro. Por fim, tomou em suas mãos, um de cada vez, os pezinhos do menino. Acariciou-os e observou as rachaduras no calcanhar. Antonio sentava-se próximo ao fogo. Uma longa, sorvida, a água queimou-lhe a garganta e seus olhos estáticos procuravam respostas de mistérios, soluções nas paredes rachadas da casa. Os mosquitos o picavam, mas de seu corpo magro não arrancavam nenhuma expressão.

Antonio tornou a piscar os olhos quando seus dedos sentiram o calor do prato de alumínio que a mulher lhe ofertava. Orientando-se, Antonio olhou à volta como se procurasse algo há tempos esquecido. Levantou-se. Voltou-se para o menino que ainda dormia, depois viu a mulher que o encarava. Os olhos dela faziam perguntas que jamais responderia. Antonio deslocou-se e soltou o prato ao lado do filho.

─ Deixe para ele ─ disse Antonio ─ Precisa se manter vivo, ficar forte para ajudar o pai na plantação ─ e sentou agarrado à cuia, ao lado da pequena e velha chaleira.

A mulher foi até o menino e o acordou. Levava lentas colheradas aos lábios do filho que mal se mexiam. Incentivado, Francisco esforçava-se para jantar.

─ Come filho ─ disse Arlinda. ─ Precisa se manter vivo, ficar forte e, depois, irá para bem longe daqui.

(Guerrilha e solidão, p. 11 – 13)

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