Por uma poética do negro e do feminino

Maria do Rosário Alves Pereira*

A poesia de Lia Vieira presente nos Cadernos Negros transita entre a abordagem do tema negro e do feminino. Com relação ao primeiro, há poemas em que a autora também trabalha com o lugar subalterno ocupado historicamente pelos negros, produzindo uma obra de denúncia social ao retratar as mazelas das quais estes ainda são vítimas. É o caso do poema Curió, publicado nos Cadernos Negros 19, em que um negro é abordado por uma blitz policial e torna-se vítima da violência. E, também, do poema Agnus Dei:

Dividem

a socos e pontapés

o respiradouro

o pão dormido

as guimbas de cigarro.

Parce nobis Domine (Perdoai-nos Senhor)

 

AGNUS DEI

 

Disputam:

a cola, o esgoto, o papelão

o último gole

os restos da vida

Exaudi nos Domine (Guiai-nos Senhor)

 

AGNUS DEI

 

Flagelos, mutantes

peregrinos, sonâmbulos

Sociedade do futuro:

MENINOS DA CINELÂNDIA

Miserere nobis (Tende piedade de nós).

(Cadernos Negros 15, p. 61)

A autora problematiza a condição de miséria e indigência em que se encontram os meninos da Cinelândia. Eles dividem a fome, a violência, enfim, compartilham o descaso social. Vivem os “restos da vida” e, ao mesmo tempo, são “a sociedade do futuro”, o que indica uma perspectiva pessimista com relação a esses jovens. Provavelmente continuarão sobrevivendo em condições subumanas, sem o mínimo de dignidade. O eu enunciador do poema pede, então, o auxílio e a misericórdia divinos para uma sociedade que fecha os olhos para os desvalidos.

É interessante ressaltar a intertextualidade que se constrói com o texto bíblico e a idéia de sacrifício presente no texto: o Cordeiro de Deus é aquele imolado para salvar os pecados da humanidade. Os meninos da Cinelândia também o são, todos os dias, em meio à violência e às más condições de vida. Enquanto permanecem na miséria, outros (uma elite branca) se regozijam em meio a uma vida farta e sequer reconhecem a existência dessas criaturas necessitadas do suporte da sociedade.

A temática negra não aparece, contudo, apenas sob a ótica do protesto. Em outros textos há um caráter de valorização da cultura e os heróis do passado são exaltados em toda sua magnitude. No poema a seguir, é perceptível a erotização de Zumbi, que se funde com o eu-lírico e em seu corpo deixa impressa a força dos antepassados, como uma espécie de inscrição, uma tatuagem que está ali para lembrá-lo de suas raízes e de sua cultura. Ambos tornam-se um “uno indivisível”, mostrando que Zumbi dá vida, coragem, inspiração capaz de saciar a “sede de mel” que permeia sua raça:

Meu Zumbi

De corpo suado

De olhos meigos e doces

De boca ardente...

Nenhuma paisagem se iguala

à visão que tenho de você

Explosão de raça em forma de ser

o que mais quero:

Entrelaçar nossas peles retintas

Me animar de vida,

Buscar meu céu em sua terra

Saciar minha sede de mel em seu mistério.

 

Tatuar-te em meu corpo

para ter a certeza de tê-lo

preso-colado-filtrado em mim

na própria pele

rasgando a epiderme

que nem laser apaga

que aos poucos me rasga

e se fixa e me marca

num uno indivisível.

(Cadernos Negros 15, p. 58)

A autora retoma a imagem do herói épico, apropriando-se dele para reconstruí-lo sob o ponto de vista de um eu lírico feminino e desejante, em um movimento de afirmação do ser. Zumbi, nesse contexto, poderia referir-se, por exemplo, a um amante concreto, não necessariamente ao herói negro. O guerreiro virou amante, e o erotismo é uma forma de libertação do prazer feminino e dos valores patriarcais até então instituídos.

Essa abordagem do tema feminino também aparece em textos como Nós voláteis e Ânsia, nos quais a sexualidade da mulher é problematizada e seus desejos mais recalcados vêm à tona da escritura. A mesma perspectiva é encontrada no poema Infinita viagem:

As noites cariocas

Descida de Afoxé

Comida mineira

Vaquejada

Tambor de creoula

As belezas do Pantanal

Pôr-do-sol de Guaíra

Fenômeno das pororocas

O estrondo de Sete Quedas

Canoa quebrada

Arraial D’Ajuda

As eclusas do Tietê

Corrida de búfalos do Marajó

Nada que vi se compara

Com o que sinto ao fazer amor.

(Cadernos Negros 15)

As belezas brasileiras, tais como seus pontos turísticos e suas atrações naturais, não são tão exaltadas pelo eu-lírico do poema como a relação sexual, momento em que o ser feminino liberta-se do servilismo e da posição subalterna assumida ao longo dos séculos. O lugar ocupado pela mulher não é mais o do ser passivo que não assume sua condição feminina e esconde sua sexualidade, ao contrário, vivencia-a em todo o seu potencial.

Já em seus contos, Lia Vieira expõe esse mesmo sentimento de exclusão social/racial através de suas personagens. O conto Por que Nicinha não veio? retrata a história de uma presidiária que recebia constantemente a visita da mãe, sendo muito ligada a ela afetivamente. Nas palavras de Esmeralda Ribeiro: “ (...) o sentimento do Quarto de despejo está presente porque a narradora trabalhou com um dos lugares ‘ditos’ do negro, que é a cadeia; e quem fica lá, numa análise à distância é a escória da sociedade.” (2002, p. 232). A filha havia sido presa por roubo, o que já dá indicações da situação social em que vivia. No entanto, um dia a protagonista é surpreendida pela triste notícia de que Nicinha, sua mãe, havia sido atropelada, e não mais voltaria a vê-la. A narradora resume esse sentimento de perda: “Apodrecera o fio a que estava atada e despencou nas profundezas...” (Cadernos Negros 16, p. 63). Ou seja, o último elo de esperança a que se prendia a personagem havia se desfeito.

Essa mesma perspectiva pessimista, no sentido de retratar o lugar social a que o negro ainda está vinculado, aparece no conto He-Man. Um menino vai assaltar uma casa no Natal a fim de roubar um presente para o irmão que insistia “em não entender que o Natal é coisa para rico” (Cadernos Negros 16, p. 65). Chegando lá, deparou-se com todos os cômodos da casa trancados e como única alternativa levou a espada do He-Man, em um último lampejo de esperança para agradar ao irmão. As personagens de Lia Vieira nestes contos, portanto, encontram-se encurraladas em uma situação tal de alijamento da sociedade que parecem sequer ter forças para vencer as barreiras que lhe são impostas.

Conforme o que foi exposto, percebe-se que tanto a poesia quanto a prosa escritas por Lia Vieira trazem um sentimento de assumir-se sim como negro e como mulher, mas também buscam desvendar as mazelas de uma sociedade que insiste em mantê-los numa posição secundária que colabora para a manutenção do status quo vigente.

Referência

RIBEIRO, Esmeralda. A narrativa feminina publicada nos Cadernos Negros sai do quarto de despejo. In: DUARTE, Eduardo e DUARTE, Constância (org). Gênero e representação na Literatura Brasileira. Vol. II. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

* Maria do Rosário Alves Pereira é Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG e professora do CEFET-MG, campus Belo Horizonte. É coautora, entre outros, de Linhas Cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicidade (2011) e coorganizadora dos volumes críticos A escritura no feminino: aproximações (2011) e Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016).

Texto para download

Prefácio a Racismo no Brasil e afetos correlatos

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Em Racismo no Brasil e afetos correlatos (2013), Cidinha da Silva oferece perspectivas plurais, por meio de um labor textual que visa contemplar situações-encruzilhadas de mundo. Ao se deparar com a condição humana de sujeito-dilema, a escritora enaltece a virtude presente neste sentido existencial. Negá-lo seria enclausurar a subjetividade própria e alheia, salienta Cidinha da Silva, por meio de uma literatura percussiva, cuja textura-atabaque faz entoar palavra-ações, que ao mesmo tempo, embalam e abalam os sentidos do público-leitor. Assim, o livro de Cidinha da Silva também se revela como poética da repercussão. Nela, um ritmo dançante se faz presente. Trata-se aqui de uma musicalidade capaz de exprimir o fino da alteridade. Essa importante percepção do outro como constituinte do eu se revela em timbres graves e suaves, aos quais Cidinha da Silva empresta voz afinada. Na roda viva das palavras, a nossa contadora de histórias melhora o silêncio com cantos em prosa para ouvidos de fino trato.

São muitos os assuntos matutados por quem faz questão de digerir os fatos, apreciando cada um dos seus nutrientes, sem entrar na pressa cavalar que devora o mundo hegemonicamente. “Serena o grito burro dos que não querem perder anéis! Eu, guardador de águas, ainda não aprendi a ser rio”, proclama, com sabedoria-griot, a escritora, que defende o aprendizado continuado e fluente proporcionado pela inteligência e pela sensibilidade como forma de desarticular a ignorância e o embrutecimento que tomam conta de sujeitos alienados e prepotentes. Cidinha inventa cada achado filosófico interessante em meio a perdidos ideológicos medíocres que impregnam tantas opiniões e pontos de vista. A autora faz questão de beber na fonte das primeiras intenções e não das primeiras impressões. Ela sugere um jeito dialético e delicado de compreender as situações de crise. Notável exemplo desta postura crítica se encontra na análise da derrota do lutador Anderson Silva:

Naquela manhã você tombou, mas continuou grande, como sempre foi, porque caiu com dignidade, jogando o jogo dentro da regra. Sucumbiu à escolha da estratégia errada e à precisão do oponente. Pronto, nada mais. Para os urubus, entretanto, foi prato cheio. Quiseram fazer do Spider uma vítima do Anderson. Bestas ignaras, não sabem que o risco quando dá certo traz alegria, quando dá errado, sabedoria. E você sabe aprender, malungo.

Passado o susto do nocaute, te convido a vir conosco, Anderson. Vem ouvir Cauby e Cavalo-marinho.

Atando as duas pontas de diferentes textos, “os urubus” e as “bestas ignaras” são de uma espécie predatória, composta “dessa gente que perde os dedos, mas mantém os anéis”. Estas expressões de linguagem, na escrita de Cidinha da Silva, se situam em uma arrojada atmosfera semântica. O aspecto mais relevante da semântica criativa reside na formação de significações marginais, que violam as associações verbais habituais, denominada de “ambiguidade significativa”, segundo o formalista russo Boris Ejchenbaum. Inspirada nestas “significações marginais”, Cidinha da Silva saboreia os leitores com uma formulação conceitual humorada e inteligente: trata-se, por exemplo, do “sociologuês”. Presente no programa global Esquenta e seus inúmeros derivados, ressalta a escritora, o sociologuês “é a mudança conservadora, a transformação pelo alto, velha conhecida”. Em outras palavras, partindo do melhor que há em nossa fortuna metafórica de cunho popular: “é o ponto de mutação em que a Coca se revela Fanta”. Ou seja, conforme o parecer lúcido de Cidinha da Silva: “a diversidade torta”, apresentada no programa de Regina Casé, revela “a miscigenação subordinada, a mistura, nome popular e contemporâneo que até hoje não conseguiu provar sua efetividade para os pretos, tampouco diminui os privilégios dos brancos”. A cronista, com bom humor, aproveita a oportunidade para fazer um pedido ao garçom: “nem Coca, nem Fanta, uma garapa, por favor”. Uma garapa: bem mais saborosa do que “uma boa média”.

À luz de importante questão racial e étnica, faz-se imprescindível compreender como se comportam o preconceito e a discriminação racial. Cidinha da Silva, com precisão, assim os define:

O preconceito e a discriminação racial são parte de um todo chamado racismo, um sistema ideológico espraiado e arraigado em instituições e corações, que esvazia da humanidade seus alvos, os serviliza e constrói privilégios para aqueles que exercem o poder. O preconceito racial, então, diferente de outros tipos de preconceito, motivados hipoteticamente pelo desconhecimento, está a serviço da manutenção de um sistema de poder, de exploração que, no Brasil, tem cristalizado o lugar de mando dos brancos em detrimento dos negros. A discriminação racial, por sua vez, é o braço ativo do racismo, é o que define a eficácia de seu modus operandi.

Desse modo, adverte Cidinha da Silva que mistura sem envolvimento ainda é muro, longe de representar a tão sonhada ponte, simbolizando a convivência respeitosa e pacifica entre os sujeitos. Quem se afirma negando o outro pensa que chicote é argumento. “Não dá para fugir dessa coisa de pele”, já diria o poeta-músico Jorge Aragão, com a ironia dos inteligentes. Cidinha da Silva reforça essa tese, afirmando que muitos, no Brasil, vêm fugindo desta questão fundamental.

A escritora reflete, em seus textos, o empenho político das comunidades negras, voltado para viabilização de medidas formais e atitudes maduras em respeito à diversidade. Diversidade que precisa ser compreendida como direito de sermos iguais, quando a diferença nos inferioriza, e o direito de sermos diferentes, quando a igualdade nos descaracteriza. Esta plataforma de princípios fundamentais também se faz presente nos movimentos coletivos em prol de grupos subalternizados, tais como mulheres, homoafetivos e indígenas, como bem destaca a autora. Racismo, machismo e homofobia são praticas inaceitáveis que violam a saudável dinâmica plural que rege as identidades individuais e coletivas, bem como seus estilos de vida e suas formulações culturais.

Cidinha da Silva busca, com os seus textos, desarmar as blindagens impostas por aqueles que desprezam o outro e conduzem as suas identidades de forma arrogante e amarga. Trata-se de uma escrita empenhada na defesa da alteridade sincera como virtude essencial. Ao brindar a existência na essência plural, a cronista abraça Eva Oléria e Poli Preta, respectivas mãe e namorada da cantora-diva Ellen Oléria, que ajudam a protagonizar a subjetividade negra e homoafetiva de maneira ímpar: “era como se limpasse com amor os corações turvos que nos apedrejam e apertam gatilhos, nos impedem de viver, nos matam”. Na conclusão desta crônica elogiosa às personalidades em destaque, é emocionante a solução estética encontrada por Cidinha da Silva, ao propor uma descrição cinematográfica – digna do olhar onírico de um Akira Kurosawa – referente ao episodio tornado ilustre, graças a uma subjetividade apurada capaz de captá-lo:

Enquanto isso, no Parque da Cidade, a mais budista entre os Orixás sacode as árvores e as saias, nos lembra da transitoriedade do corpo, da impermanência das coisas, transpõe a morte e nos devolve a alegria. Quanto a ti, Pedro, que és pedra e sono, resta contemplar o bambuzal em lúdica esgrima com a Senhora dos ventos.

A educação sentimental também se faz presente nos conselhos amorosos de nossa prosadora, no bom sentido nelsonrodrigueano, isto é, sem moralismo e ar professoral:

Ter o ego ferido é algo que nos enlouquece, dilacera o orgulho, mortifica a vaidade. Quando você ama uma pessoa profundamente, alguém que nunca te amou tanto assim, você sabe, sabia, mas digamos que o amor dela te bastasse, afinal você amava demais, amava pelas duas, você quer que o amor se realize a qualquer custo. Você ainda ama e se ilude ao achar que seu amor é grandioso e superior, a ponto de contaminar a amada. Contaminará nada! Ela quer se ver livre de você, do seu amor pegajoso, sufocante, e o que ela faz? Diz que tudo não passou de um grande equívoco, você foi um ombro amigo. Letal! Transfigurar-se em ombro amigo é letal para qualquer ego vivo!

Cada um só é feliz com o outro e só nele se encontra como um ser pleno. É preciso o abraço que nos faça sentir inteiros. Assim explica Cidinha da Silva, a partir de um romantismo visceral, o amor como um apelo. O amor é comunhão, desejo de absoluto, procura de completude, vontade de abraçar o infinito. Só o outro nos faz sentir fortes e em paz. A razão fria tende a desprezar o amor e decompô-lo em ilusão e loucura. Mas o amor também é sabedoria, energia, partilha e plenitude. Quem ama quer se dar. Sua magia faz parte da música da vida, de nossos desejos, nossa aposta, nossa incerteza, nossos erros e nossos medos; nos torna fortes e frágeis, ousados e desprotegidos. A cronista assim mostra que a dinâmica básica do ser humano é o pathos, o sentimento, o cuidado, a lógica do coração. Mais do que o cartesiano cogito ergo sum: penso logo existo, vale o sentio ergo sum: sinto, logo existo. Até porque, por trás do animal racional, que está com a faca e o queijo na mão, encontra-se o animal sentimental, movido pela fome.

Avanços e retrocessos afetivos e comportamentais ganham análise profícua no livro de Cidinha da Silva. Entre os novelos e novelas que marcam as páginas da vida, a cronista mostra as máscaras nas linhas e a verdade entre as linhas confeccionadas pela teledramaturgia brasileira. Por exemplo, foi reforçado em uma novela global de grande sucesso o estereótipo dirigido à população em favelas: “a autora de Salve Jorge está esculachando a favela. Poxa, é uma moçada jovem que não trabalha, não estuda e só tem quatro ou cinco tipos de ações: batem perna, batem boca e gritam, postam coisas na internet, toma sol na laje e dançam, do funk ao pagode. De quebra, fecham com o pessoal do movimento e planejam subir na vida arrumando marido rico”. Em contrapartida, na opinião de Cidinha da Silva, Lado a lado foi um marco novelístico para o reconhecimento dos feitos da comunidade negra no Brasil. O casal Zé Maria e Isabel, interpretados respectivamente, por Lázaro Ramos e Camila Pitanga, ofereceu inúmeros exemplos de inteligência, sensibilidade, beleza, ética, solidariedade, coragem, trabalho, perspicácia e empreendedorismo. Ao analisar os capítulos de Gabriela, Cidinha chama a atenção para a interpretação de Juliana Paes, que confere complexidade à protagonista do romance de Jorge Amado. Além disso, a cronista destaca, ainda, a desconstrução do machismo de plantão que impõe um padrão simplório aos afetos: “Houve quem reclamasse de que o turco comia Gabriela com os olhos, ao invés de comê-la como se devia. Tolinhos! Nacib não é bobo e come Gabriela como ela gosta, não como a testosterona imbecilizada prescreve”.

Outro indicativo louvável de defesa à alteridade se revela no elogio à divergência, marca registrada do estilo Cidinha da Silva. Aconteceu, virou manchete! Mas, e o que não aconteceu virou o quê? A cronista vai à cata do mínimo e do escondido ignorados pela mídia do máximo e do exibido. Em “tempos sombrios de velocidade da informação desacompanhada da qualidade de compreensão”, a autora assim caracteriza a contemporaneidade, sendo esta cada vez mais corrompida pela mídia frenética, que apresenta como linha editorial destacar o vulgar e rejeitar o importante. Bússola da opinião pública, a imprensa vem se distanciando cada vez mais deste papel social, ao promover, por conta da síndrome da novidade, assuntos e valores supérfluos e irresponsáveis. O filósofo Walter Benjamin, em Experiência e pobreza (1933), lamentava com pesar: “ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’”. A promoção de celebridades vazias exemplifica o afã midiático de promover modismos como se fossem verdadeiros feitos. Com desconfiança sábia, a cronista demonstra como a imprensa não economiza espaço para promover celebridades. Cidinha foi direto ao ponto: “celebridade não é pessoa, é espetáculo ambulante, e quando bom e eficaz, não morre, eterniza-se em business”.

Na contramão da cobertura midiática que foi solidária às reclamações da classe patronal diante da PEC das Domésticas, Cidinha da Silva escreveu umas das melhores reflexões já apresentadas sobre o tema em questão. “O giro da roda num país racista sempre emperra nos privilégios da branquitude. A bola da vez é o trabalho doméstico que passa a ter direitos similares aos dos demais trabalhadores apenas no século XXI, e são ainda questionados”, salienta a autora.

Destaca-se também o teor do livro voltado para avaliação criteriosa de condutas pessoais. Por exemplo, sobre o presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Joaquim Barbosa, Cidinha apresenta parecer sóbrio, na contramão da euforia geral que se construiu em torno da imagem dele:

Vejo-o como um operador de Direito, muitíssimo bem preparado, exercendo com competência, legitimidade e dignidade, o cargo para o qual foi escolhido e para o qual é muito bem remunerado. O mais é nossa sede implacável de ícones negros que, por vias tortas, o transforma em super-herói.

Desvencilhando-se do maniqueísmo que endeusa ou demoniza pessoas, Cidinha da Silva prefere o nitzscheano caminho de reconhecer as potencialidades do individuo enquanto “humano demasiadamente humano”:

O que mais me anima na figura humana de Joaquim Barbosa é a possibilidade de conviver com uma referência negra que sofre dores domesticas na base da coluna por nunca haver se curvado. É o preço cobrado por não ter-se deixado vitimar pela tergiversação travestida de flexibilidade. Poucos de nós estamos dispostos a pagá-lo.

Agindo assim, Cidinha da Silva se mostra uma exímia retratista da condição humana, enaltecendo sua pluralidade e, assim, desconstruindo uniformidades que embaçam a paisagem social, prejudicando a percepção aguda da natureza multicolor nela existente. Os textos da autora são reflexões exuísticas que convocam autenticamente as origens da palavra diversidade, a saber: o diferente, o dessemelhante, o que aparta do caminho, o que distrai; a digressão, em suma: tudo o que diverte, isto é, desencaminha, desvia, diferencia. Ressaltam com qualidade tais sentidos a voz autoral e a multiplicidade temática-argumentativa que sustentam o primor de Racismo no Brasil e afetos correlatos. Como sugestão de trilha sonora para melhor saborear a obra em questão, recomenda-se Eu chego lá, na voz marcante de João do Vale.

 

* Marcos Fabríco Lopes da Silva é Doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE/UFMG). Jornalista, poeta e professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal.

 

Texto para download

Questões da afro-brasilidade nos poemas de Cyana Leahy-Dios

Eduarda Rodrigues Costa*

Cyana Leahy é uma intelectual que se destaca no circuito literário contemporâneo, contribuindo tanto com a escrita poética e ficcional, quanto pela via do trabalho acadêmico, no que se refere ao ensino de literatura. Neste sentido, torna-se relevante atentar para a situação em que seu texto é produzido, em especial o poético. Para esse trabalho, foi escolhido o volume Seminovos em bom estado, obra de 2003 que reúne uma seleção de poemas seus publicados entre 1989 e 2001. Nestes textos, é possível observar uma voz feminina a relatar sua percepção de mundo traduzida num olhar para as coisas cotidianas dotado de lirismo, humor e mesmo melancolia.

Apesar de o texto estar marcado por uma voz poética marcadamente feminina, questionamentos de outra natureza são levantados por seus versos. Neste trabalho, pretende-se discutir outro tópico também abordado e não menos relevante na obra da autora: a condição a que o afro-descendente é submetido em nosso país. A forma com que a poeta trata tal questão denuncia o modo cético com que percebe as relações interétnicas na atualidade, identificando-se com o oprimido, sem, contudo, assumir uma postura de comiseração e nem mesmo de militância. Sua denúncia perpassa pela sensibilização do leitor a partir da exposição de uma realidade crua e objetiva. No poema “cena rodoviária”, a partir de uma imagem urbana e corriqueira, é possível notar o caráter efêmero do relacionamento entre um negro e uma branca demonstrado pela autora:

No ônibus
a moça branca faceira
flerta
o moço preto bonito
 
Trocam bancos se avizinham
se dão mãos braços bocas
se bolinam publicamente
contam moedas dos bolsos
- poucas para o motel
 
Súbito
ela se pinta
se penteia
se afasta
[...]
 
O moço preto bonito
guarda moedas no bolso
guarda mãos no bolso
guarda os beiços no bolso
 
Vê a faceira donzela sair
se afastar célebre
maquiada
sem olhar para trás
 
O moço preto bonito
suspira
aprende e
aprende
(Seminovos em bom estado, p. 37)

Em se tratando de casais interétnicos, ao contrário do que se costuma encontrar na literatura, no poema acima é um homem negro e uma mulher branca que compõem o dueto e não o inverso. Além disso, nele, a figura feminina é quem desempenha a ação do flerte. Essa talvez não seja a questão mais relevante no poema, quando se nota uma maior identificação do eu lírico com o elemento masculino, que por sua vez está colocado na posição de “outro”, por ser negro e pobre.

Da mesma forma como a mulher branca se aproxima, ela se afasta “sem olhar para trás”, enquanto “o moço preto bonito/ suspira/ aprende e/ aprende”. O sujeito lamenta-se por ter sido deixado, e seu aprendizado pode ser lido como a conclusão de que seria muitas outras vezes descartado por mulheres brancas, devido a sua cor. No poema, a figura feminina, interessada na excentricidade do “moço preto bonito”, aproxima-se dele a fim de ter um envolvimento casual e nada mais. O poema expõe o tratamento do negro como algo exótico, que é desfrutado pela mulher branca como objeto de desejo apenas.

Na mesma linha cética, em “resposta ao amigo” é feita uma crítica ao conformismo, àqueles que acreditam que a afro-descendência é respeitada, quando é, no máximo, tolerada:

Numa carta você me falou de países in and out,
da morenice para fora, da brancura pálida interna,
da pele que espelha a alma
da esperança resistindo em minha queixa
 
[...] Você precisa aprender
que espontâneo se escreve com s,
que in and out é pouco
e que, mais que tudo, há buracos tão profundos
que a pele adere ao curtume
e esconde as cicatrizes.
Amigo, nem tudo aquilo
que brilha na praia é ouro;
na praia também
o peixe morre pela boca
ainda que seja quente, carnuda e macia.
(Seminovos em bom estado, p. 42).

No poema acima, o eu lírico questiona a construção da identidade étnica a partir da negação da cor, do branqueamento por dentro e por fora. Apesar da pele ser negra, a alma é branca e a tez passa a refletir esta postura. A alma pálida do interlocutor, ou seja, sem cor, pode ser entendida como sinônimo da não identidade. Ele é um ser alienado que não percebe o quanto ainda é colonizado e nem a maneira estereotipada com que é visto pelo outro. O eu lírico ressalta em que mãos está, ou melhor, permanece o poder e lembra ao amigo que as marcas sofridas pelo povo negro podem estar escondidas, porém há cicatrizes guardadas pela história. A partir de um trocadilho feito com os ditos populares “Nem tudo que reluz é ouro” e “O peixe morre pela boca”, o eu poético alerta o interlocutor para que este busque enxergar além das aparências e passe a questionar o modo como é aceito na sociedade.

Essa atmosfera de descrença é também encontrada em “banzo”, poema que traz uma reflexão do sujeito que é levado a deixar seu lugar de origem e obrigado a conviver em terra alheia. O tema negro, evidenciado logo no título, permanece ao longo do poema, de modo que o exílio já mencionado representaria a mesma espécie de atrocidade que os africanos sofreram no Brasil, durante o período escravocrata. Segundo o discurso do eu lírico, o exilado não deve se sujeitar às privações a que é submetido e nem aceitar como verdade a palavra do outro em detrimento da sua. No poema, o eu lírico chama os desterrados à reflexão:

Quem vem do mar e do mato não pode sair de casa
se aventurando por terras porcamente navegadas
disputar a cada dia o pão em hóstia
o sangue em vinho
enquanto dizendo amém amém amém
e rir e fazer de conta que uma ilha é cercada de mar
por quase todos os lados
desaprender que uma ilha é um deserto
que o chão é pântano e o céu é chumbo
revolver a geografia resolver que o dentro é fora
que o certo é errado e
a certeza de que o bom é ruim
 
cada canção de exílio é sem palavras é só canto
é banzo triste
é cavaquinho é violino sozinho
uivando em noite negra
toda canção de exílio retorna e sobe
como nuvem branca levando um pedido ao céu mas
 
nesta ilha o céu é chumbo
sem nuvem de vôo alto para levar mensagem
de pedir para voltar
(Seminovos em bom estado, p. 31-32).

A metáfora do mar aparece na primeira estrofe como um meio pelo qual se desloca e, mais adiante, ela passa a representar o oposto: assume o caráter de barreira, denotando a impossibilidade da transposição. Na segunda estrofe, o poema incorpora parodicamente o tema da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, transformada pela poeta em “banzo triste”: manifestação do desejo de retorno
à terra natal. Para o eu lírico, o estado de extrema melancolia em que fica prostrado o exilado não pode ser expresso em palavras, mas somente pelo canto que deveria ser levado aos céus por uma nuvem. Porém, na ilha em que se encontra o povo negro, o céu de chumbo impede que esta mensagem chegue ao seu destino. Resta, então, o lamento.

Outro signo carregado de metaforicidade já identificado no poema e que reaparece no último trecho é a ilha, que denota o lugar do isolamento, das privações e da falta de perspectivas. Nela, até o céu aparece como algo hostil, pois é comparado ao chumbo, oferecendo uma imagem de horizonte fechado, tomado por nuvens carregadas, abortando qualquer comunicação com algo mais distante.

Em “senhores, eu vi” permanece esse sentimento de desolação do sujeito com a realidade que o circunda:

Eu vi um homem parado em pé
na esquina entre o bar a praça e o mar
dizia coisas desconexas
sacudia as mãos
e de longe todos preferiam distância
 
Eu vi um homem negro e sujo
de pé na esquina
dizendo coisas desconexas
olhos fechados
repetia a cantilena
a novena a novela o responso
olhos fechados mãos trêmulas
em movimento
um semi-homem imundo
recitava a oração
gnocchi macarrão nescau com leite
cafezinho abacate com leite filé
com fritas chopp gelado sorvete
canelloni pizza
desordenado o menu
 
Era um alien parado ali
de pé na esquina
por onde passávamos todos
os bem alimentados os de bem
os de olhos abertos passo firme
mãos nos bolsos
(Seminovos em bom estado, p. 70)

O trecho acima descreve a figura de um homem negro faminto e perturbado mentalmente, de modo que este pode funcionar como metáfora para a grande população de rua, composta majoritariamente por afro-descendentes. Porém, esta não parece ser a única discussão presente no texto. O sujeito que observa o mendigo também transmite suas impressões sobre o que vê e parece falar por si e pelos outros que viam a cena. Estes “bem alimentados” não se mostram sensibilizados com a situação, mas apenas preocupados com a própria segurança, e consideram tal sujeito como um “alien”, ou seja, um ser de outra realidade, um não humano, “um semi homem imundo”. Aflora, então, a crítica aos que não se solidarizam com o outro, àqueles que preferem ficar alheios aos problemas sociais, encarando-os como elemento externo a sua realidade.

Em outro momento, no poema “trilogia ensandecida” o eu lírico se apropria da história até então instituída de Branca de Neve e a recria com uma leitura diversa:

3. ‘Branca de Neve’
 
Branca de Neve
matou todos os seus anões
(de tédio de raiva de susto)
 
Menos um
que ela guardou
na prateleira da copa
para comer devagarinho
nas horas de lazer
(Seminovos em bom estado, p. 102-103).

A voz que se apreende no último excerto parece querer desmontar a idealização de pureza e bondade que compõem a personagem da clássica história infantil. Ou melhor, pretende-se desvincular tais características do adjetivo “branca”, de modo que o mesmo não necessariamente precisa estar associado a uma significação positiva. Essa necessidade de reversão de valores, identificada no trecho acima, revela a preocupação da autora em trazer para sua poesia uma discussão bastante pertinente: a necessidade de problematizar estereótipos como os que associam o “branco” a um campo semântico positivo e o “negro” ao extremo oposto.

Ao perceber as inflexões levantadas ao longo do comentário, entende-se a relevância do trabalho poético da autora para a discussão de assuntos que a sociedade insiste em manter silenciados. Seus textos ilustram muito bem o preconceito étnico e o lugar marginal a que estão relegados os afro-descendentes, além de, a certa altura, retratar a necessidade de reflexão crítica por parte desta população que muitas vezes renega sua identidade étnica. É pertinente afirmar que esse fundo ideológico está relacionado ao papel de educadora que Cyana Leahy-Dios também executa, quando se pensa na literatura como importante formadora de leitores mais críticos e conscientes.

 Referência

 LEAHY-DIOS, Cyana. Seminovos em bom estado. Rio de Janeiro: CL Edições, 2003. 

 

* Graduada em Letras pela UFMG.

Texto para download

Prefácio de Negra Efigênia, paixão do senhor branco

Eduardo de Oliveira

Anajá Caetano, autodidata que se envereda pelos ínvios caminhos das “belas letras” mais por vocação que mesmo por força de eventual diletantismo, inicia a sua vida literária com uma genial e bem-sucedida tentativa de reconstituição histórica por meio do romance.

Pelo visto, não será este livro a sua última obra; contudo há de ser o que melhor manifesta a sua verve criadora e a sua vigorosa tendência de esteticista irrequieta e temperamental.

Negra Efigênia, paixão do senhor branco, por si é a afirmação eloquente do que acabamos de ponderar; é a obra com a qual, aliás, Anajá Caetano estreia auspiciosamente no mundo das letras.

Retrata, com possível fidelidade em tais circunstâncias, todo um panorama político, social, econômico e religioso da época da fundação da cidade de São Sebastião do Paraíso, do interior do Estado de Minas Gerais, ali pelos princípios do século passado, citando com graça e vivacidade de espírito episódios e personagens; a atmosfera de luta e disputa de prestígio desencadeada entre os Maciéis, representando estes o nativo, contra os portugueses da metrópole, nas pessoas dos Barreiros, evidenciou aquele “caldo de cultura” sob cujo elemento ideal iam se plasmando, lentamente, os anseios de independência e de liberdade do povo brasileiro.

Sem qualquer preocupação de apresentar-nos um trabalho unicamente de tese, o livro de Anajá Caetano, entretanto, é bem entremeado de passagens, que, no mais das vezes, registram todo aquele sabor, aliás, muito ao gosto da natureza mística do negro, e que, nos instantes da sua exteriorização, escorria dos diferentes rituais ou cultos religiosos de procedência africana, denso e fecundo, cristalizando suas formas “negrificadas” em soluções sincretistas, hoje incorporadas inteira e definitivamente à beleza coreográfica do nosso bonito, original e opulento folclore.

Com pena ágil e nervosa, logra a autora reconstruir, num rasgo de rara felicidade e lucidez, todo aquele clima vivido entre o senhor e o escravo, entre os homens de Coroa e os da Colônia, entre os portugueses e os nativos, com tal exatidão e equilibrado senso artístico, que os exageros que comumente emprestam a estes tipos de literatura um colorido peculiar e fascinante – naturalmente facultado pela ficção – se tornaram desnecessários. Assim é que Anajá Caetano, com este romance, revelou-se, de pronto, uma escritora de talento invejável, cujos méritos de criar ficção histórica se confirmarão ao longo do tempo. Com este trabalho, fica-lhe assegurado um lugar de destaque entre os que melhor fizeram deste gênero um motivo de afirmação literária e uma fonte de manifestação estética; este romance de costumes recorda-nos Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, e tantos outros, pelo que nos é lícito cognominá-la de a “romancista dos escravos”.

Em Negra Efigênia, paixão do senhor branco é nos permitido, de início, vislumbrar vasta e grandiosa paisagem por vezes patética de desconcertante, brutal e inumana, mas sempre enriquecida por conteúdos líricos da vida brasileira em que os escravos, no seu labor inútil, deveras espantoso, relembravam as gravuras de Holbein, reproduzindo quadros da velha França feudal, de lavradores a conduzir charruas pelos campos verdes, ligeiramente excitados pelo vigor poderoso do outono para as quais George Sand, a baronesa Dudevant, endereçava sentidas e comovedoras palavras.

[...]

Profundamente exatos e terrivelmente dolorosos os acontecimentos narrados por Anajá Caetano acerca da vida dos escravos ao sopé das “Casas-Grandes”, dentro e ao redor das senzalas, na labuta dos campos e nos suplícios dos troncos instalados nas glebas de cultivo, à maneira de sinistros pelourinhos.

Coronel Galdino, dona Sinhá e capitão João encarnam bem o papel do “homem rico”. Tião, Bendita e negra Efigênia o dos “Homens de Trabalho” de que nos fala, com tamanha amargura, a autora de Valentina, Lúcia Aurora Dupin.

Carece dizer que há ainda os personagens que simbolizam a virtude sem mácula, o bom senso, enfim, o lado humanitário das criaturas perdidas nos socavões da vida e que, na arguta criação de Anajá Caetano, estão espiritualizadas nas figuras corajosas e obstinadas do padre Thomás, Antônio Bento e capataz Juliano. Romance assim escrito com tal força, cujos ingredientes são as próprias precariedades contidas nas vicissitudes humanas, está fadado a calar fundo nos corações e na inteligência dos homens esclarecidos da nossa Pátria. Talvez Anajá Caetano, na sua pureza e simplicidade, não desejasse tanto. Daí a razão por que não encontraremos nas páginas de Negra Efigênia, paixão do senhor branco aqueles salpicos de sarcasmo nem a mais leve galhofa, com intuito de abrandar as duras e verrumosas descrições do romance, mesmo porque a época por ela focalizada não era para brincadeiras. Contudo, o leitor há de encontrar aqui e ali despretensiosos laivos de ironia, quase imperceptíveis, delicados, sutis mesmo, com que a autora, na sua singeleza, pretendeu atenuar a intensidade dramática a que os leitores estariam sujeitos a experimentar.

Além do que, nos seja justo ressaltar, há nas páginas, impregnadas de dor e de esperança, uma sublime mensagem de otimismo e de fé nos destinos da Humanidade, a atuar, por assim dizer, como um convite à meditação, excitando as gerações dos nossos dias.

O importante desta verdade, porém, é que saibamos interpretá-la diante da grandeza do momento histórico que atravessamos, oferecendo-a ao povo, tangido pelas suas aspirações de luta, de justiça e de progresso, abalado e estremecido que está, pelas mais saudáveis inquietações patrióticas.

Que se não configure nem se confine, por conseguinte, o grito desesperado da Negra Efigênia, paixão do senhor branco, nos estreitos limites de uma denúncia sem objetivos ou sem remédio.

É escusado dizê-lo. Enquanto houver um dos componentes da nossa comunidade, cuja sua imensa maioria permaneça excluída do contexto nacional, por força do analfabetismo que lhe acarreta, entre outros males, a sua falta de qualificação, a sua baixa renda “per capita”, o seu desestímulo à luta a ao labor edificante, o seu marginalismo, a sua miséria e a sua morte prematura, a voz das personagens a que se refere a romancista Anajá Caetano, que sofreram e batalharam com heroísmo e galhardia pela completa extinção do trabalho escravo em nosso País, continuará ferreteando a consciência coletiva dos homens desta Nação da América e a nossa sensibilidade de criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus.

(São Paulo, janeiro de 1966.)

Texto para download

Race and Communion in “Floating Power”

Genny Petschulat

In the introduction to the Afro-Brazilian short-story collection Women Righting, Geni Guimarães’ story “Floating Power” is summarized as a call for the education of black women in order to continue the progress of the Afro-Brazilian race. Yet besides this goal, Guimarães’ story also points out the dire need for improvement in the education of white children so that fear and racism might be eliminated from Brazilian society (Women Righting, 21). The young teacher-protagonist in the story wishes to accomplish both of these goals, but by the end her efforts lead her to the discovery of her own role in this process of racial harmonization.

Both this particular story and the anthology in which it is published have examples of what Christina Christie deemed to be the two separate elements of African influence in contemporary Brazilian literature: first, the introduction of the negro motif as subject matter and second, the importance of negro authorship in the Brazilian literary canon (263). “Floating Power,” told from the first-person point of view of a young black school teacher, reveals this female protagonist’s thoughts as she begins a very difficult first day of teaching elementary school children. Entering her new job nervous, excited and hopeful, the young teacher immediately finds herself in an embarrassing situation when a “sweet, beautiful and white girl” refuses to enter the classroom because she is afraid of her new black teacher. When the headmistress discovers the little girl’s uneasiness, she is ready to solve the problem by removing the little girl and placing her in a class with a white teacher where she will be more comfortable, and the transfer ought to be a quick, quiet, and simple solution (Guimarães, 67). This is a prime example of what Anani Dzidzienyo calls a special “etiquette” in Brazilian racial relations which resists any confrontation with or discussion of the country’s racial situation (qtd. in Kennedy 200). In this mindset, if the girl is unhappy because she does not want a black teacher, conflict must be avoided at all costs. However, the teacher proves to have what Dzidzienyo calls a “disposition to challenge the ‘etiquette’” when she challenges the headmistress’ proposal and asks permission to try to persuade the little girl to stay in the class. When the headmistress agrees to give her one day to win the little girl over, the teacher recognizes for the first time the high duty she has to prove her capabilities to this tiny prejudiced person. In an interview with Charles Rowell and Bruce Willis, Geni Guimarães claims that “prejudice is ignorance” (811), and it is indeed at this moment in the story that the teacher becomes determined to rectify the little girl’s ignorance, thereby curing her of immature intolerance. Here there is an assumption on the part of the black teacher that challenging the girl’s intolerance will bring about an improvement, a positive change that will make the girl somehow better or happier. While there is no need to question the teacher’s motives on behalf of herself, since reducing racial prejudice will obviously result in more respect directed towards people like her, her motives on behalf of the little girl must be examined a bit more closely.

As the story progresses, this little girl is repeatedly characterized as being afraid, and the fear is explicitly connected to her discomfort with cross-racial connection in a school setting. She is “tearful,” “uncertain,” “even a little frightened” (Guimarães, 69). She is probably not used to interacting with black adults, and she remains cautious, sizing up this new situation. Yet the more the girl is characterized by her fear, the more the teacher emphasizes a growing sense of duty to remove this irrational fear, to make the girl feel happy, comfortable, and at ease. After promising herself that she will find a means of changing the little girl’s mind, the teacher admits, “I needed to. I had to, both for her and for myself” (Guimarães, 69). This determination hearkens back to what the author referred to in an interview with Rowell and Willis as the “duty of resistance” (811). In the face of the passive discomfort of the little girl, the teacher takes action. Allowing the girl to sit in a special seat and “take care of” the teacher’s pocketbook is a way to make the girl feel privileged, but it is not a privilege that is undeserved; by accepting the teacher’s offer, she benefits by finally finding away to let go of her fear.

As the divide is gradually bridged between the two alienated people, another theme comes into the spotlight: humanization of the other. When the girl begins to feel more comfortable, she innocently reveals her own vulnerability by drawing a picture of a dog with no tail. Her explanation that her dog puts its tail between its legs when her grandpa drinks sheds light on her unique personal struggles. The stereotypical polarity of the oppressed, underprivileged black as a category and the oppressing, privileged, and discriminating white as a separate category is shattered, and instead both parties are characterized not by such flat stereotypes, but rather by a rich humanization acknowledging the suffering and the joys of each. If the reader at first thought the white little girl a privileged snob, she is now presented as a very vulnerable creature who also must endure undeserved suffering, just as the teacher refers to her own “tumultuous” childhood (Guimarães, 69). It is at this point that the teacher and student achieve what Agier, in elaborating on the system of racialism, would call the merging of two opposite “true interest groups” that have been established in a binary system where racial phenotype is attached to social rights and “legitimate cultural differences” (247). Yet despite these differences and the conflicting interest of opposing racial groups, the teacher and the student in the story have found a very common ground in their simple human suffering, and they are also able to share common, simple little joys like a lunch of bread and airplane butter (Guimarães 71). Guimarães herself admits in her interview that she is attempting to portray, above all else, a “human way of life” (812).

Indeed, the beauty of the brief scene where the teacher and student share bread and airplane butter is in this human connection, where the goal is not only racial harmony or the elimination of fear and violence, but something more than that. It is a type of communion between two individuals, where difference is forgotten in the moment of sharing something of value. The teacher’s reaction to this moment is powerful and emotional. She was already beginning to develop the protective, maternal feelings that started to bloom the moment she stepped in the classroom and saw the “agitated little ones” (67), but by the end this sensation has blossomed into something deeply emotional and powerful. Her goal accomplished and the little girl won over, she feels the effect of a figurative afterbirth (Guimarães, 71). The teacher plays the role as both a maternal and messianic figure. Through her efforts she has birthed a sense of trust in a frightened child, or perhaps she has given the child an invaluable opportunity to be reborn into a more peaceful life where she will find harmony with others, no matter their color of skin. She calls herself a shepherd, one who leads her people towards harmony. The black woman has multiple roles, but all point to her duty to resist racial prejudice for the sake of humanity at large.

Her crusade to win the girl over, thus doing justice to both races, is won in the end. She has provided a prime example of leadership. She is proactive without begin aggressive, vengeful, or violent, and it is only by carefully and persistently demonstrating her love that she accomplishes progress and healing.

Works Cited

AGIER, Michel. Racism, Culture and Black Identity in Brazil. In: Bulletin of Latin American Research 14.3 (1995): 245-264. JSTOR 21 Mar 2010.

CHRISTIE, Christina. African Influence in the Brazilian Portuguese Language and Literature. In: Hispania 26.3 (1943): 259-266. JSTOR 21 Mar 2010.

Guimarães, Geni. Floating Power. In: Women Righting. Ed. Miriam Alves and Maria Helena Lima. London: Mango Publishing, 2005. 67-71.

Kennedy, James H. Political Liberalization, Black Consciousness, and Recent Afro-Brazilian Literature. In: Phylon 47.3 (1986): 199-209. JSTOR 21 March 2010.

Rowell, Charles H.; Willis, Bruce; Guimarães, Geni. Geni Guimarães: An Interview. In: Callaloo 18.4 (1995): 810-812. JSTOR 21 Mar 2010.

Texto para download