Representação de Minorias: A “Reversão do Centro”

 

Fernanda Rodrigues de Figueiredo*

 

O centro me expulsa, me expele, me lança na periferia,
o centro da periferia me expulsa ainda mais para sua periferia.
À tarde, quando, às vezes, observo tais montanhas, penso
no que elas esconderiam do outro lado que não vejo, não alcanço.

Jussara Santos

 

Em sua apresentação ao livro De flores artificiais, Ivete Lara Camargos Walty afirma que Jussara Santos expressa tecnologia, tradição e poesia na busca da palavra. A obra é uma coletânea de nove contos de linguagem simples e, por vezes, subjetividade poética diluída. Como temáticas, inscreve situações cotidianas de racismo e de discriminação de classe. São marcantes os desfechos surpreendentes, o trato com a palavra, que leva a momentos de encantamento poético, e a visão de mundo. Os personagens vão de pessoas simples, como D. Ercília a indivíduos mais complexos pelas reflexões e buscas que carregam, a exemplo da personagem narradora do conto “Das duas palavras ditas ao coronel”.

O olhar de Jussara Santos tece um ponto-de-vista negro, com uma linguagem carregada de poeticidade, que vai marcando com traçado forte suas reflexões sobre os seres periféricos (negros, pobres, mulheres, meninos de rua) e sua condição social. A temática negra surge pela via de um olhar agudo que vai das situações de preconceito à busca do indivíduo negro por um lugar na sociedade distinto do que lhe é imposto.

Em entrevista1 ao Portal Literafro, Jussara Santos declara ter feito uma “reversão do centro”. E, de fato, a autora enfoca não o espaço do senso comum, aquele que é tido como central e mais importante, e a partir do qual desconsideram-se as manifestações culturais periféricas. Nesse sentido, constrói textos que falam dessa tensão e desestabilizam os estereótipos que recobrem as representações do Outro. Neste trabalho serão abordados três contos que ilustram a representação das minorias e a reversão do centro: ”A vez da caça”, ”Sob as asas de seda azul do Sr.Smith” e “Da barriga do abutre”.

O primeiro conto do livro traz o título sugestivo de “A vez da caça”. É a história de Mário, um escritor que, ao lado de Glória, companheira de trabalho, busca inspiração caçando meninos de rua. Numa noite, seu objeto de caça reage: um menino permanece parado, em silêncio e inerte frente às ameaças dos caçadores. Outros meninos se juntam a este. As crianças tiram as botas de Mário e de sua companheira, que voltam para casa descalços e a pé, pois os carros haviam desaparecido. A existência destes meninos incomodava, ”cortava a paisagem”. ”Mário sabia que fora caçado, sabia que não mais escreveria e que não mais caçaria”(p. 24). Daí em diante, o caçador sairia todas as madrugadas sozinho, procurando encontrar aquela legião que o enfrentara. A quebra da imagem estereotipada dos meninos de rua se dá pelo questionamento:

[...] havia uma legião de meninos atrás deles. Uma legião de meninos negros ou seriam pardos? Ou seriam mulatos? Ou seriam brancos? Ou não seriam meninos? Havia também meninas; meninas pardas, meninas mulatas, meninas negras. Ou também não seriam meninas? Estavam todos lá e Mário lembrou-se do rosto de cada um e uma, lembrou-se até dos que, eventualmente, havia matado e que não sabia como podiam estar ali. (SANTOS, 2002, p. 23, grifos meus).

Os meninos de rua, antes presas de matadores urbanos, reagem à coerção e tomam o controle. O conto enfoca a reversão e as possibilidades de reação de um grupo minoritário. Os caçadores vêem suas vítimas crescerem, a própria expressão de luta nos rostos que só exibiam medo e angústia. É uma metáfora que pode ser lida como representação não apenas de um grupo – os meninos de rua – mas de várias minorias, sobretudo devido ao questionamento dos estereótipos.

Em “Sob as asas de seda azul do Sr.Smith”, a narrativa inicia com o vôo suicida do personagem, que sofre situações de preconceito, abordagem policial violenta e humilhante, e a supressão de suas vontades, como deixar o cabelo crescer, poder trançá-lo e assumir sua aparência negra. Para tentar livrar o filho da discriminação, a mãe ensina que o mais seguro é ter a aparência que a sociedade espera. E ele segue a vida preso à negatividade e aos constrangimentos da sociedade racista, que, por fim, o conduzem ao vôo fatal.

A convivência do centro com a periferia nunca foi pacífica. A violência está enraizada no alicerce da base social e a sociedade faz ouvidos moucos à alteridade, colocando o Outro em lugar de inferioridade envergonhada. Existe a tentativa de participar do centro, o lado inalcançável e desconhecido. A vontade do indivíduo negro presente no texto é assumir-se enquanto sujeito – sua pele, seus traços seus cabelos – e ir contra as formas de branqueamento impostas socialmente. Em suma, querer-se negro:

A voz que ouvia era no início, a da mãe mandando-o cortar sempre o cabelo, alegando que assim ficava mais bonito. Tinha vontade de trançá-lo [...]. Quando saía de casa, a preocupação maior da mãe era se ele levava consigo os documentos e, se possível, um livro para dar mais credibilidade [...]. Certa vez, dizendo precisar verificar sua identidade, um policial apertou seu rosto contra a parede e, enquanto procurava não se sabe o quê, apalpava-lhe descaradamente a bunda, rindo como se tudo aquilo fosse uma brincadeira.” (SANTOS, 2002, p. 30.)

Neste conto, temos mais duas imagens particularmente interessantes: a descrição do corpo de Anita, namorada do Sr.Smith, e a conversa de Anita com sua mãe e sua avó mortas. A descrição de Anita desconstrói a visão estereotipada da representação do corpo negro feminino, geralmente como um corpo sujo, bandido, que não desperta desejo, ou então como exótico e sensual. Na imagem descrita, o corpo negro é valorizado e representado como belo objeto de amor e desejo.

Anita estava bem ali, a um passo, a um toque de sua mão. Ele a desejava tanto que, agora, diante daquela pele que brilhava lindamente escura,sentia medo. “[...] acariciava os crespos cabelos de Anita...” (SANTOS, 2002, p. 31)

Já o trecho abaixo mostra o resgate da tradição negra pelo encontro de três gerações, Anita, sua mãe e sua avó permanecem juntas trançando seus cabelos, ”construindo caminhos” e perpetuando a beleza afro-descendente. A personagem resgata a história e a tradição no reconhecimento de si mesma, vendo no espelho, em seu reflexo, as gerações que a precederam e os caminhos que o passado e o presente traçam/trançam.

[...] Anita estava em frente ao espelho [...] falava com a mãe e com a avó [...] não se tratava de nenhum tipo de feitiçaria, a verdade é que vez por outra a mãe vinha trançar-lhe os cabelos e a avó vinha trançar os cabelos de sua mãe. E aquelas três gerações de mulheres ficavam ali frente ao espelho, desenhando mapas, construindo caminhos em suas cabeças.” (SANTOS, 2002, p. 31)

Nos contos de Jussara Santos sobressai o respeito às crenças ancestrais de seus personagens.

Em “Da barriga do abutre”, o narrador, tomado por uma visão (hábito herdado de sua avó), tem diante de si a imagem de um abutre que caminha com as vísceras abertas e cada víscera corresponde a uma história. São três vísceras, três flashes cinematográficos de histórias diferentes que abordam o preconceito, a marginalidade, a violência, o trafico de drogas e suas consequências. Na primeira víscera, temos a história de Lia, uma menina pobre de oito anos, que ajudava a mãe lavadeira. Lia via o trabalho da mãe ser explorado e mal remunerado e se revoltava. Sonhava entrar no clube onde o tio “fazia uns serviços”, mas no cartaz dizia: “era expressamente proibida a entrada de pessoas de cor naquele REIcinto de segurança.”( SANTOS: 2002, p. 49)

Na segunda víscera, dois meninos brincam de roleta russa e um deles é atingido. A terceira víscera narra a história de Zé, um garoto que se envolve com o tráfico de drogas e acaba vítima da violência no morro.

[...] Uma entrega mal feita e o resultado estava ali. Laranja, bucha de canhão, aviãozinho cravado de balas, com as vísceras sujas de areia misturando-se com as vísceras expostas do abutre. Zé ainda pediu a minha avó:

- Conta vó, conta uma história sem vísceras pra mim. (SANTOS, 2002, p. 49).

As vísceras do abutre podem ser lidas como vísceras da sociedade, a visão do narrador é o olhar agudo sobre esta sociedade - abutre de feridas abertas. O personagem Zé é uma cria do morro, a representação de um indivíduo ignorado. As feridas de Zé misturam-se às vísceras do centro que o expeliu. Este ser marginalizado pede para ser ouvido, pede uma história “sem vísceras”, solicita o direito de ser criança, sem o peso e a dor das feridas da sociedade onde vive.

Na ficção de Jussara Santos, o subjugado é um ser pensante, consciente seja ele instruído (como a professora do conto “de flores artificiais”), seja o pivete do conto “A vez da caça”, que no silêncio encontrou uma forma de reação. Este ser representado reflete, indaga, busca. A descrição do real também se dá pelo uso do fantástico. Em “Sob as asas de seda azul do Sr. Smith”, a autora usa a sugestão e a linguagem poética para refletir sobre o preconceito. Sr Smith busca no vôo suicida a expressão do grito silenciado do negro que sofre a discriminação racial.

Olhar agudo sobre a realidade da minoria periférica, a escrita de Jussara Santos enreda o leitor numa narrativa que mostra moradores de rua,segundo explicita no conto A vez da Caça “o odor de urina e jornal”, o ambiente citadino, com o barulho dos carros, buzinas, músicas e a violência nos morros, bem como o cheiro erótico de pêssego e a procura inebriante do conto “Das duas palavras ditas ao coronel”. As reflexões ultrapassam o momento de leitura deste texto e os personagens e cenas, por serem tão próximos do real, prolongam-se no imaginário do leitor.

1 Entrevista ao portal Literafro, no dia 18 de março de 2005.

* Mestre em Literatura Brasileira pela FALE/UFMG

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