Eco e Memória: Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo

 

  Ana Claudia Duarte Mendes*

 

Resumo

A leitura do poema Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo, a partir de uma perspectiva de construção da memória, possibilita-nos observar a existência de uma de literatura adjetivada: afro-brasileira. A poesia analisada está inserida em um contexto no qual a poeta assume o ponto de vista negro. Ao narrar a trajetória de mulheres negras, preservada na memória coletiva, revela a ancestralidade, que se projeta no presente e prepara o futuro.

Palavras-chave: poema, Conceição Evaristo, memória.

 

Considerações iniciais

O poema é uma criação humana. E como tal pertence a um tempo e lugar, histórico, no mesmo instante transcende essa condição, supera-a. Refaz-se a cada outra leitura. “O poema é tempo arquetípico: e por sê-lo, é tempo que se encarna na experiência concreta de um povo, um grupo ou uma seita.” (PAZ, 1972, p. 54) A contradição – essência do poema – que ao se encarnar revela-se histórico, ao mesmo tempo em que é presente, a cada nova leitura, atualiza-se e se projeta enquanto futuro.

Ao poeta é impossível fugir da história, mesmo quando compõe algo completamente diverso desta, pois suas palavras são sociais e históricas. A revelação poética consagra a experiência humana. (1972, p. 55) Essa consagração se torna possível por ser a poesia imagem. A palavra poética ao se compor enquanto imagem conforma o isto e o aquilo, no mesmo instante. Diz o indizível.

O poeta consagra sempre uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas ao falar-nos de todos estes sucessos, sentimentos, experiências e pessoas, o poeta nos fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante de nós e em nós. E mais ainda: leva-nos a repetir, a recriar seu poema, a nomear aquilo que nomeia; e ao fazê-lo, revela-nos o que somos. (PAZ, 1972, p. 57).

A experiência poética apresenta-se como revelação, cabe ao poeta nos revelar o homem e com ele o mundo.

Ao evocar a questão da condição histórica do poeta, e o conceito de imagem em Octávio Paz, pretende-se abrir um diálogo sobre o texto poético e a questão da especificidade da literatura afro-brasileira ou literatura negra, um conceito em construção. Se a poesia é o discurso de um eu lírico que expressa um determinado ponto de vista acerca de uma dada realidade, um sujeito que enuncia sua condição no mundo, a aproximação implica uma possibilidade de entender a necessidade de distinção para uma produção literária que se quer adjetivada, afro.

Eduardo de Assis Duarte, no artigo Literatura afro-brasileira: um conceito em construção, discute a questão da adequada qualificação dessa produção poética, e como esta acolhe muitas resistências por parte da crítica canônica. Aponta para os elementos que atestam sua existência e não apenas isso, considera que esta permeia a produção literária brasileira desde seu início. Em seu texto elenca obras que se configurariam dentro das peculiaridades que permitem distinguir uma literatura afro-brasileira. Destacamos alguns pontos que consideramos mais importantes nesta caracterização, a saber – a questão do tema, autoria, ponto de vista, linguagem e público. Estes elementos, e outros não apontados aqui, aparecem no conjunto de obras analisadas pelo pesquisador, e permitem visualizar um sistema organizado, que abarca uma multiplicidade de obras, respeitadas as características e estilos de época. Essa produção literária apresenta marcas distintivas, que nos permitem nomeá-la de literatura afro-brasileira ou negra.

Essa concepção nos permite perceber as peculiaridades presentes na produção poética que escolhemos analisar – Vozes-mulheres do livro Poemas da recordação e outros movimentos, 2008, de Conceição Evaristo. O poema apresenta as marcas de um eu lírico que tem consciência de seu fazer histórico, e tem seu lugar de discurso marcado pela cor de sua pele. Dar relevância a esse elemento nos permite contribuir para a discussão do tema literatura afro-brasileira.

Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, formou-se nas escolas públicas da capital mineira. Mudou-se na década de 70 para o Rio de Janeiro onde passou em concurso público para o exercício do magistério e ingressou na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no curso de Letras. Em 1996, defendeu a dissertação de mestrado Literatura Negra: uma poética da nossa afro brasilidade, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. No doutoramento, pela Universidade Federal Fluminense, escolhe a literatura comparada, trabalhando a produção de autores africanos de língua portuguesa em confronto com a literatura afro-brasileira. (DUARTE 2007, p. 25).

Iniciou a publicação de sua produção poética nos Cadernos Negros número 13, de 1990, antologia editada anualmente pelo Grupo Quilombhoje, de São Paulo, e após essa data passou a contribuir com contos e poemas. Em 2003, publicou Ponciá Vicêncio, que tem sua segunda edição em 2006, e Becos da Memória também em 2006. Poemas da recordação e outros movimentos, livro de poesia publicado em 2008, apresenta alguns poemas já divulgados nos Cadernos Negros, entre eles o Vozes-mulheres, objeto de análise deste trabalho.

Diálogos da memória

O livro de poesia intitulado Poemas da recordação e outros movimentos, de 2008, aponta desde o título para a memória como elemento norteador do discurso – pois são poemas da recordação - o interessante é o complemento e outros movimentos, que sugere atividade, o que nos remete ao conceito de que lembrar é trabalho, de acordo com Halbwachs, (1990) a evocação da lembrança responde às necessidades daquele que lembra no presente.

O texto poético que selecionamos de Conceição Evaristo chama-se Vozes-Mulheres, narra a trajetória de mulheres negras em nosso país. Contempla os elementos conceituais que citamos acima, a autoria - a consciência de ser negra e mulher, o ponto de vista, e a questão da memória.

O poema é considerado por Eduardo de Assis Duarte como uma espécie de manifesto-síntese da poética da autora:

Os versos enfatizam a necessidade do eu poético de falar por si e pelos seus. Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afro-brasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, igualmente de resistência à opressão. (2007, p. 25).

Acerca do mesmo poema, temos a consideração da pesquisadora Florentina Souza, que destaca na obra de Conceição Evaristo a consciência de um fazer poético, a partir da memória, que dá conta de uma participação ativa na construção de uma identidade afro-brasileira:

No poema, instala-se a circulação e readaptação de atuações marcadas pelo inconformismo e pelo sonho da liberdade. Da bisavó à filha, institui-se um circuito criado pelas vozes da memória, e as vozes atualizadas pelas histórias do presente, viabilizando o redesenho de práticas, permitem a construção de um potente trânsito criativo que se constituirá, nos vários campos, como características de afro descendência. (2007, p. 33).

Como o poema sugere sua construção a partir da memória, nos atrevemos a dialogar com a obra de Gizêlda Melo do Nascimento, Feitio de Viver: memórias de descendentes de escravos, de 2006. O livro registra e interpreta a narrativa de mulheres negras, fortes e determinadas a contarem suas trajetórias, memórias individuais e coletivas. O olhar para o presente na esperança do futuro, sem alijarem-se do passado ancestral. Esta perspectiva nos permitirá iluminar o poema, síntese do vivido.

       Vozes-Mulheres 

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
 
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
 
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
 
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
 
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
 

O título do poema evoca dois elementos que nos guiaram na análise: a questão das vozes e o fato de ser qualificada – de mulheres. Sob o olhar da sociedade patriarcal, vozes caladas ecoam no texto poético. Vozes – visibilidade textual – a articulação do discurso a narrar a história. O tecido poético a registrar na folha em branco trajetórias femininas. Afirmação de existência.

Vozes-mulheres, o plural a representar a coletividade, o eu lírico a percorrer as veredas da memória com a consciência de que esse fazer não é solitário, pois, segundo Halbwachs (1990), nunca estamos realmente sós. A acompanhar nosso fazer estão os grupos sociais aos quais pertencemos, nossa herança cultural.

Um dos elementos – que apontados por Duarte, acerca da literatura afro-brasileira, o ponto de vista, de um eu poético que se afirma negro – aparece já no primeiro verso “A voz de minha bisavó”, a poeta assume o discurso. A voz que narra não é de uma pessoa que olha de fora, a contar de outro, mas de uma perspectiva de dentro “minha bisavó”, o “eu enunciador” assume a partir do possessivo “minha” sua identificação de destino, que de acordo com Bern (s/d, p. 50), é uma das condições para a existência de uma literatura negra.

O três versos iniciais trazem marcas de uma economia verbal, traço do poema de versos curtos, precisos, síntese do vivido, a ideia de um passado de sofrimento que não se pode e nem se quer esquecer “A voz de minha bisavó / ecoou criança / nos porões do navio.” As imagens evocadas sugerem a diáspora e a desumanidade do transporte nos navios do tráfico. O tecer de forma crua duas imagens que ilustram bem o caráter da atividade escravocrata: a criança e os porões.

O verbo “ecoou”, no segundo verso – que marca o tempo passado, mas que se torna presente na leitura do texto poético – reitera-se no quarto verso: “ecoou lamentos / de uma infância perdida.” Sugere o alongar do sentido, a dor sentida, que evocada pela memória, permanece viva, sentido de eco, vibrando através do tempo/memória, percorrendo distâncias e se tornando presente. O “lamento” nos remete à imagem inicial do poema, a questão da voz, que aqui se faz presente, mas sem forças para alterar o destino, pois apenas lamento de “uma infância perdida”.

Estamos no terreno da memória coletiva, uma vez que a poeta não viveu o que narra, mas o ecoar do passado ainda está presente no seu fazer atual, dá sentido à vida. Segundo Halbwachs, só nos lembramos daquilo que ainda faz sentido dentro do grupo social ao qual pertencemos no presente, só conservamos uma lembrança se ainda nos identificamos com este:

Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outro, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. (1990, p. 34).

Dessa forma, podemos perceber que na estrofe de cinco versos, somos apresentados à mulher que dá origem a uma linhagem. Sua voz ainda ecoa no presente familiar.

Na segunda estrofe, a imagem da avó toma o centro do discurso: “A voz de minha avó / ecoou obediência / aos brancos-donos de tudo.” O tecido poético conjuga, na mesma medida, estrutura e conteúdo, pois apresenta em imagem eloquente: a concisão da estrofe, apenas três versos, e a voz que “ecoou obediência”, sugerindo silêncios. A sugestão de submissão às condições adversas vividas em terras brasileiras, que pertencem “aos brancos-donos de tudo.” Interessante observar a construção que une, por meio do hífen, as palavras “brancos” e “donos”, como a representar uma coisa só.

Os versos falam de ecos de obediência, essa voz nos lembra um pouco o texto da professora Gizêlda Melo do Nascimento, quando esta trata da questão dos recém libertos:

Em debandada das lavouras e das senzalas, e atraídos pelos refletores da cidade que se transformava, que anunciava novos tempos e que poderia abrigá-los como mão-de-obra na construção do novo cenário urbano, os recém-libertos deparavam-se com a barreira da discriminação inscrita na cor da sua pele. Novos tempos, velhos tempos. (2006, p. 35).

Pensar apenas em uma submissão reduz um pouco o sentido do poema, na nossa percepção. “Nem escravos, nem cidadãos, um corpo sempre a meio caminho de.” (NASCIMENTO, 2007, p. 35) Essa frase, quase imagem, evoca a condição dos que não tinham mais sob si o jugo de um senhor, mas eram rejeitados pela senhora cidadania. Sem serem cidadãos como soltar a voz?

Essas considerações nos ajudam a introduzir a terceira estrofe, quando o eu lírico irá nos apresentar a imagem da mãe: “A voz de minha mãe / ecoou baixinho revolta / no fundo das cozinhas alheias / debaixo das trouxas / roupagens sujas dos brancos / pelo caminho empoeirado / rumo à favela.” O ponto de vista do eu lírico, que vai além de se querer negro, compartilha o destino de não ter como disfarçar a cor da pele. Essa percepção da experiência é bem elaborada por Nascimento, ao tratar o estigma dos recém libertos que não têm como disfarçar sua condição na cidade que os rejeita por não se encaixarem no projeto/imagem de “modernização”:

O Rio promove-se à urbe. Para livrar-se da condição arcaica de vila (toponímia tradutora do regime colonial), obras de urbanização, ou seja, demolições. Ontem, como hoje, a mesma contraditória e arcaica prática colonialista: história de apagamentos. Desmemoriando-se segue o país rumo ao ‘progresso’. (NASCIMENTO 2007, p. 98).

A experiência traumática de modernização dos espaços públicos não parece ser um privilégio do Rio de Janeiro, tão bem desenhado no trabalho da pesquisadora, mas prática de todas as cidades que se queriam "civilizadas", como podemos constatar na narrativa acerca da experiência da poeta que ora estudamos:

Conceição Evaristo nasceu em 1946, numa favela situada no alto da Avenida Afonso Pena, uma das áreas mais valorizadas da Zona Sul de Belo Horizonte. Com o tempo, barracos e moradores foram sendo removidos, a avenida ganhou um prolongamento, novos prédios se ergueram e os becos e as vielas da infância tiveram que se alojar na memória afetiva da futura escritora. (DUARTE, 2007, p. 22).

A urbanização condiciona uma prática que irá formar as favelas, não se constituindo um fenômeno restrito a uma região ou época.

Os versos primeiros da terceira estrofe nos sugerem uma voz que não está silenciada, pois “ecoou baixinho revolta”, a condição de fala já se esboça, o verbo ainda conjugado no passado. Ainda que sejam apenas sussurros, ecos de revolta, há a sugestão de que a voz ganha um tom de elaboração da consciência da exploração. As condições de trabalho são denunciadas no poema “no fundo das cozinhas alheias”, e as de moradia “pelo caminho empoeirado / rumo à favela.” O poder de síntese ainda presente, mas a mãe é descrita em estrofe de sete versos.

Na quarta estrofe a fala poética se impõe. Tanto na estrutura quanto em seu sentido. A metáfora ganha força e expressividade no desenho dos versos: “A minha voz ainda / ecoa versos perplexos / com rimas de sangue / e / fome”. Ao assumir o discurso: “A minha voz”, o eu lírico introduz o tempo presente, e escreve versos plenos de sofrimento, nos quais a consciência de que fala a partir de um fazer e ser que são históricos. A voz que ora ecoa tem sua origem no som que vem da bisavó, passa pela avó, mãe e se faz presente em seu discurso.

A expressão “ainda” reforça a imagem da repetição, do eco, de um fazer ancestral. Nos versos seguintes, repletos de metalinguagem, o fazer poético se descortina: “ecoa versos perplexos”, o trabalho de memória e construção poética, conjugados juntos – a evocar a condição adversa que se estende em uma constante temporal, e que se reitera no presente.

Essa mesma consciência do fazer poético – trabalho com a linguagem – está presente nos versos seguintes, pois o ecoar de que fala a poeta compõe uma poesia “com rimas de sangue/ e/ fome.” A rima, a imagem de uma repetição sonora, na qual a condição social se faz presente como destino “ainda” não mudado.

Outra imagem a ser trabalhada é a da forma do poema, a sugestão que a quebra do verso propicia. A primeira impressão a do escorrer do sangue, que se dá no desenho dos versos na folha de papel em branco. O efeito construído a partir do conectivo “e” isolado, solitário no verso. Na quebra de ritmo, a sugestão de sofrimento, como a indicar a quebra da voz, como que embargada, que não une no mesmo verso “sangue” e “fome”. E o efeito estético como a alongar o sentido da dor, destacando a palavra “fome” em um verso isolado, alquebrado, de um sentimento que não pode ser comunicado.

Se na quarta estrofe a voz se faz poética, na quinta temos um quê de profética, uma estrofe com doze versos, com metrificação variada. O eu lírico, ao apresentar a filha, narra não apenas o presente, mas o porvir. Nos primeiros versos “A voz de minha filha / recolhe todas as nossas vozes / recolhe em si / as vozes mudas caladas / engasgadas nas gargantas”. O tempo presente é soberano, a repetição do verbo “recolhe”, agora relacionado com a voz, que não é mais aquela que ecoa, mas que abrigada, ao mesmo tempo em que recorrente, pois reiterado pela repetição vocabular, a dar significado e sentido à voz da filha, que em si guarda todas as vozes.

A repetição é um recurso poético que auxilia na ênfase, pois são “todas as nossas vozes”, estas que foram “mudas caladas” ou que presas “engasgadas nas gargantas.” A testemunhar a trajetória, como eco de uma vida que se projeta e que se quer melhor. Uma vez que nos versos seguintes temos o desdobrar desse guardar que é recorrente: “A voz da minha filha/ recolhe em si/ a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora”. Se houve um tempo em que a voz foi lamento, silêncio, sussurro, imagem poética, agora ela não é apenas fala, mas se faz ato. Representa não apenas a consciência de si, mas um fazer que se quer cidadão, pois que fala e age, representa. Não apenas um, mas o coletivo de mulheres que a antecedeu.

Os próximos versos “Na voz de minha filha / se fará ouvir a ressonância / o eco da vida-liberdade”. Lembra uma imagem que o trabalho da professora Gizêlda destaca na fala de suas depoentes, um jeito de olhar para a vida, driblando as dificuldades a fim de ver o presente a partir do passado e preparar o futuro.

Contumazes perseguidoras de bons resultados como exigência para melhor se situarem no espaço permitido e como forma de prepararem um futuro promissor, vislumbrando sempre um horizonte mais largo para os seus, mais uma vez cabe à mulher, investida na imagem materna, a responsabilidade de impulsionar a família para frente porque, sem dúvida, é em suas ações que se encontra depositado um projeto de vida. Projeto que, obviamente voltado para o futuro, não deixa escapar o acúmulo de experiências enfrentadas no árduo percurso de suas trajetórias. (NASCIMENTO, 2006, p. 118)

O poema como dissemos torna-se profético, ao usar o verbo no futuro “se fará ouvir”, a voz ganha corpo e tem realmente algo a dizer. Nessa perspectiva, esse “eco-liberdade”, considera que a condição para se ter de fato liberdade é a de agregar às vozes do passado, lembrar sua ascendência. Para viver plenamente como cidadão, senhor de sua história, escrita não pelos que a marcaram com sangue, mas dos que a construíram com dignidade, força e esperança.

Considerações finais 

A questão da literatura afro-brasileira encontra muitas resistências, a qualificação gera uma série de conceitos outros, que mascaram uma indisfarçável dificuldade de lidar com proposições que fogem ao que foi conservado, o cânone. Buscamos olhar para o poema em sua configuração estética e construção de conteúdo. Ao mapear a questão do ponto de vista percebemos que este se constitui como elemento essencial na busca de consolidar um projeto literário. Os conceitos sobre o fazer poético de Octávio Paz, e a perspectiva do que vem a ser poesia, nos guiou no diálogo com o texto, pois antes de ser literatura afro-brasileira é análise de poema e buscamos suas qualidades estéticas.

Observamos de perto a construção de uma imagem de voz ancestral, que se faz ouvir no tecido poético, e a consideramos na análise a partir do conceito de memória coletiva. Nesse procedimento procurou-se compreender a construção de uma imagem presente que é trajetória/ projeção, de um fazer que mantém seus laços e se realiza enquanto projeto poético, com valor estético e de cunho social.

A perspectiva positiva em relação ao futuro, das mulheres entrevistadas por Gizêlda Melo do Nascimento foi uma inspiração para esse trabalho. Buscamos dialogar com as informações preciosas acerca da história narrada pelas personagens, o que muito auxiliou na compreensão do que é o fazer coletivo e nos possibilitou olhar com mais precisão o fazer poético.

Nesse sentido, o olhar presente no trabalho da pesquisadora ajudou-nos a reconstruir e projetar a trajetória das vozes de mulheres negras presentes no poema analisado, refletindo sobre as condições de vida destas, e como isso se reflete na sociedade brasileira, e a perceber a esperança que a consciência de um fazer coletivo inspira.

Referências

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, s/d.

DUARTE, Eduardo de Assis. O BILDONGSROMAN afro-brasileiro de Conceição Evaristo. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

_______. Eduardo de Assis. Literatura Afro-brasileira, um conceito em construção. AFOLABI, N. BARBOSA, M. , RIBEIRO, E. (Org.) A mente afro-brasileira. Trenton - EUA / Asmara - Eritréia: África World Press, 2007.

_______. Eduardo de Assis. Literatura e afro-descendência. Disponível em: <www.letras.ufmg.br/literafro>. Acesso em 20/06/2009.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

NASCIMENTO, Gizêlda Melo do. Feitio de viver: memórias de descendentes de escravos. Londrina: EDUEL, 2006.

PAZ, Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1972.

SOUZA, Florentina. Memória e performance nas culturas afro-brasileiras. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

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* Ana Cláudia Duarte Mendes é Doutora em Letras pela UEL - Universidade Estadual de Londrina.