A cega e a negra – uma fábula
Observava a aranha em suas peripécias acrobáticas. Pendia do teto num estranho equilibrismo. O fio que sustentava era tênue, invisível. Os olhos hipnotizados acompanhavam o sobe e desce do inseto. Às vezes, a pequena aranha, como a provocá-la, descia próximo a sua cabeça e, com movimentos rápidos e graciosos, retornava, aproximando-se do teto. Poderia ficar ali por horas, dias, meses a fio. Ela e a aranha tecendo fios infinitos, brincando com a gravidade. Cecília tecendo fios invisíveis, a aranha fabricando fios reais.
Olhos fechados, via a aranha movimentar-se em silêncio, absorta. Manhã de um inverno tipicamente tropical. O sol envolto em nuvens, não aquecia. O vento matinal cortava o espaço, batendo na janela como pancadas de alguém que pede para entrar.
Entrar! Ali residia o mistério das coisas. Entrar, apenas uma ação. Sair, outra ação. Ações desconhecidas para a aranha no seu sobe e desce, não entrava nem saía... Tecia, em acrobacias. Acrobacias determinadas pela magia do fazer e não do viver. Ela e Flora faziam acrobacias do viver, dependuradas no fio aparentemente tênue da vida. Fio invisível, resistente, frágil.
Abriu os olhos, a aranha tecia. Um fio branco saído de suas entranhas unia-se a outros fios. Cecília igualou-se àquela criatura. Um estranho destino as unia naquele espaço. Pensou em Flora. Chamava-a assim por nunca ter entendido o porquê do nome Floresta Brasileira que lhe deram. Quando se apresentaram, guardou um sorriso de deboche e de curiosidade, segurando a pergunta: por quê? Floresta a intrigava por causa da forma com que via o mundo. Via? Floresta não via, era cega. Movimentava-se nos espaços como se os soubesse por definição. Flora e Cecília, um dia o acaso as colocara frente a frente.
Cecília olhava a aranha no teto, espantava o pensamento difuso. Hoje cansará de acrobacias; recusava-se a seguir o seu destino, tecer a própria teia. Encantava-se com o equilíbrio da aranha. Equilíbrio que ela própria achava ter perdido. Fazia uma semana que não via Flora.
Conheceram-se num dia comum. Cecília corria atrasada para pagar uma conta no banco. Previa que de novo aquela maldita porta giratória travaria para ela. Pelo alto-falante ouviria a voz metálica do segurança dizer: ”Tem objetos metálicos? Celular? Chaves? Moedas?” não, não possuía nada disso. Porém, passaria pelo constrangimento de abrir a bolsa e procurar. Ou melhor, fazer-se de quem procura o que não perdeu. Depois, olhando para o segurança apreensivo, imporia no rosto um semblante que traduziria em: “Tô limpa!”.
Não entendia por que as portas giratórias não giravam na sua vez de adentrar aos recintos. Passou a não portar mais bolsa, somente o necessário nos bolsos. Mesmo assim, lá vinha voz do segurança: “Tem chave? Guarda-chuva? Celular? Moedas? Objetos metálicos?”.
Naquele dia rebelara-se, sem paciência para submeter-se mais uma vez ao constrangimento de ser barrada. Fora barrada quase que a sua vida toda. Naquele dia: “O escambal para tudo!!!”, pensou. Parada a porta do banco, respirou fundo, numa atitude de: “É hoje!”.
Entrou com tudo pela porta giratória. Uma força de romper paredes, levar tudo no peito, na valentona, como dizia sua mãe. A porta não travou, girou na violência. Ela foi lançada para dentro do recinto. O corpo, acostumado ao cotidiano obstáculo, não o encontrando projetou-se no espaço. Tropeçou na bengala de Flora, que saía dominando o ambiente, como se tivesse olhos nos pés. Para não derrubá-la, instintivamente a abraçou. Gesto tido como ameaçador pelos seguranças, que a seguraram com truculência, protegendo o patrimônio bancário e a integridade de Flora.
Agora a aranha já tinha tecido geometricamente o centro de seu trabalho-natureza. Flora não poderia ver a aranha tecer, pensou. Mas Flora sentia a vida tecendo destinos. Seu destino. Aparentemente frágil qual o fio da teia, Flora defendeu Cecília contra a incompreensão dos seguranças. Na confusão que se armara, era a única que via com a nitidez dos sábios. Ordenou: “Soltem-na!” “Mas, doutora...”, tentou argumentar o chefe dos seguranças. Palavras ficaram no ar, inconclusas.
Cecília, refeita do susto, desculpou-se com Flora, com a intenção de livrar-se o mais rápido possível da nova situação de constrangimento. “Espere, eu te ajudo”, disse Flora, dominadora. “Ajudar?” Cecília a olhou, um ser aparentando fragilidade na sua escuridão. Ajudá-la como? Aspirou o ar, suspirando resignada. Guiaram-na até um assento. Acalmaram-se. Apesar de não demonstrar, o esbarrão abalara Flora de modo diferente do que fizera com Cecília. O gerente mandou servir cafezinho para a doutora, sinônimo de boa conta, e, sem outra alternativa, também para Cecília.
A aranha no seu crochê incessante ia e vinha tirando de dentro das entranhas a linha para o artesanato ao qual fadava-se para sempre. Cecília pensava em Flora e naquele dia em que os estigmas delas se encontraram. Refletia: “Para que aquele encontro?” O que sabia é que nunca lhe haviam servido cafezinho no banco. O que sempre a recepcionou foi a voz metálica após a trava da porta giratória. O mundo girava para todos, para ela travava.
A amizade crescera entre elas, viajavam, passeavam, parecia amizade antiga, prenhe de cumplicidade e camaradagem. Cecília interpretava o mundo da visão para Flora. Fazia-a ver a beleza de pôr-de-sol derramando-se sobre o mar, com suas cores de mistérios. Interpretava a escuridão da noite com estrelas verdadeiras e falsas – as luzes dos edifícios − misturadas no céu. Às vezes, Flora guardava a bengala-guia e apoiava-se no braço de Cecília e perambulavam pelas calçadas. Ela tinha a sensação de que enxergava através dos olhos da amiga. A solidão da escuridão, naqueles momentos, transformava-se só numa triste lembrança. Dependiam-se. Por sua vez, Cecília livrava-se das travas das portas do mundo. Os porteiros e seguranças, com salamaleques, as abriam envoltos em piedade e puxa-saquismo. Conversavam sobre isso, às vezes, e riam e riam.
Certa feita, jantavam numa dessas cantinas estilo italiano que Flora apreciava tanto. Conversavam sobre o sabor e o odor das iguarias. Cecília, embalada pelo torpor do vinho, tagarelava à solta, descrevia as pessoas ao redor da mesa. Flora ria como uma criança, redescobria o mundo. A um dado momento, pediu para a amiga guiá-la até o banheiro. Cecília prontamente atendeu. Ao passarem por entre as mesas, um freguês do restaurante resolveu interpelar-lhes o caminho. Avançou sobre Cecília como se ela fosse transparente. Já acostumada a isto, preparou-se para sair da frente, dar-lhe passagem, ou seriam atropeladas pelo homem, maior e mais forte que as duas. Colocou seu corpo protegendo o da amiga. Com um discreto meneio de cabeça e comunicação sutil entre os olhares, o garçom avisou ao homem que ela guiava uma cega. Desobstruiu o caminho andando de afasto e gesticulando as mãos como quem se desculpa.
A cena se dera na sutileza dos olhares, Flora nada percebera. No entanto, notou que a amiga ao retornar à mesa ficou muda. Aquela alegria de quem está à vontade desvaneceu. Mais tarde no carro, que pertencia a Flora mas era dirigido por Cecília, esta lhe contou o ocorrido. Não riu. Não achou engraçado. Por mais que Flora perguntasse o motivo da tristeza, ela, muda, não revelava. Nem ela mesma, naquele momento, saberia dizer o turbilhão passado por seus pensamentos.
A aranha, terminando sua teia, parou. Cansada da tarefa árdua a que estava predestinada desde sempre e para o sempre. Desta teia dependia a sua vida, breve vida das aranhas, tecendo úteis frágeis belezas simétricas, despercebidas na voragem do cotidiano.
Beleza. Era isso! Beleza! Cecília e Flora teceram sua amizade nas teias do viver. Transformaram o destino árduo, os estigmas, como insistia em afirmar Flora, no prazer de ver. Isto! Ver! A aranha supera-se a cada teia, por mais que a simetria dos fios pareça sempre a mesma.
Cecília ligou para flora: “Alô, descobri o segredo da teia”.
Flora respondeu: “Ainda bem, eu já sabia”, e emendou: “Almoçamos amanhã”.
(Cadernos negros 24, p. 89-93)