A semente

 

 

 A menina não acreditou na notícia que leu no jornal que enrolava as batatas compradas na mercearia:

No dia 13 de outubro de 1855 chegou ao porto de Serinhaém, litoral de Pernambuco, a última leva de escravos traficados da África. O tráfico estava proibido desde 1831, mas a lei foi sempre ignorada (...). 
 

Ouviu o gracejo das colegas que acompanharam a leitura e apressou-se para chegar em casa e ouvir a mãe, que sabe tudo, explicar aquela história.

- Escuta, mãe, o que está escrito aqui!

 Abriu o pacote e as batatas caíram, o que interessava era ler. A mãe sentada no batente da cozinha, ouviu, balançou a cabeça, confirmando:

- Foi isso mesmo. Minha bisavó e meu bisavô vieram nele. Algumas vezes a ouvi contar esta história, aliás, ela contava depois que a gente insistia muito, pois isto lhe causava muitas saudades. Quando o navio atracou, logo os homens foram separados das mulheres e esta foi a última vez que ela viu meu bisavô. Ele foi vendido para longe e não conheceu a filha que a bisa trazia bi ventre, minha avó.

- Então a sua vó foi escrava?

Foi, todos que vieram naquele navio foram transformados em escravos, não interessava o que eram na África. Nos engenhos de cana-de-açúcar faziam tarefas distintas, uns iam cortar cana, outros serviam à casa-grande, tudo às ordens do senhor. As mulheres escravizadas cuidavam da cozinha, das crianças, davam de mamar às crianças recém-nascidas da casa grande, vendiam quitutes na rua, umas eram alugadas para outros engenhos como ama-de-leite, arrumadeira, passadeira, cozinheira. Depois ficavam sem eira nem beira, podiam ser revendidas novamente e o dinheiro era do senhor.

- Puxa, mãe, como eles aguentavam tanto trabalho?

- Bem, não aguentavam de bom gosto, mas a vigilância era grande. Alguns conseguiam fugir.

- A bisavó fugiu?

- Não, ela continuou esperando que o avô voltasse um dia. Com o passar dos anos, ela desiludiu-se com a volta do amado, abriu a latinha que ela sempre guardava no bolso da roupa, retirou a semente lá de dentro, aproveitou uma saída do engenho, e a plantou. E disse à filha que aquela árvore que ia nascer li representava os homens e as mulheres que vieram naquele navio.

 - A tal árvore só pode ser o baobá, você sempre disse que ele é uma árvore africana, feito nós.

 - Bem lembrado.

 - E quem ficou por aqui?

 - Algumas pessoas, inclusive minha avó.

 - É por isso que tem muita gente negra na região?

 - É. Quem não fugiu, ficou por aqui, aos trancos e barrancos. Uns continuaram no eito, mesmo depois da libertação.

 - Puxa, mãe, por que você não me contou esta história há mais tempo?

 - Porque esta é uma história dentro das outras que você já conhece. Lembra daquela dos Palmares?

 - Lembro: Ipojuca, Serinhaém, Palamares, todas nos levavam ao quilombo dos Palmares? Mas os Palmares foi muito antes do último navio, eu sei.

A mãe sorriu da esperteza de Kizzy. Apanhou as batatas e colocou-as para cozinhar. No dia seguinte, na escola, a menina contou a história do último navio negreiro e a professora fez o recreio à sombra do velho baobá. As crianças não se cansaram de fazer roda para abraça-lo.

E nunca mais ninguém caçoou de Kizzy.

 

(In: Baobás de Ipojuca. p. 7-12)