O último ensaio antes da estreia

Naquele dia, enxergou os seus abismos disfarçados sob as olheiras que deturpavam a visão da mulher bela que aquele rosto tinha refletido um dia. Estava tão desesperadamente só, que abriu todos os remédios de sua caixa de providências para qualquer mal-estar. Para ganhar tempo diante do desejo de morte, resolveu recitar as bulas de remédios em voz alta.

Ali, sentada no vaso sanitário, estava nua, enquanto aguardava os quarenta minutos para o efeito da tintura para cabelos cor vermelho sangue que comprou na drogaria da sua quadra. Com os pés descalços tentando evitar o chão gelado do banheiro, mas sem tanta flexibilidade para tentar outra posição de pernas, interpretava o texto farmacêutico à moda textocentrista: sem uso de expressões mais consistentes, nem muitos gestos, em tom declamatório.

As indicações foram recitadas como num drama moderno; os efeitos colaterais tiveram certo tom propício à tragédia grega, os nomes dos remédios foram ditos como pura comédia farsesca. Resolveu colocar no rosto uma máscara facial e um creme depilatório para o buço, para lembrar qualquer Colombina da Comédia Dell Arte e flertar com algum elfo ou fada, para ressuscitar os modelos clássicos gregos revisitados por Shakespeare.

O chão de pequenas pastilhas quadriculadas estava muito gelado, hostil, escorregadio. Nada convidativo. Tudo cheirava a monólogo, a água sanitária, a divagação cáustica. Nunca havia conseguido esperar os quarenta minutos da tintura. Dessa vez perdeu a noção do tempo.

Quando a polícia chegou, sua pele negra estava misturada ao sangue e à tintura de cabelo, enquanto o rosto exibia as manchas provocadas pela queimadura do creme depilatório exposto em suas mucosas por um tempo demasiado longo. Parecia ter mesmo escolhido os moldes da tragédia grega, embora desconhecesse que não era uma personagem em potencial.

Não era nobre, nem heroína, não tivera o seu destino traçado pelos deuses, sua história não tinha traços de hamartia, não cometera nenhum erro trágico. Pelo contrário, era uma mulher comum, vivendo um drama urbano, ignorava que as cenas de terror e violência, nas verdadeiras tragédias, não poderiam jamais ser apresentadas à vista do público. Mas teve o seu fim trágico. 

Aquela moça, desconhecida no bairro, ocupou todas as manchetes dos jornais do dia seguinte. Virou notícia. Quem era ela? Por que o suicídio? O seu enterro foi a sua estreia. Numa existência feita de ensaios e nenhuma cena digna de divulgação.

 (Espelhos, Miradouros, Dialéticas da percepção, 2011).