Cada tridente em seu lugar


Dia desses recebi carta de um leitor colérico, cheia de reclamações porque em texto de minha lavra utilizei uma imagem do tridente de Netuno como recurso ficcional com­parativo. Em sua opinião eu deveria ter usado o tridente de Exu. Mal sabe o leitor que tudo o que se fala sobre Exu está sempre amarrado a uma ponta de mistério, ensina Carolina Cunha. Ele vive em um tempo mágico. Ele próprio é mágico, transforma-se no que quiser e se movimenta num constante vai-e-vém. Assim, naturalmente se tornou mensageiro. Para bem falar de Exu - não seria louca de falar mal - é preciso ser iniciada, saber segredos que, como tais, não devem ser revela­dos. Então, caro leitor, sinto-me mais à vontade para mexer com o tridente de Netuno (patrimônio cultural da humani­dade que a mim também pertence) e, mineiramente, deixo quieto o tridente de Exu. Arma por demais poderosa que funciona por eletromagnetismo. Sou maluca de colocar um negócio desses na minha cabeça?

A carta, entretanto, evocou-me outra lembrança. A do poeta que ao me encontrar no cinema com um grupo de alunos, perguntou-me se achava O homem que copiava, um filme adequado para jovens negros.

É lógico que sim, respondi. A seguir discorri sobre o que me parecia ser o cerne da indagação dele. Seria aquele um filme adequado para discutir com estudantes negros a tensão das relações raciais travadas no Brasil? Na trama, um jovem negro, operador de uma máquina de fotocópias se apaixona por uma garota branca, caixa em um supermercado. A histó­ria se passa no Rio Grande do Sul, local onde seria pouco provável que aquela relação afetiva não fosse notada como algo fora da norma. É fato, ainda, que o autor escorrega feio ao construir o personagem-pai da mocinha como reacioná­rio, explorador da filha e abusador sexual, mas que, suposta­mente, não é racista. Afinal é estranho que um homem branco, cujo caráter já foi descrito, não dê importância ao namoro de sua única filha com um negro pobre e sem futu­ro. Não combina. Entretanto, esta idiossincrasia mesma cons­titui um grande mote para discussão, pois é mais um dos milhões de exemplos da invisibilização dos conflitos raciais no Brasil.

Mas o filme tem um mérito inegável, talvez único na produção cinematográfica brasileira. O operador da máqui­na de fotocópias (o homem que copiava) não é um persona­gem negro, mas é representado por um talentoso ator negro, Lázaro Ramos. Como o homem que copiava não tinha uma marca racial, o "normal" seria que ele fosse representado por qualquer talentoso ator branco. Jorge Furtado, o diretor, sub­verteu o limitador pressuposto da dramaturgia nacional, de que atores e atrizes negros (quando conseguem algum espa­ço) devem representar personagens propriamente negros ou papéis subalternos, nos quais "cabe" um negro.

Então, seu poeta, o filme é adequado para discutir a invisibilidade dos conflitos raciais, sim senhor.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 19-20).