Construção
Primeiro era chão batido e ele não sabia como era feito. Sua lembrança da casa em obras começava do vermelhão, uma massa de vermelho intenso, à base de anilina, aplicada ao chão da cozinha. Crosta fina de cimento, areia, água e cor. O pai executava o serviço, a manutenção que cabia às crianças era feita com cera vermelha. Mãos e joelhos só não ficavam igualmente coloridos, porque eram pretos. Adquiriam uma cor cinzenta, como couro velho, curtido e sujo. Mas as unhas envermelhavam, as cutículas roseavam, e que trabalhão para limpar. Logo sábado, dia de baile. As irmãs odiavam a massa colorida e ao pai, por extensão.
Nesse mesmo estágio da obra, que se estenderia por toda a vida, aplicava-se o amarelão em dois outros cômodos, a sala e o quarto. De novo, cimento, areia, água e cor, dessa vez amarela. Dois apenas, ainda bem. Única vantagem da casa pequena. O mesmo ritual da pasta vermelha repetia-se com a pasta amarela na construção do piso. A manutenção novamente cabia às crianças, feita com a cera amarela, pior para limpar dos dedos, pois impregnava a pele e os cantos das unhas. Não raro, as irmãs, sem tempo hábil para cuidar delas, deparavam com um cantinho de cera à noite, em horas impróprias.
Houve um dia que elas estavam de risinhos na privada e ele colou o ouvido na porta para também participar do segredo. A alegria terminou quando o acontecido chegou à parte da cera, nessa hora a irmãnarradora embraveceu. Parece que o namorado foi fazer alguma coisa, que ele não entendeu muito bem, com o dedo dela e, enquanto fazia, reclamou de um gosto esquisito. Era a cera amarela. Danada, escapou da faxina feita nas mãos. A irmã virou uma arara.
Quando a situação familiar melhorou, trocaram o vermelhão da cozinha por uma cerâmica vermelha, espécie de taco mais largo, talvez menos comprido, só que não era de madeira, era a diferença. Ele nunca entendeu porque o chão da cozinha da própria casa e das outras casas da vila era vermelho. Parecia regra a cumprir, ou moda a seguir, dava no mesmo.
No último estágio trocaram a cerâmica por azulejos de estampas horrorosas, as mais baratinhas, mas não havia dúvida de que aquele era o melhor material para limpar. Água, sabão e esfregação resolviam.
Na sala e no quarto o pai assentou tacos de madeira, substituindo o amarelão. A atividade lhe dava especial prazer. Contava orgulhoso que aos nove anos, quando primeiro assinaram sua carteira de trabalho, fora como assentador de tacos, na firma do Seu Pacífico. Por aí o filho constatava a modernidade de certos conceitos, trabalho infantil, por exemplo, na época do pai não existia. No começo ele se lembrava quanto o pai ganhava por semana, mas com o passar dos anos e a mudança frequente do nome da moeda, passou a se confundir, depois esqueceu. E agora o pai nem está mais vivo para ele perguntar.
Assentados os tacos, iniciava-se outra tarefa inglória para as crianças: passar palha de aço no chão para amansá-los. Passar é eufemismo, a situação exigia esfrega com todas as forças dos músculos e atenção dos olhos para raspar uniformemente. O pai ensinou como devia ser realizado o trabalho, dos cantos para o meio, assim o malfeito pela preguiça não teria vez. Não entenderam? A lógica era de que no começo, mais descansadas, as crianças deveriam se dedicar à parte mais escondida, as laterais, ocupadas pelos móveis. A mais visível, o centro dos cômodos, ficaria para o final, porque, mesmo picadas pela mosca da preguiça, a visibilidade do espaço as obrigaria a fazer o serviço bem-feito.
Mas surge algo inusitado e as irmãs e ele até sentem saudade do amarelão. É que o amansamento dos tacos com a palha de aço produzia uma poeira infernal, um poeirão como a batizaram. Aquilo os fazia tossir, produzia coriza e engrossava as mãos. Dinheiro pra creme hidratante não se via naquela casa e mesmo pra passar óleo de cozinha ou banha de porco nas mãos era escondido da mãe. Podia desinterar no final do mês.
Mas o pior ainda estava por vir, eram os efeitos do poeirão no cabelo das irmãs, alisado por chapinha. Chapinha é coisa de hoje, a memória é reavivada pela imagem macabra do ferro quente. A mãe passava no cabelo delas uma coisa chamada "unto", mistura de tutano de boi com banha de porco, malcheiroso que só. Separava as mechas e untava com aquilo. Esquentava o pente de ferro no bocal do fogão, pegava pelo cabo de madeira e depois alisava as mechas untadas. Aquilo fazia chiiiiiiii, como pastel frito na gordura quente. Às vezes ao chiiii: se sobrepunha um grito, queimadura acidental, mau humor subsequente, pois, dependendo da gravidade da marca deixada pelo ferro de alisar, havia cancelamento automático do baile daquele sábado. Cabelo alisado por ferro quente não pode ser lavado, você sabe, e a mistura do unto e do poeirão na cabeça das meninas, além do petetê que fazia, era bomba de ressentimento e humilhação carregada no corpo.
Do chão para as paredes, mais uma etapa da construção. O reboco cascudo feito pelo pai denotava falta de tempo para passar a desempenadeira. As paredes nunca eram lisinhas como nas casas mais aquinhoadas. Mas no ato de pintá-las, as crianças eram premiadas, podiam escolher a cor do quarto no vastíssimo leque de três opções: verde-pálido, azul-esquisito e rosa. Tudo bem clarinho, porque uma caixinha de pó era diluída em um tanque de água e se passava uma única mão de tinta na parede. Contudo, era divertido, podiam apenas admirar um adulto trabalhando, sem qualquer obrigação infantil.
Das paredes para a laje, um salto nas alturas e na qualidade da participação das crianças. Dia de bater laje era dia de festa. Começava no dia anterior, quando a mãe ia ao supermercado comprar as carnes para a feijoada e deixava tudo imerso em tempero, pra pegar gosto. Catávamos quilos e quilos de feijão e arroz, descascávamos alho, picávamos cebola, cebolinha e salsa dentro das bacias feitas de lata de goiabada. Mentira, as irmãs é que faziam esse trabalho, tarefa de mulher pequena. Nós, os meninos, só rondávamos o trabalho delas.
A gente nem conhecia a palavra reciclagem, mas era isso o que o pai fazia. Ele desmanchava a costura das latinhas de goiabada – não era cascão, era marca inferior, rala e cheia de açúcar, cascão só no natal, abria elas em cima de uma pedra de mármore, batia, batia, com martelo e machucador de alho, transformava numa placa lisa, depois emendava com solda e estava pronta mais uma bacia para usar na cozinha. Secava ao sol e depois ficava um dia de molho na água com vinagre, para tirar o gosto de solda.
No dia anterior ao enchimento da laje, o pai providenciava a cerveja e uns refrigerantes no supermercado, tudo marca de fundo de quintal, para fazer economia. No raciocínio dele a criançada queria mesmo era o bigode de espuma do refrigerante e o tchiiii do gás. Estava certo no diagnóstico, mas errado na receita, porque os refrigerantes baratinhos praticamente não tinham gás, nem faziam espuma. Por fim, ele buscava cachaça encomendada no seu Zé Ataulfo, representante extraoficial de um "grande alambique", que ninguém nunca soube o nome. A localização da fábrica todo mundo sabia, a cachaça vinha do alambique da chácara do genro dele, a poucos quilômetros dali. Mas não tinha reclamação porque o produto era barato e ainda não tinha mandado ninguém para o hospital.
O pai levava aquelas compras no carrinho do supermercado, todo orgulhoso e eu, menino, fascinado pelo pai provedor, acompanhava as compras e o transporte. Depois de despejá-las em casa para a mãe ajeitar na geladeira e do pai dizer bem alto o preço de cada coisa, eu devolvia o carrinho vazio.
O dia de bater a laje, propriamente, começava de madrugada. A homarada ia chegando, alguns acompanhados das esposas, talvez uma ou outra noiva, namorada, doida para mostrar serviço e ser acolhida no clã. A filharada também vinha e os pequenos podiam brincar. Aos adolescentes, garotos e garotas, eram destinadas algumas tarefas, atribuídas a cada sexo. Basicamente, mulheres de todas as idades na cozinha e homens e homenzinhos nas várias tarefas de preparação da laje: carregar areia, brita, cimento e água para a massa; prepará-la; encher as vasilhas, carrinhos de mão, latas de vinte litros ou latinhas de cinco, de acordo com o vigor físico ou a necessidade de exibicionismo do cabra. Transportá-los em andaimes de madeira inseguros, mas ninguém caía. Transportar também as vigas de ferro, cimento, os tijolos, tudo aos gritos, que o grito era demonstração exigida de força e macheza. E dá-lhe piadinha com a virilidade alheia, questionada nas mínimas atitudes do sujeito: na careta para erguer peso, nos queixumes sobre a dureza do trabalho, nas paradas para descansar fora dos momentos coletivos de descanso, até no deslocamento da área de serviço dos homens até a cozinha, terreno sagrado do mulherio, ou nas reiteradas escapadelas ao sanitário. Em qualquer dessas situações, o ser do sexo masculino era logo colocado no rol dos de "sexo duvidoso".
Homem que era macho tinha de rir das piadas machistas, contar vantagens de conquistador, com um certo cuidado para localizar as puladelas de cerca atuais no passado, na vida de solteiro, de garanhão bem-sucedido, afinal, da cozinha, as patroas a tudo prestavam atenção. E se descuido houvesse nas narrativas de Indiana Jones do amor, podiam receber uma descompostura na frente dos amigos – humilhação terrível – e, no caso das patroas mais drásticas, podia haver greve de sexo em casa, castigo desesperador.
Bater laje era mesmo um ritual de iniciação masculina, ali as mulheres eram coadjuvantes, mas se vingavam no território da cozinha, onde também falavam de sexo. Diferentemente dos homens que contam vantagem sobre as mulheres da rua e santificam a patroa, a mulherada conta vantagens sobre seus homens. Falavam de metragens, práticas e técnicas, presentes na relação com o marido, sempre com o cuidado de colocar as virgens ou pretensamente virgens pra correr, porque aquilo era assunto de mulher casada.
A mulheradinha se fingia de besta, mas observava certos silêncios. Sabe lá se quando solteiro, o marido daquela prima não teria dado umas voltinhas com a irmã daquele cunhado e agora todo mundo junto naquela cozinha, não estaria falando de assuntos bem familiares. Oxalá fosse mesmo na vida de solteiro, mas que tinha coisa que cheirava a angu fresquinho (com caroço), isso tinha.
Tudo muito divertido e de grande aprendizado. Bater laje era uma escola, na qual se aprendia de tudo. A laje bem batida, depois do alicerce bem-feito, era condição essencial para os andares futuros que subiriam aos céus. Crescimento vertical da propriedade privada, multiplicação de tijolos e tetos do patrimônio familiar. O pai dizia que até joão-de-barro faz casa de dois andares, é passarinho humilde e com ele a gente deve aprender.
(Negrafias: literatura e identidade, p.32-36).