Livro

Lanço-te, marujo!
Urge o arremesso do desbravamento,
O amansar da fúria contida nos dicionários.
Estende o teu olhar pras gentes e vê o que querem.
Vê o paladar apurado do povo,
Agita os braços ante o infante de leituras.
Dou-te todo o meu mar salgado,
Minhas mulheres que choram e riem alto,
Minhas noivas dispostas ao divórcio das prendas,
Arquétipos da minha avó cabocla.
Vai, marujo!
Arrisca teu perfil às tintas, ao incesto das editoras,
Aos naufrágios à beira da porta,
Aos críticos que rasgarão teu ofício de dias.
Vai, portuoso!
Beija na boca todas as mulheres que querem teu beijo,
Todos os homens dispostos ao risco,
Abre teu pórtico de páginas aos servos, aos escravos,
Aos que vivem sob vigências de feudos modernos.
Vai, marujo! Gruda nas casas novo ato de liberdade,
Conspira com os nossos,
E toma da noite sua embriaguez,
Sua inspirada subversão de Musa.
Vai, marujo!
Lança-te ao Mar com tudo que nele há
De Pessoa, de Neruda, de Carlos, de Adélia,
De Cora, de Bandeira, de Clarice, de Lorca.
Vai! E afoga meus navios velhos, viola minhas certezas,
Viola minhas mentiras, meus fingimentos de Poeta,
Viola minha caixa de Pandora,
Meu anonimato, meu suicídio diário,
Minha textura de negra, minha candura de puta.
Vai! Antes que eu me lance sem âncoras,
Pois que deixo velas, remos e medos muitos.

(Tratado das veias, p. 15)

 

Abismação

Cá estou na Abismação de cada instante.
Arcada ao Par, sem tê-lo.
Arrastada no levante dos meus ancestrais.
Quilombola tecendo
O algodão doce
Das dúvidas
Dos dias.

Tear do tempo
A fiar o ócio dos meus ossos crus.
Alambique de saudades,
Pileque de tristezas.
Enquanto tu, moleque dos meus desmazelos,
Labutas na plantação de mandioca
E eu fio
A alforria dos meus cometimentos.

(Alforrias, p. 20)

 

Armada

As horas veem minha euforia insana
De quem sorri à espera de milagres.
Um antídoto digno da minha loucura,
Cura pra todos os males do meu dia,
Coisas assim.
Abandonada em folias de menina
Crescida em colo de mãe,
Deixo o desespero e o empório pra mais tarde.
O aluguel, as casas vazias, chaves pra cópias,
Tudo reservo para a eternidade vindoura, legítima.
Quem pensa que eu morro se engana:
Tenho sangue de senzalas e exalo morros,
Meu palácio é feito de arrastares, desprezo de sonhos,
Falências, cores velhas, arcaísmos de profeta lilás.
Jamais amo sempre o meu Senhor.
A paz em excesso por vezes me atormenta,
Fervo as veias em pensamentos,
Cozo desejos num tacho grande de caruru.
Minha casa é feita de renda inglesa e avencas,
O homem que amo me acha boa, bonita,
E sabe que sou Poeta, arrebanhada entre os malditos,
Escassa de verbas,
E aventurada de poesia.
Os verbos rondam o meu chão como estrelas.

(Tratado das veias, p. 27)

 

Jardim

Arrasto o tempo nesse objeto rito, amor palerma.
Enquanto tu, fóssil extremado, recuperas eras perdidas,
Beijando outras salivas menos minha, pois se doutra boca.
Menos abjeta, menos pútrida, menos amanhecida tua,
Desde os primórdios edênicos do paraíso,
Latifúndio primeiro, perdido,
Tomado sem leis mais severas,
Senão às do Senhor do tal feudo.
Alcanças as alianças engolidas entre raízes?
E o que me dizes dos véus urbanos das moçoilas
Doidas por furtos de homens alheios?
E os meus meios moles, arrepiando fundos brejeiros,
Aliciando gotas de solidão cáustica?
Oh! Meu Fausto amado!
Leva-me de mãe morta e imprime esquecimento de veias
Nesse meu raciocínio de inocência fingida.
Sou e serei sempre a tua Guida.
Vê que sonho com rezas e deixo a ti o insólito,
Os rituais do medo, dos segredos do verbo.
Deixo a ti, como se possível fosse, meu arrebatamento,
Minha inconstância, minha ambição.
Deixo a ti o querer ser Deus e Diabo.
Abandono, réptil humano e amado,
O meu sol de estrela escriba,
Para ofertar-te as minhas partes,
Meu mundo avesso ao vulgar das gentes, às reuniões sociais.
Abandono a ti, inclemente monstro,
Meu mênstruo de vinhas negras,
Minha falácia de sofista acesa, de tantas verdades não ditas.
Acreditas, acaso, que te amo sem temor nem perdas?
Acreditas na maldita sina-serpente
Que faz de mim
Um arrastar eterno de sonhos e dores?
Bebo dos tais cristais fellinianos,
E vou na nave idílica dos homeros homens de barro,
Lá vou eu, na nave, persona negra de perfil robusto,
Busto empinado, dona do meu desejo,
Inda que doado aos deuses abutres,
Inda que domado por chicotes de cabras machos,
Inda que cedido,
Inda que cansado,
Inda que trêmulo,
Inda assim:
Dona do meu desejo, dona do meu desejo.
Dona de minhas asas.

(Tratado das veias, p. 54-5)

 

Ácaros e Culpas

Eu descobri entre ácaros e culpas
Que não sorrio há muitos rios e embarcações.
O meu nome ficou entre o limo das pedras
E você seguiu sem mim em diáspora sem par.
Cavando velhos fósseis entre as lembranças
Dos remorsos que carcomem a seiva dos sobreviventes.
Deixando a herança inflada dos cansanções
E a ira das ressacas deixadas pelos olhos de Capitu.

Você seguiu mascando urtigas no meu velório.

E eu, como esta máquina de datilografia,
Estou entregue, há anos, ao desamor
Das coisas apropriadas ao Abandono.

O meu sol, consolo não tem!
Nem manchas vermelhas sobre a pele,
Nem resfriamentos no inverno da carne,
Nem meras subjetividades de palavras vazias.

(Alforrias, p. 21)

 

Desejo Exu

A pedra seca aponta uma foto digital
Feita com fibras de um desejo Exu.
Medra, entre ponteiros, o brejo-beijo
Infindo de começos Hermes.

Enquanto isso,
Outras piranhas fedras
Suavizam sua verve
Entre o mundo vagabundo do que passa
E a obscuridade tecelar de quem só serve
E da vida – nunca – nada sorve.

(Alforrias, p. 28)

 

Solitude do Vento

Labutar com a morte
É ofício de santos.
Despedida sem volta,
Sem súplicas.
Nem réplicas.

É relíquia de anjos,
Vício do Nada,
Arrelia das gentes,
Solilóquio
Do Pranto.

Labutar com a morte
É cantar para pedras,
É sorrir ao silêncio,
Solitude do vento.

É um bater de portas na Escuridão.

(Alforrias, p. 45)

 

Herdade

Adio os búzios ante a vastidão dos tempos
A fim de ocultar o que em mim
Será o nascer inadiável do sol,
Ou a cicatrização paulatina dos ferimentos.

És, em mim, a Herdade.
O feudo imensurável dos meus quilombos.
O abandono mais desatinado de mim mesma
E dos projetos de Ser que armazenei nos ponteiros.

Enquanto aguardava o despotismo
Do teu aferro à inércia,
E dizia dos teus erros apenas Pacatez
E dissonância,
Fincava no Desejo o meu deus de obstinações!

Adiava a Exaustão!
Afugentava abstinências!

(Alforrias, p. 35)

 

Catedral de Marfim

Ele atropela regras de pertencimento
E toma posse dos meus feudos,
Naufraga em meus açudes rasos,
Desperta carícias clandestinas
Na corporeidade do desejo.

Decifra meus rastros arrastados no chão da Casa,
Lambe o osso exposto do meu sexo,
Rompe seus votos de castidade,
E me põe à vontade em sua Catedral de Marfim.

Ele é assim, afeito aos meus mistérios
E dono testamental dos meus dotes.

(Alforrias, p. 26)

Segredos

A cidade voltara a ter cinema. O Cine San­ta Clara estava de volta. É isso! Volta da ale­gria perdida em anos de espera, prejuízo sem conta. A história, nesses anos, fez-se sem o ci­nema; isso não se calcula, não se paga. Digni­dade perdida. Naquele dia, a cidade era uma senhora robusta, farta, saudável e feliz, abrin­do a janela e sacudindo a toalha de mesa com farelos de pão, prostrando-se sobre o peitoril da janela, sorrindo.

Jorge caminhava pelas ruas com vigor nos passos, brilho nos olhos e mexeção nervosa nos dedos. Sorria para todos, como se em to­dos houvesse a partilha do entusiasmo pela notícia. A cidade voltara a ter cinema, e Jorge era elegante, bonito, magro, óculos, múscu­los naturalmente definidos e seguros, duro e flexível, assim era Jorge, negro. Queria encon­trar pares para a comunhão do patrimônio afetivo. Sorria aos paralelepípedos, às amendoeiras, às acácias-dos-cachos-dourados, aos postes, pedintes, à escadaria do sétimo-céu, às lojas, esquinas, casas, mãos-de-vaca na cal­çada, ao casarão da esquina que, desde a in­fância na escolinha, tem aquele tom de rosa desbotado, onde os cães de pedra vigiam do alto o que não se soube nunca.

Pudesse, ele pularia, ímpeto brabo de cor­rer. Mas como? Estava sozinho e era elegante. As meninas foram-se. Iria ao cinema sozinho, as meninas viraram umas mulheres casadas, donas de filhos, maridos estranhos, filhos que não seriam as mães, eram outros seres, estra­nhos. As meninas dançaram, mesmo as que não casaram eram outras, solidificadas, como ele próprio, na permanência da solidão propalada por todo o grupo, elas também eram outras. Era sabido que havia uma mulher-amor, mas ele era, fundamentalmente, só, e pronto. Iria ao cinema sozinho, era o primeiro filme, após tantos anos... e os comentários? Não importa­va! Adoraria ir sozinho e, depois, contar os de­talhes da trama, tudo. Adoraria ver nos olhos dos amigos a ignorância.

Jorge era o Amigo. Conseguia nutrir uma amizade, cultivá-la com todos os ritos que a eleição exige: dominava a difícil tarefa de li­gar-Ihes frequentemente, batizava seus filhos ou comparecia às cerimônias, lembrava dos aniversários, reconciliava os casais, dava-lhes conselhos, ouvia-os, fazia-lhes visitas constan­tes. Ele aprendera a lidar com a amizade sem contaminar-se, sabia onde os amigos são lâ­minas e onde são beijos, e respondia a um e a outro com a mesma matéria-prima, sem, en­tretanto, perdê-los ou deixar de amá-los. Evi­tava, dessa forma, o câncer e o desespero.

Via-se, agora, Jorge saltando em passo lar­go, para não pisar na correição de formigas vermelhas que tomava metros do passeio da casa de Ada. Como resistiam às construções, aos automóveis (donos supremos, legais e pe­renes das calçadas), aos transeuntes apressa­dos? Logo aqui, está a casa de Ada, velha ami­ga. Abriu o portão de ferro e, antes de bater à porta, olhou a roseira, o canteiro de malme­quer, a grama e achou tudo tão bonito que sentiu saudade.

Da sua boca saiu o pensamento que o to­mava sempre que pensava nela:

– Ada e esse excesso de desvelo em reve­lar segredos do que não viveu...

– Não, não são arrepios de desejo. Há de ser o frio, há de ser o barulho da rua, o ruído dos pássaros, a música que vem de longe, as vozes das mulheres que comemoram o aniver­sário da amiga, há de ser o vento, há de ser o cheiro da comida, o medo da vida. Estou em plena erupção, afinal, Jorge, você bem sabe o quanto sou erótica.

Ambos riram. Nessas tardes, tomavam chá de erva-cidreira com torradinhas finíssimas preparadas por ela mesma. Ada tentara o ca­samento uma única vez, mas desistira, assim que constatou, triste, que não sabia ser bran­da, consensual, não tinha paciência pra ho­mem. Casada, olhava para a janela e queria voar, sair voando, e voava. Ada voou. Desde pequena, Ada criava personagens para amar; uma alma de atriz ajudava-a a viver outras vi­das, escapando da sua, tão sem graça; inven­tava dores. Depois, vieram os romances bara­tos, antes as novelas de rádio, depois as televisivas, a literatura clássica, filmes e can­ções. Uma inadaptada, cria de um romantis­mo inviável, alheia ao léu da existência, uma desertora da concretude besta do mundo. Mulher de namoro tardio, sexo fortuito, es­corregadio, ou coisa parecida. Amava mais a distância que o corpo. Nada, nada aprendia da arte da conversação, da relação ou do con­tato, mas sonhava tudo!

– Eu quero delicadeza, Jorge. A humani­dade me dá tão pouco; sou órfã de conforto, de requinte, desde que nasci. Quero delica­deza, delicadeza, delicadeza, finura de trato. Mas não quando estou cansada, indisposta; desse jeito, só sei ser grosseira, bruta, rude, chego mesmo a ser violenta. Você sabe.

Abandonada no seu universo pessoal, frequentava o único sebo da cidade e levava para casa – isso já nos últimos anos – autores, tí­tulos e ... dedicatórias. Procurava livros usados que tivessem... dedicatórias, e se debruçava sobre elas, chorava-as, como na infância cho­rava ao ouvir velhas baladas românticas. Ada chorou tudo, perdeu, viveu e sentiu todas aquelas dores. Não haveria fôlego para as dores reais que viriam no futuro. Agora, as dedicatórias. Lia-as e, de alguma forma, sen­tia-se útil por proteger os livros e aquelas pes­soas. Contorcia-se ao imaginar quem tivera a coragem de vender, doar, trocar declarações tão fiéis de amizade, amor; de expor ao des­conhecido palavras que permearam relações. Alguns livros tinham as páginas arrancadas; esses, ela não os levava. Ada lia e relia as dedicatórias e sentia-se acompanhada por aque­las vidas desconhecidas que se amontoavam pelas estantes todas da casa.

– Uma Musa precisa deixar de existir para ser perene, senão afunda na solidez humana e vira gente, vira pessoa e morre. Preciso per­petuar minha natureza de Musa, mesmo pros meus fantasmas, Jorge. A mulher sem segre­do não existe, Jorge, é preciso tê-los, isso é o que torna uma mulher uma mulher, e eu es­tou cansada de ser mulher, estou cansada de ser. Preciso contar tudo. Você entende, não é, Jorge? Uma mulher precisa resguardar-se; para continuar sendo novelo, melhor que seja embaraçado, cheio de nós, senão vira nada, vira pó, algodão em pó. Sinto-me arrefecida, cansada, o estar no mundo verdadeiramente apavora-me.

Achara, numa velha gramática francesa, adquirida recentemente, um nome: Eubs Carlos Amoroso. Passa seus dias com a criação que fez desse homem-nome e dedica-lhe ver­sos: Eubs, a urbs chama-me fêmea, quero beijar o cadáver da tua boca e acordar nua na fábrica de gelo onde era nossa casa. O amor me diz passará, e eu travo os dentes em teus pés pétreos. Sozinha diante da noite. Restos de amanhã. O porto, a paisagem. Ele partira pra não mais se ir de mim. Jamais iria. Era eu a mulher de preto, cruzados os braços e pernas frias e finas e negras. Ele ficava no navio que ia. Indo, eu ficava nas mãos, talhando a ma­deira morta. Prenhe do teu perfil, prenhe da morte que me vinha, nas ondas que te levavam. Atalhei os fios dessa pauta para certificar-me das marcas, das datas, da volta de quem partiu. Ada apaixonara-se por um nome e criara um homem para amar. Ou coisa parecida.

Jorge insinuou o cinema, mas ela, com ges­tos firmes e silenciosos, distante, tocou uma xícara no pires, ergueu-se sem pressa, abriu uma banda da janela onde não batia sol e re­costou-se.

– Ontem, enquanto lavava os pratos, olhei através da janela da cozinha e vi telhados, os de sempre. Senti vontade de morrer; não, não foi isso, foi vontade de não estar viva, ou nem isso: vi que tudo era nada, bem assim, a sensa­ção de nulidade. Senti medo, espécie de ar­rependimento por aquela invasão. Mas ela era tão exterior a mim, como se fosse uma visita sem convite, vinda dos telhados, com o vento. Afastei o pensamento como pude. Tive medo de perder o sabor que tenho, em muitos mo­mentos, pela vida. Tive medo de ver a vida assim, e assim parecia ser a verdade. A exis­tência me traíra. Eu soubera. Agora, vá. Preci­so fazer versos para Eubs.

Jorge despediu-se, mas, antes que a porta se fechasse, olhou Ada daquele jeito, sentada com as mãos nos braços da cadeira, recostada no espaldar, relaxada. O olhar perdera o bri­lho, a nitidez, e Jorge aprendera cedo que a aproximação da morte furta o viço dos olhos. Era uma leitura difícil.

– Jorge! – era ela, à janela, a dizer, como sempre, alguma coisa após o fim da conversa, às vezes gritada no meio da rua – meu ami­go, preciso de velas, traga-me velas na próxi­ma visita. Meu quarto tem estado escuro e te­nho medo. Meu medo só foge quando toco um corpo, por isso as velas.

Iria ao cinema sozinho. No caminho, passaria por essas crentes protestantes sonsas, com saias tão longas e justas, amassando a carne de forma voluptuosa. Esqueceria por um mo­mento o cinema, Ada e tudo, o membro reli­giosamente intumesceria.

Na tela, surgiram os primeiros caracteres, e Jorge fechou os olhos e cruzou as mãos, ten­do os polegares como suporte da fronte incli­nada. E Jorge viu sua parede ser invadida por girassóis amarelíssimos, plantação vasta, ao fundo uma casa com uma mulher sem rosto, um homem fardado chegando através das flo­res; viu o barranco de barro bem vermelho em frente à sua casa, os primos maiores e sa­bidos, o empurrão, seu corpo no chão fingin­do um desmaio, tanta vergonha, tanta vergo­nha; e a vida seria tantas vezes esse desmaio fingido da infância. Viu-se negro na sala de aula, imaginando que o menino mais bonito namoraria com a menina mais bonita, e nun­ca era ele o escolhido por si mesmo; viu o seu silêncio de menino negro na escola, tantos anos com ele, segunda pele: silêncio; viu o primeiro estojo de lápis cera grande, acordan­do o belo; viu as meninas atrizes surgirem cer­tas de que seriam grandes, escreveriam, atua­riam; viu seus pais envelhecendo, adoecendo; viu-se a si mesmo diante do espelho a enve­lhecer, e ele, que antes pensara em morrer a ver esses tempos chegarem, tempos de colheita e armazenamento, tempos de registro e recor­dações, alegrou-se de uma alegria pungente, dessas que se confundem com a dor, dessas que envidraçam os olhos.

Viu que não nos tornamos grandes, éramos apenas pessoas, simples pessoas e, como as outras, tão cheias de sonhos, desejos, frustra­ções e complexidades. Olhei para Jorge, eu estava sozinha, sem os fantasmas, sem os cons­piradores da Musa, sem ninguém. Olhei o meu amigo, e ele olhou-me, e estava tudo bem. A nossa amizade e as nossas idiossincrasias. Assistimos ao filme. Depois haveria o mar es­perando por Jorge, esperando por mim, es­perando por nós, o mar da nossa terra, maior e mais bonito que qualquer outro, o consolo-­colo que só o mar, o chão, os cactos, as pedras da terra natal podem dar.

(Tramela, p. 51-59)

 

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